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quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Crônicas da autobiografia - O precipício, o arame e o sorriso do grande artista - Por Luiz Domingues

Aconteceu no tempo do Terra no Asfalto, em algum momento de 1981

O Terra no Asfalto foi formado em 1979, com a intenção de ser uma banda de execução de releituras ou "covers" como queiram. Com a exceção de um breve período de 1981, no qual se aventou criar algo autoral e que foi rapidamente frustrado em sua tentativa, a predisposição dessa banda sempre foi de atuar como banda de entretenimento em casas noturnas, predominantemente, mas também em festas corporativas, escolares e diversas outras oportunidades do gênero que surgiram em sua trajetória.

Como eu já relatei com detalhes no meu texto autobiográfico, o grande mérito dessa banda foi ter arregimentado em suas diversas formações, músicos incríveis e eu, em início de carreira, me beneficiei muito desse convívio para aprender muito e crescer como músico.

Debruçado sobre o piano, Sergio Henriques observa o grande, Cesar Camargo Mariano a tocar. Elis Regina está sentada ao lado e em pé, o trompetista, Farias e o baixista, Luizão Maia, com roupa escura. Em algum momento de ensaio de 1980

Um desses geniais músicos que fizeram parte do Terra no Asfalto, foi o grande, Sergio Henriques, músico de sólida formação acadêmica, nível técnico alto e que foi reconhecido por sua capacidade ao ter sido "side-man" de diversos artistas famosos da MPB mainstream dos anos sessenta, setenta e oitenta, em seu auge. Elis Regina, Rita Lee, Pepeu Gomes e Jorge Benjor estão nessa lista, além dele ter feito trabalhos significativos com artistas menos famosos no âmbito comercial, mas importantes artisticamente, como o grupo "Premeditando o Breque", por exemplo.

E entre acompanhar artistas do mega estrelato da música e tocar com a nossa humilde banda, Sergio esteve conosco sempre nas brechas de sua agenda, principalmente em meio as suas obrigações com Elis Regina e Rita Lee com quem mais atuou nesse tempo em que também esteve conosco, concomitantemente.

Certa vez, a nossa banda tocou em um bar localizado no bairro da Bela Vista, o popular "Bexiga" na cidade de São Paulo e cujo palco estava montado em um mezanino altíssimo, que denotava ter sido o pavimento superior de uma antiga residência, cujo imóvel fora adaptado para se tornar uma casa noturna, muitos anos depois.

Lembro-me da dificuldade incrível que foi colocar todo o nosso equipamento naquele palco ermo, cujo acesso era feito apenas por uma escada estilo "caracol" e extremamente estreita. Outra alternativa não menos cansativa foi erguer os equipamentos com muita dificuldade, incluso no uso de mesas para elevar ao máximo a altura das pessoas envolvidas nessa tarefa e foi o que fizemos com a maioria dos amplificadores, as peças da bateria e o piano do Sergio.

Tarefa extenuante por si só, já a realizamos com a perspectiva de que repetiríamos a operação no decorrer da alta madrugada, lá pelas quatro horas da manhã ou mais que isso e foi o que ocorreu, inclusive com a impertinente ação do gerente da casa que não facilitou em nada tal operação, ao exigir que só empreendêssemos tal desmonte após não haver mais nenhum cliente da casa, sendo que muito antes do que ele nos autorizou, a casa já estava bem vazia com a presença apenas dos últimos ébrios relutantes para ir embora para as suas respectivas residências. 

Todavia, o ínterim desse trabalho de montagem e desmontagem foi o que se mostrou mais assustador, visto que o palco era pequeno e para alojar a nossa banda que atuou como sexteto nessa noite, com a participação do Sergio e mais o equipamento, fez com que a linha de frente da banda, com a presença do vocalista Paulo Eugênio e o Sergio, cujo piano elétrico, "Würlitzer", não teve outra escolha a não ser se alojar bem na frente e ajustado de forma enviesada, e assim, todos ficaram com espaço limitado, incluso o trio de cordas formado por eu (Luiz), Aru Junior e Wilson Canalonga Filho e sobretudo para o nosso baterista, Cido Trindade, que mal podia empreender os movimentos básicos de seus braços para poder tocar confortavelmente. 

