O pré-Língua de Trapo em ação no ano de 1979. Click de Rivaldo Novaes
Aconteceu entre o tempo final do Boca do Céu, e início do Língua de Trapo, durante o ano de 1979
Em meio aos esforços para engrandecer a minha primeira banda, o Boca do Céu, a minha rotina do cotidiano durante o ano de 1979 se dividira entre as atividades da banda, a minha determinação pessoal para melhorar como músico e sim, cursar e passar pelo dito "terceiro ano colegial", que eu cumpria em termos de estudo formal.
Dentro do ambiente escolar, havia uma série de alunos que como eu, ainda estávamos ligados com os ideais contraculturais, e como Rockers com identificação hippie, mantínhamos uma aparência coadunada com os valores do Rock sessenta-setentista e assim, ainda que em fase de franca diminuição nessa ocasião, os usuários de longas cabeleiras estavam devidamente distribuídos pelas salas de aulas da escola.
Eu (Luiz Domingues), em 1979. Acervo próprio
Nesse nesse específico ano, apesar de sempre ter tido uma postura "zen" e respeitosa no ambiente escolar, aliás, desde que ingressei no sistema educacional no ano de 1968, infelizmente eu tive um problema e de novo ressalto que na verdade, o problema não foi gerado por alguma ação minha, de forma alguma.
Explico: eis que um novo professor entrou em cena, a ministrar a discutível matéria de "OSPB" (organização social e política brasileira) para o ano letivo de 1979. Nos anos anteriores, nenhum professor houvera me hostilizado por eu manter aparência de "hippie", mas esse profissional em específico passou o ano inteiro a me hostilizar de uma forma gratuita e claro, estimulado por uma série de preconceitos que continha no seu âmago.
Não houve nenhuma surpresa de minha parte que esse sujeito a ministrar tal matéria, fosse um reacionário por natureza, como geralmente eram os entusiastas desse conteúdo com alta dose de doutrinação embutida em suas entranhas. No entanto, eu já havia enfrentado anteriormente professores da matéria semelhante, ou sejam, a indefectível "educação moral e cívica" durante a conclusão do ensino fundamental e não havia tido grandes problemas além do óbvio que essa matéria inseria em si, mas esse senhor se incomodou ao me ver no fundo a sala a usar uma longa cabeleira e não escondeu isso de ninguém, apesar de eu jamais ter me insubordinado à sua autoridade.
Com certa frequência, comentários sobre a "decadência social" promovida pelos "hippies cabeludos" vinham em voz alta, a mirar-me e completamente desconectados do contexto da matéria que nos passava, como um tipo de ataque covarde da parte desse pulha preconceituoso. Contudo, eu nunca retruquei a sua grosseria gratuita.
Certa vez ele citou o filósofo, Arthur Schopenhauer, ao pedir para que eu me levantasse e respondesse uma pergunta da matéria, mas a sua intenção foi apenas que eu ficasse de pé e em evidência para me atingir com um ataque frontal e gratuito ao citar o famoso aforismo cunhado por tal pensador: "cabelos longos, ideias curtas".
Ora, essa colocação misógina da parte do filósofo, foi abominável por natureza, embora esteja no contexto da época na qual viveu entre os séculos dezoito e dezenove e ao ir além, o preconceituoso incomodado com a minha aparência a distorceu, pois certamente interpretou a minha longa cabeleira como um sinal de homossexualidade, ou seja, o ataque foi duplo, no sentido de que primeiro: compactuava com a lógica abominável do filósofo que citou, ao considerar a mulher como um ser intelectualmente inferior ao homem e reforçou o preconceito ao julgar-me como um homem que desejava ser mulher, portanto, alguém que quisesse abdicar da minha "natural" superioridade no conceito dele, para se tornar inferior, isto é, a me chamar de desprovido de inteligência sob dois aspectos. Em suma, que raciocínio tacanho e carcomido de preconceitos dos mais abomináveis.
Certa vez, quando da administração da primeira prova formal bimestral, esse senhor já a se colocar como uma pessoa na terceira idade na ocasião, ao distribuir os papéis de prova aos alunos, fez uma explanação absolutamente lamentável e eu diria, criminosa, pois certamente que ele não tinha esse direito sob o ponto de vista pedagógico, quando disse aos berros: "eu não dou nota dez para ninguém, devo deixar claro. Mesmo que o aluno acerte todas as questões, mesmo que use de argumentação brilhante para defender a sua tese e esteja inteiramente correto no seu raciocínio, a nota dez eu só dou para Deus. Portanto, partindo dessa premissa, nenhum ser humano jamais poderá ter a mesma quantificação".
Bem, foi inacreditável ouvir essa afirmativa de um fanático religioso a usar do seu poder como professor para inventar um critério irracional para avaliar o desempenho dos seus alunos. E se o aluno dependesse da nota dez para fechar a média e passar de ano? Seria reprovado pelo beato? Inadmissível!.
Lá pela metade do ano, ele teve uma crise de nervosismo, quando fez um ataque às religiões orientais e ao citar o hinduísmo, centrou as suas baterias de ódio explícito ao criticar duramente as imagens de Deuses com a anatomia híbrida e/ou com a presença de muitos braços na representação visual de suas supostas imagens. E para demolir essas crenças, citou passagens da Bíblia a referendar a ideia de que o Deus único no qual acreditava criou a humanidade à sua semelhança e que era inconcebível haver gente ignorante que acreditava na multiplicidade de Deuses e sobretudo sobre as divindades que eram híbridas, a apresentar características humanas e animais em um mesmo corpo.