Todavia, tais fatos não foram os mais alarmantes nessa apresentação, por incrível que pareça, pois além da altura absurda desse palco e da sua pequenez nas dimensões, eis que na sua extremidade, não havia nenhum equipamento de segurança para que quem ali estivesse a tocar pudesse sentir algum amparo estratégico como uma grade, por exemplo. E para piorar a situação, o gerente da casa tomou como providência prosaica para fornecer a nossa segurança, a instalação de um fio de arame, isso mesmo, para ser estendida no comprimento do palco e à meia altura e que segundo ele, seria um aviso "psicológico" estratégico sobre o precipício que ali existia, para ninguém cair e se machucar.

Durante a apresentação, o incômodo de todos foi gritante, não apenas pelo calor excessivo que sentimos a tocar amontoados e sob a ação dos amplificadores, mas também pelo medo de alguém perder o equilíbrio e fazer com que algum equipamento ou nós mesmos caíssemos daquela altura e não foram poucos os sustos que tivemos com pedestais que ameaçaram despencar, além de pedais de guitarras e sobretudo do piano elétrico do Sérgio que estava ali instalado no limite. 

O suor do Sergio e do Paulo, que estavam bem na ponta do palco, respingava nas pessoas que estavam nas mesas bem abaixo a nos ver e ouvir. Latas de refrigerantes e cervejas que eles estavam a usar, quase caíram também. Mesmo assim, com tantas condições adversas, a apresentação foi ótima e entre tantas coisas, apesar de todo esse desconforto, o Sergio tocava a sorrir, porque adorava tocar conosco e amava tocar, acima de tudo. Na mesma época, ele estava ali conosco por conta de uma pausa da turnê da Elis Regina com a qual tocava, como segundo tecladista da banda, braço direito do Cesar Camargo Mariano e enquanto esperava começar os ensaios com Rita Lee, com quem ele iria tocar nos show de lançamento do LP "Lança Perfume" na ocasião.

Sem se importar em tocar em lugares simples assim, conosco, em contraste com os palcos glamourosos com os quais estava acostumado a se apresentar, não se furtava de ajudar a carregar o  equipamento e erguê-lo naquela altura desse bar em específico, tampouco com o aperto compatível para shows de contorcionistas, mas não para uma banda de Rock e nem mesmo ao correr risco de se machucar gravemente ou no mínimo, danificar o seu piano elétrico, que era super caro por natureza. 

Ele tocava e sorria, feliz por estar ali conosco e a reproduzir a arte de nossos ídolos em comum, a se coadunar com o Led Zeppelin, Yes, Stevie Wonder, Gilberto Gil e tantos outros artistas que admirávamos e que tínhamos um enorme prazer de executar as suas obras nessas noitadas animadas.

Lembrei muito do Sergio nos primeiros dias de março de 2023, não só por essa história mas por muitas outras que tivemos em parceria, pois fui comunicado do seu falecimento, infelizmente. 

Muito jovem para partir, eis que a fatalidade lhe ocorreu precocemente. Aqui ficamos sem a sua arte aos teclados, mas lá na dimensão em que foi morar, tenho certeza que encontrou com os nossos companheiros do Terra no Asfalto, que também já haviam se mudado para lá anteriormente: Geraldo Gereba, Fernando "Mu" e Paulo Eugênio Lima. O Terra no Asfalto de lá, que seria poeticamente o "Céu no Asfalto", digamos assim, ganhou um reforço de muito peso: Sergio Henriques, o nosso Rick Wakeman do Terra no Asfalto. 

Descanse em paz e muito obrigado por tudo.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Crônicas da Autobiografia - Leite Interrompe Viagem? - Por Luiz Domingues

               Aconteceu no tempo do Boca do Céu, em 1977

Em tempos setentistas, ainda sob a forte influência contracultural sessentista, certos comportamentos observados no cotidiano de muitos Freaks, Hippies & Rockers de uma maneira geral (e que se contabilize nessa lista, o contingente formado pelos aspirantes a tais status descritos anteriormente), se colocavam no limite do perigo ao buscar a liberdade de viver da maneira que quisessem em contraposição frontal contra os costumes conservadores observados no bojo da sociedade. E por conseguinte, tratados como marginais ante a criminalização tão controversa de certos hábitos de consumo que se em épocas passadas eram consideradas corriqueiros, eis que por força de decretos a atender interesses obscuros, se tornaram proibitivos tempos depois, e assim permaneceram nesse começo de segunda metade do século vinte, lamentavelmente a apontar para o atraso institucional. 

O incrível grupo de Rock, "O Terço" com a formação que assistimos muitas vezes ao vivo nessa ocasião 

E foi assim que em meados de 1977, um grande amigo (mas cujo nome não vou revelar para não lhe causar constrangimento, embora ele mesmo costume se lembrar dessa história sempre que nos encontramos até nos dias atuais, 2022, e rimos muito do ocorrido em nossas conversas nostálgicas sobre os anos 1970), surgiu na porta da minha casa em um determinado dia de semana, no período da noite, para tocar a campainha da minha residência inesperadamente, haja vista que não havíamos combinado um encontro e normalmente nos encontrávamos às sextas, sábados e domingos, quando na companhia de outros amigos em comum, frequentávamos todo o tipo de ambientes culturais, notadamente os shows de Rock e MPB que fervilhavam pela cidade, semanalmente.

Claro que eu estranhei, pelo dia inusitado em si e também pelo horário avançado, mas logo que o vi no portão com os olhos esbugalhados, cabelo desgrenhado e expressão facial a denotar uma certa confusão no controle dos sentidos, fui logo abrir a porta e recepcioná-lo para ajudar o amigo que nitidamente estava sob algum apuro momentâneo.

Bem, ele nem precisou explicitar que estava com o seu estado de consciência um tanto quanto alterado, embora já tenha se expressado de imediato a afirmar que precisava "fazer um pouco de hora" ou seja, a denotar que não poderia voltar imediatamente para a sua casa sob tal situação e assim ser flagrado pelo seu pai que desconfiaria do que ele havia consumido e que lhe dera uma sensação de bem-estar, certamente, mas que também deixava rastros sobre a própria ingestão, naturalmente.

Foi então que eu também me preocupei, pois não somente o pai dele estranharia, mas o meu, igualmente, pois o meu progenitor era também moldado pelos mesmos valores vigentes e talvez se contrariasse com o fato do rapaz estar naquele estado alternado de consciência e mesmo que eu estivesse absolutamente normal, dentro de casa e a viver momentos pacatos dentro da normalidade de um dia comum do cotidiano familiar, a cisma dele já estava grande comigo, também em relação aos meus amigos e toda aquela ambientação da banda de Rock que havíamos montado recentemente e por nossas idas constantes aos shows de Rock dos artistas consagrados da época, ao mantermos estilo de indumentária de hippies, cabelos longos etc. e tal.

Qual foi a solução mais improvável que eu tomei e com total aprovação do meu amigo que estava a querer voltar para a, digamos, "terceira dimensão?" Bem, eu propus que ele tomasse uma boa quantidade de leite puro, bem naquela predisposição prosaica do âmbito familiar, a acreditar em postulados antigos em termos de crenças fomentadas por avós, bisavós e que vão a passar de geração em geração como verdadeiras afirmativas, porém sem comprovação científica alguma que as respalde.

Mas como ele era moldado pela mesma forma cultural que a minha e de quase todo mundo em nosso espectro social, nem o fato de sermos abertos ao novo, completamente alucinados pelas possibilidades contraculturais que nos encantavam na ocasião, nos fez raciocinar por um segundo que fosse, o quão retrógrada fora tal ideia estapafúrdia e a despeito de simplesmente não gerar o efeito de um antídoto como imagináramos, ser algo contraditório para nós que queríamos mergulhar na euforia hippie da liberdade e fuga de todos os condicionamentos "caretas" da sociedade conservadora, ou a trocar em miúdos: na prática, o que prevaleceu ali foi a receita falaciosa que ouvíamos dos nossos avós, bisavós e demais antepassados que viveram ainda sob os costumes medievais em inúmeros aspectos e assim nos criaram.

Bem eis que o meu amigo tomou vários copos de leite a configurar tal ato de sua parte quase como a mesma saciedade de um bezerro atrelado nas tetas da sua mimosa mãe, porém, além de preencher o estômago com uma quantidade significativa de lactose sob uma dose de mamute, e no caso, de um touro, é óbvio que a ingestão de tal produto lácteo não o ajudou em nada a abreviar o período normal no qual duraria a sua euforia e assim, a solução foi mesmo gastar tempo na minha residência até que pudesse se sentir "recomposto" para chegar em sua habitação e seu pai não estranhasse o seu comportamento e aparência fora do padrão naquele instante.

O que ele ingeriu era lícito ou ilícito? Pois é, se naquela época essa questão era completamente questionável sob o ponto de vista moral, o que dizer nos dias atuais (escrevi esta crônica em 2022)? 

E mais um ponto, até quando a hipocrisia conservadora vai dominar a sociedade ao fazer com que os legisladores mantenham tal predisposição de criminalizar algumas substâncias e liberar outras e sobretudo, a determinar com tais leis estapafúrdias, comandar os corpos das pessoas?