Aos
berros, falava ser intolerável adorar um Deus com "cara de macaco ou
elefante". Ora, o beócio nunca foi buscar entender as metáforas,
alegorias e analogias de outras crenças e portanto, como um fanático
monolítico que se revelara, jamais levou em consideração que nessa
mitologia em específico, criaturas com vários braços tem como metáfora a
ideia de que cada braço representa uma característica do referido Deus e
no caso das feições animais, o raciocínio é o mesmo ao usar a analogia
com os animais para realçar aspectos inerentes tais como força,
destemor, argúcia, agilidade e outros, como algo meramente alegórico. E
claro, a denotar que interpretava a Bíblia de uma forma literal e
deveras infantil, sem entender as metáforas e simbologias ali descritas,
e que à luz da razão, também são exóticas em muitas passagens,
convenhamos.
E para encerrar esta crônica, narro o ápice dessa atuação da parte desse professor e que ao mesmo tempo revelou a personalidade desse sujeito tão detestável pela sua verve autoritária e ignorante. Eis que ele propôs um estudo sobre o comportamento humano a se provar como algo altamente controverso.
Hipócrates, na antiguidade, formulou uma teoria a explicar a saúde do ser humano e que ao mesmo tempo tentava propor a mesma tese em relação ao seu comportamento, quando estabeleceu a questão sanguínea como tal parâmetro. Alguns séculos depois, o romano, Galeno, partiu desse estudo e avançou a estabelecer as bases do que veio a ser conhecido como "teoria humoral".Esse texto serviu de base na Idade Média, séculos depois, para ser considerado como um parâmetro, como a teoria mais avançada aos padrões da época e claro, sob as bênçãos das forças religiosas que dominaram tal fase da história da humanidade a ferro e fogo, literalmente.
Bem, o tempo passou, o estudo de Galeno ficou totalmente ultrapassado e usado apenas como fato histórico a envolver a medicina, a antropologia e a psicologia sob uma análise geral e claro, circunscrito ao fato de que sob o ponto de vista filosófico, é tratado nos dias atuais apenas como algo registrado nos anais da história, sendo descartado como estudo sério, faz tempo.
Entretanto, a proposta desse "mestre", se pelo ponto de vista curricular foi um engodo, ao menos serviu para tornar patente de onde vinham as suas ideias reacionárias. Como um religioso extremista e fanatizado, é claro que isso explicou bem a sua linha detestável de aula e claro, coadunado com a repressão, o autoritarismo, o reacionarismo em alta voga nas décadas de sessenta e setenta e tudo isso amalgamado com um cabedal de preconceitos despropositados sob o ponto de vista pessoal da parte desse energúmeno.
Fiz as provas bimestrais, a obter notas boas que me garantiram a aprovação, e a responder o que ele queria ler, sem nunca contestá-lo. Alguns colegas da sala de aula chegaram a se solidarizar comigo pela perseguição que sofri e se admiraram por eu nunca haver respondido a altura ou a formular uma queixa na direção da escola. Bem, eu poderia ter feito isso e não seria descabido pelo ultraje que sofri, no entanto, acho que agi bem ao aguentar o vilipêndio, justamente porque foi exatamente o que ele queria, isto é, provocar-me para gerar a minha reação.
Para quem não sabe qual é a base dessa formulação teórica que adveio da antiguidade e foi tida como a última palavra durante a Idade Média e boa parte da Renascença, veja abaixo o resumo do que o tal professor de "cabelos curtos e ideias medievais" me impingiu durante o ano de 1979, ou seja, segundo Hipócrates e Galeno, os seres humanos seriam divididos em quatro tipos:
Sangue (sanguíneo): O sangue era considerado o humor principal e era associado às características de calor e umidade. Uma pessoa com predominância do sangue era vista como otimista, extrovertida, sociável e cheia de energia. Eles eram vistos como pessoas alegres, comunicativas e entusiasmadas.
Fleuma (fleumático): A fleuma era associada ao frio e à umidade. Uma pessoa com predominância da fleuma era vista como calma, tranquila, paciente e reservada. Eles tendiam a ser observadores, racionais e não expressavam muita emoção.
Bile Amarela (colérico): A bile amarela estava associada ao calor e à secura. Uma pessoa com predominância da bile amarela era vista como enérgica, determinada, assertiva e competitiva. Eles eram considerados líderes naturais, com uma tendência a serem dominantes e focados em objetivos.
Bile Negra (melancólico): A bile negra era associada ao frio e à secura. Uma pessoa com predominância da bile negra era vista como introspectiva, pensativa, analítica e sensível. Eles tendiam a ter um temperamento melancólico, com uma tendência a serem perfeccionistas e preocupados com detalhes*.
De minha parte, eu passei de ano a concluir o curso médio, cheguei ao final do ano a comemorar o fato de que estava a participar do meu primeiro trabalho profissional como músico (na banda de apoio do compositor, cantor e músico, Tato Fischer), e também em meio à formação de uma banda cover que tocaria muito na noite paulistana e a ganhar dinheiro (o "Terra no Asfalto"), e igualmente envolvido com os primeiros tempos na formação do "Língua de Trapo".
Portanto, o aborrecimento saiu da minha mente bem rapidamente ao ponto de que eu nem me lembrar do nome desse senhor. A pensar nas ideias de Galeno, creio que muito provavelmente esse senhor tão reacionário se considerava como um típico "sanguíneo", mas na verdade, era apenas um escolástico medieval a viver o século vinte com uma mentalidade ultrapassada, a se portar como um sujeito anacrônico, parado em um tempo obscuro e ocorrido há séculos.