E mais ainda sobre o que o meu amigo ingeriu para ter aquele momento de bem-estar e torpor ao mesmo tempo, não vou revelar o que foi exatamente, mas deixo para o leitor pensar: pode ter sido algo considerado proscrito pela lei vigente e que fazia com que os policiais espumassem de raiva quando achavam tal substância no bolso de um jovem, dentro da sua lógica ilógica. 

Ou foi algo completamente legal, vendido em qualquer supermercado e amplamente incentivado pela sociedade, decantado em verso e prosa pelos publicitários ávidos por ganhar dinheiro e que, acrescente-se, quando ingerido, proporciona com que muitas pessoas se tornem violentas ou completamente irresponsáveis ao dirigir veículos, a causar graves acidentes e matar pessoas inocentes pelas ruas.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Crônicas da Autobiografia - Golpe Sujo - Por Luiz Domingues

 

     Aconteceu bem antes da fundação do Boca do Céu, em 1971

Que a contracultura incomodava os ideólogos simpatizantes da beligerância e enquanto instrumento, algo a ser usado, por conseguinte, para se manter uma visão acre do mundo, isso é uma obviedade. Não apenas pelos aspectos libertários, múltiplos por natureza, entre os quais a se destacar o antagonismo que foi/é se colocar como pacifista em confronto a uma ideologia que pensa de forma diametralmente oposta, justamente por ter o pilar da guerra como algo necessário a justificar a sua visão desumana da civilização, ou seja, a se caracterizar como uma aberração por natureza.

Muito provavelmente os opositores do movimento hippie perceberam que usar da violência para desmantelar tal movimentação social de cunho libertário, geraria a antipatia imediata da opinião pública, no sentido de que jogar os cães raivosos contra os jovens cabeludos que falavam sobre “paz & amor” teria sido um “tiro no pé”, com o devido perdão pela ironia, com o efeito de se causar repulsa ante a truculência desmesurada contra quem propunha oferecer flores ao invés de bombas "Napalm". 

Portanto, ao mudarem a estratégia e assim passar a imputar-lhes a pecha de idiotas alienados e dominados pelos efeitos das drogas, tais estrategistas acharam uma espécie de “calcanhar de Aquiles” do movimento, e doravante como algo bem definido para ser explorado pelas hordas moralistas de plantão, no tocante ao aspecto lisérgico ligado de forma intrínseca à tal movimentação contracultural.

E da parte dos hippies, sobrou a fraqueza evidente de quem sonhou com a construção de um mundo melhor, pleno de fraternidade, porém, mediante a sua ingenuidade extrema ao se colocar como uma tribo apolítica e sem nenhuma intenção de sequer entender o funcionamento do jogo de interesse tradicional e sobretudo na questão da geopolítica que usa e abusa da força bruta para se impor. 

Nesses termos, por ter sido um movimento espontâneo, anárquico em tese, mas sem nenhuma intenção de promover a anarquia propriamente dita como pilar ideológico e político, uma imensa maioria de jovens que se deixaram levar pela ideia da liberdade, apenas se entregara à possibilidade do hedonismo, impactada pela condição de extrair um peso moral das costas, fruto de séculos de subserviência aos paradigmas gerados desde a Idade Média e alguns que remontavam à Antiguidade, carcomidos por crenças, superstições, culpa & medo, ou seja, a ideia de se libertar desses grilhões morais e por conseguinte a se colocarem abertos ao prazer total, os inebriou.

Em suma, o sexo livre, o uso desenfreado das bebidas alcoólicas e sobretudo das drogas com alto teor lisérgico, levou a maioria para um caminho aberto para a alienação e por conseguinte, a enfraquecer o movimento. 

Por outro lado, houve a exceção dos “Yippies” que foi uma facção hippie organizada no âmbito das universidades e que devidamente politizada, tentara levar adiante o ideal, com respaldo sociológico mais firme. Contudo, tal movimentação foi devidamente sufocada em sua iniciativa, dentro do ambiente universitário norte-americano, e mesmo assim, em seu auge fora algo insípido.

Em suma, a euforia Hippie nunca foi uma movimentação política, embora muitos dos ideais sonhados por esses jovens tenham proximidade com os anseios progressistas em torno da igualdade e fraternidade social, certamente.

Bem, diante desse quadro, eis que no ano de 1970, duas mortes trágicas ocorreram por uma questão de dias no mundo do Rock. Em 18 de setembro, Jimi Hendrix e em 4 de outubro, Janis Joplin. Ambos por conta de overdose motivada por drogas químicas usadas em excesso, se bem que a despeito do consumo contumaz desses psicotrópicos, uma delas não foi exatamente por conta disso no caso de Jimi Hendrix, cuja causa mortis foi o sufocamento por uma ação azarada que ele teve entre o momento de crise e o salvamento que não foi possível de ser efetuado a contento por paramédicos plantonistas.  

Passados alguns poucos meses, em 3 de julho de 1971 veio a notícia de que Jim Morrison havia sido encontrado morto em uma banheira de um apartamento em Paris, no qual ele estava a habitar, ou seja, foi a terceira morte próxima, sem deixar de mencionar a perda de Brian Jones também em um dia 3 de julho, mas de 1969, ou seja, foram quatro mortes de "Rock Stars" muito proeminentes, em um curto espaço de tempo e em decorrência do abuso de drogas (no caso de Brian, foi afogamento na sua piscina particular, no entanto, a teoria de que ele ali caiu por estar drogado tomou conta da opinião pública).

Esse foi o estopim para a “intelligentsia” que era a favor da cor cinza e muito incomodada com a explosão de cores proporcionada pela paleta psicodélica, entrar em ação para criar uma peça publicitária absolutamente soturna, com ar macabro e a tentar se comunicar com a juventude de então, que foi exibida à exaustão nas emissoras de TV da ocasião no afã de “provar” que os jovens estavam todos errados por se encantarem com a música, o Rock em pormenor e toda a cultura hippie que lhe amalgamava na época.

Para reforçar tal conceito, as fotos de Hendrix, Joplin e Morrison apareciam de forma macabra, envoltos em túmulos de um cemitério sob a névoa da calada da noite e delineadas com as datas de seus respectivos falecimentos, sob uma locução com tom de terror e com o texto a alertar os jovens de que o “Rock dos hippies” levava à morte.

Tal propaganda foi exibida em diversos horários, no entanto, estrategicamente reforçada durante a exibição dos episódios do seriado: “The Monkees”, na ocasião exibido em período vespertino.

Pois então, em todos os seus intervalos comerciais, foram exibidos tais comunicados macabros por semanas, naturalmente para se atingir um público adolescente que gostava de assistir tal “sitcom” norte-americana baseada nas aventuras de um grupo de Rock em seus bastidores.

Tal seriado fora produzido entre 1966 e 1968, portanto, em 1971, já estava na terceira ou quarta reprise sistemática, no entanto era ainda muito apreciado e tinha tudo a ver, embora fosse uma sitcom de TV, com a movimentação em torno do Rock, mesmo por que, essa banda saiu da ficção e se jogou na cena artística como um grupo de Rock genuíno a cultivar uma carreira real etc. e tal.

Enfim, é inacreditável, mas eu ali no alto dos meus parcos onze anos de idade e já muito fã de inúmeros grupos de Rock e Soul, não perdia o seriado dos Monkees, que aliás, assistia desde 1968, e mesmo sendo criança, absolutamente ingênuo e sem nenhum aprofundamento sobre a movimentação política, geopolítica e uso da propaganda como arma de linchamento moral para enfraquecer opositores, no entanto, já percebia a má intenção vilipendiadora e odiava aquela propaganda macabra.

Bem, ao tentar destruir a reputação de três (ou quatro, inclua-se Brian Jones nesse rol), astros do Rock, a utilizar o falecimento desses artistas motivados por seus abusos pessoais, além de ter sido um ato imundo por natureza, em nada desabonou a obra e o legado artístico que eles deixaram. Neste caso, o tiro saiu pela culatra, bem feito para esses energúmenos.

Não recomendo tais abusos cometidos por substâncias lícitas ou ilícitas e certamente não faço uso de tais artifícios químicos e etílicos na minha vida pessoal, portanto, posso morrer por acidentes de toda espécie que a mobilidade nos transportes pode proporcionar, violência urbana decorrente de uma abordagem criminosa, ou qualquer doença que venha a debilitar-me, mas jamais por uma overdose ou degradação gerada pelo álcool, portanto, eu absorvi muito bem a arte deles, mas não tenho nada a ver com as suas escolhas pessoais no sentido de me influenciarem a tomar o mesmo caminho.

E sim, continuo a detestar o oportunismo com o qual usaram as mortes desses artistas para atingir os seus objetivos torpes, a distorcer toda a situação e tal como abutres, a se aproveitarem para disseminar a maledicência. 

Além disso, moralismo por moralismo, se morrer de overdose é algo nada recomendável, usar armas deliberadamente para impor a ideologia de seu interesse, é sem dúvida algo muito pior e isso é um fato concreto e não apenas uma mera opinião pessoal.

domingo, 12 de novembro de 2023

Crônicas da Autobiografia - Zé do Caixão do Rock - Por Luiz Domingues

        Aconteceu no tempo d'A Chave do Sol, entre 1982 e 1983

Quando A Chave do Sol iniciou as suas atividades, por volta de meados de julho de 1982 (consideramos a data de 25 de setembro como da fundação oficial por ter sido o dia do primeiro show, mas na verdade, os primeiros esforços para montar a banda se iniciaram na segunda quinzena de julho), foi um tempo também difícil na minha vida particular, pois na prática, a minha banda cover que me provia renda, o “Terra no Asfalto”, já havia encerrado atividades, os trabalhos avulsos que eu fizera até então também estavam a rarear e a própria, A Chave do Sol, somente sinalizaria começar a render dividendos em termos de cachês, algum tempo depois e de fato isso veio a ocorrer em dezembro desse mesmo ano, porém, a se refletir de uma forma módica, condizente com a dura labuta de se construir uma banda de Rock autoral e sem nenhum esquema empresarial por trás, ou seja, demorou para eu poder ter uma folga no meu apertado cinto financeiro.

Como consequência desse momento de penúria econômica, eis que precisava me deslocar constantemente a fazer uso do transporte público. Isso nunca me incomodou e pelo contrário, mesmo quando eu pude comprar um carro particular, sempre gostei mais de usar o serviço do metrô do que dirigir e ainda penso assim.

No entanto, por ter que carregar o meu instrumento para os compromissos e a se tratar de um instrumento importado em um tempo no qual a importação estava proibida no Brasil e daí ser muito mais caro do que o normal, e também por ser o meu único instrumento na ocasião, é claro que me preocupava muito em carregá-lo pelas ruas, a correr o risco permanente de ser assaltado e ficar doravante sem meios para trabalhar, pois é evidente que se tratava da minha ferramenta primordial e pior, única na ocasião.

Mas não foi apenas o medo que me atormentara nesses tempos mais difíceis. O fato de eu não possuir na época um “bag” ao estilo de uma mochila para se carregar o instrumento nas costas, me obrigava a usar o “case” (estojo), clássico original da Fender, ou seja, a se tratar de um caixote retangular, pesado, difícil de se carregar pela mobilidade e aerodinâmica do artefato em si.

Isso por que se carregado pela alça, como se fosse uma maleta, por conta de ser retangular e enorme, gerava o desconforto de provocar o desequilíbrio constante ao seu condutor. Se fosse carregado em pequenas distâncias, tudo bem, mas para se caminhar na rua, a desviar de pessoas, atravessar ruas e avenidas e a conduzi-lo para o metrô ou ônibus, e ter que passar por catracas, era extremamente dificultada a sua operação de manuseio.

E um dado a mais: chamava em demasia a atenção. Em um ambiente musical, tudo bem, os colegas olhavam e sabiam se tratar de um estojo clássico para um baixo Fender, contudo, pelas ruas e a passar por leigos nesse universo, aquele enorme objeto gerava uma profunda estranheza. 

Eu já estava acostumado a chamar a atenção negativamente no âmbito social desde os anos setenta por conta da minha aparência ao estilo Rocker/Hippie sessenta-setentista, pelas vestimentas e sobretudo pelo uso de uma cabeleira longa, mas ali na ambientação de início da década de oitenta, além da habitual estranheza gerada entre diversas pessoas sem nenhuma afinidade com as tradições do Rock, eu passei também a enfrentar a animosidade das tribos oitentistas hostis a esse tradicionalismo, sedentas pelas provocações, escárnio e até ameaça de agressão da parte dos intolerantes que passaram a odiar e perseguir os hippies setentistas que haviam sobrado pelas ruas. E assim, foram muitas as histórias desagradáveis, algumas inclusive já narradas em outras crônicas já publicadas.

Mas nesta crônica eu quero contar a história curiosa de um balconista de um bar que ficava localizado bem perto da esquina da rua Tuiuti com a Avenida Celso Garcia, no bairro do Tatuapé, na zona leste de São Paulo. 

Eu precisava passar por ali todo dia para me dirigir à estação do metrô mais próxima da minha residência, três quarteirões adiante e muitas vezes a carregar o pesado “case” do baixo Fender, e ante tal rotina, o sujeito quando me via, sempre demonstrava no semblante que achava a minha persona como alguém absolutamente anormal para os seus padrões de entendimento cultural.

Até aí, tudo bem, eu não me surpreendia com tal tipo de reação e pela sua feição, já antevi desde a primeira vez que seria uma questão de tempo para o sujeito ir além da expressão facial de espanto e não satisfeito, partir para algum tipo de gracejo verbal e certamente para um tipo de pessoa como ele, sem muito recurso educacional e cultural, seria certamente algum tipo de escárnio bem típico com conotação sexual ao associar o comprimento do meu cabelo à feminilidade não coadunada com a minha condição masculina, bem ao estilo do humor grotesco dos programas popularescos da TV, algo como: “-olha a cabeleira do Zezé, será que ele é?” Ou outra colocação desse baixo nível.

Mas eis que um dia eu passei pela porta daquele bar bem encardido de quinta categoria e foi então que o sujeito criou coragem e gritou: -“olha o Zé do Caixão!”   

Por esse tipo de gracejo eu realmente não esperava, mas claro que entendi de imediato que o sujeito associara o meu estojo de instrumento a um caixão de defunto e certamente que o meu visual, por conseguinte, o remetera à figura do personagem: “Zé do Caixão”, imortalizado pelo genial diretor de cinema e ator, José Mojica Marins.

E assim se sucedeu, pelo menos entre 1982 e 1983, que eu passei por ali a caminho do metrô, diariamente para ensaiar ou cumprir compromissos com A Chave do Sol.

Nem sempre eu estive com o “case” em mãos, é bem verdade, pois quando a banda passou a contar com um local fixo de ensaios, montado em um quarto na edícula da residência da família Gióia, o meu instrumento mais permaneceu guardado em nossa sala de ensaios permanente. 

Entretanto, ainda assim, pela força de diferentes circunstâncias, muitas vezes eu tive que levá-lo para a minha casa e reconduzi-lo ao ensaio a posteriori, e assim, se tornou uma rotina passar na porta desse malfadado bar e o balconista galhofeiro falar em voz alta aos seus clientes que o “Zé do Caixão acabara de passar pela calçada”.

Por volta de 1984, isso não ocorreu mais, pois o rapaz já não trabalhava mais ali, provavelmente e nunca mais eu me aborreci, embora possa afirmar que isso jamais me incomodou sobremaneira ao ponto de eu considerar como uma ofensa que me obrigasse a reagir para tomar uma posição de repúdio. Apenas achava desagradável a insistência na piada e ao mesmo tempo, a considerar triste a ocorrência, por denotar um sinal de ignorância alheia.

Ou então, se eu levasse a brincadeira ao pé da letra, eu deveria ter rogado uma praga para o infeliz e por meio dessa feitiçaria, ele morreria e alguém encarnaria no seu cadáver na mesma noite, bem ao gosto do verdadeiro Zé do Caixão.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Crônicas da Autobiografia - Fanatismo a Gerar Vilipêndio Gratuito - Por Luiz Domingues

            Aconteceu no tempo do Pitbulls on Crack em 1995

Esta pequena ocorrência não diz respeito diretamente à minha banda na ocasião, mas esteve indiretamente ligada em sua órbita.

Foi em algum dia de junho de 1994 que um compromisso surgiu para a nossa banda e seria uma entrevista na qual todos os componentes participariam. Para facilitar a logística dessa ação, combinamos de nos encontrar em uma estação do metrô, especificamente a estação Paraíso.

Eu morava relativamente perto, cheguei primeiro e em seguida, o guitarrista solo da nossa banda, Deca, apareceu em uma das entradas dessa estação em que havíamos marcado o encontro.

Encontro aguardávamos a chegada dos outros dois componentes da nossa banda, ficamos a conversar animadamente, quando eis que vimos duas moças na faixa dos trinta anos mais ou menos, a nos olhar de uma maneira acintosa.

Elas não pareciam ser fãs de Rock and Roll, portanto, descartamos de imediato a hipótese de que elas pudessem ter nos reconhecido por nossa atuação como músicos de uma banda de Rock, que se não estava no patamar de celebridade mainstream, certamente mantinha exposição dentro desse nicho, com bastante aparições na MTV, por exemplo e isso poderia ocorrer, acaso essas moças fossem adeptas dessa cultura típica da década de noventa.

Muito pelo contrário, elas estavam trajadas de uma maneira bem característica a deixar claro que faziam parte de alguma denominação religiosa e além do mais, os seus olhares estavam carregados de um indisfarçável incômodo, certamente relacionado à nossa presença naquele hall de entrada da estação.

Relevamos, no entanto, pois estávamos entretidos em nossa conversa e a nossa única preocupação foi na verdade que os nossos colegas não demorassem em demasia para que não chegássemos atrasados ao estúdio de uma emissora de rádio.

Infelizmente, as duas moças não se contiveram apenas a nos mirar com semblantes de desaprovação e assim, eis que vieram em nossa direção com passos firmes a denotar a determinação de nos abordar.

A interromper-nos de uma forma rude, a mais impetuosa das moças se pôs a falar de uma maneira bastante agressiva e a usar de empáfia igualmente, ao dizer que nós que éramos “metaleiros” que cultuávamos o demônio deveríamos abandonar a “vida errática que levávamos” e nos rendermos ao seu Deus. Ao prosseguir no seu discurso inconveniente, afirmou que nós deveríamos cortar os nossos respectivos cabelos longos e pararmos imediatamente de ouvir a música do “demônio”.

Perplexos pela inconveniência, agressividade e claro, pelas asneiras que essa moça desconhecida perpetrara contra nós, perguntamos de pronto para ela: -“quem lhe disse que somos metaleiros?”

Tal pergunta, tecnicamente a dizer, foi um questionamento correto para início de conversa, porém, por outro lado se revelou como um erro de nossa parte, pois para uma pessoa de baixo nível cultural e com a mente carcomida por preconceitos e falta de discernimento completo, fazê-la entender tal nuance não faria nenhum sentido para ela.

Claro que ante ao seu ataque tresloucado, ela nem parou para pensar e buscar entender a nossa pergunta, e pelo contrário, seguiu a sua verborragia insana a nos dizer que nós servíamos os “demônios do inferno” e que tais.

Foi quando o Deca, que sempre foi um brincalhão contumaz, lançou uma ironia no ar, ao dizer que usávamos cabelos longos iguais ao do Ser que ela seguia tenazmente e sem entender a piada por ele lançada, ela retrucou com enorme arrogância que: -"somente ele teria permissão do seu Deus para usar cabelos longos, segundo constava em suas escrituras sagradas". E falou isso como se fosse um axioma irrefutável, o que nos causou espanto pela demonstração de extrema ingenuidade e também pela incrível falta de noção civilizatória de sua parte.

Cada vez mais histérica, a fanatizada seguidora de um orientador que certamente devia instruir os seus pupilos a abordar pessoas pelas ruas em nome das suas crenças paradigmáticas, ela aumentou ainda mais o volume de sua voz, a transformar aquela situação inconveniente em um escândalo, a chamar a atenção de outras pessoas que estavam ao nosso redor.

Foi quando o Deca mais uma vez resolveu investir no escárnio para encerrar a questão e ao usar um gestual teatralizado e bem exagerado, soltou a sua voz como um tenor de ópera e assim proferiu diversas palavras de ordem com sentido de uma ode a um determinado demônio infernal, e assim a fornecer a confirmação que ela esperava e certamente com o intuito de ironiza-la.

Então, a brincadeira dele surtiu efeito, pois as duas moças saíram a correr daquele hall, já a entoar cânticos que possivelmente elas usavam como algum tipo de proteção contra forças infernais, por orientação do seu tutor. Ou seja, a estratégia deu certo para espantar aquelas duas moças fanatizadas e completamente desprovidas de  educação básica.

Ironia das circunstâncias, tudo isso aconteceu sem que elas soubessem que éramos músicos e que a nossa banda detinha o nome de: Pitbulls on Crack, ou seja, se tomassem conhecimento desse detalhe, imagine o teor do chilique que teriam protagonizado...

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Crônicas da Autobiografia - Maratonas de Rock Inesquecíveis - Por Luiz Domingues

Aconteceu no preâmbulo e durante a trajetória do Boca do Céu, portanto, entre 1974 e 1979

Um show de Rock continha uma outra conotação nas décadas de 1960 e 1970, desse fator não há dúvida. A música ultrapassara todas as fronteiras e se colocava na linha de frente da contracultura, portanto, todos os signos inerentes se faziam presentes com enorme contundência, a caracterizar um conjunto de fatores que apontavam para a perspectiva de se quebrar paradigmas de toda a ordem.

Por conseguinte, tal fator desencadeador gerou condições propícias para a construção de um mundo mais fraterno, ao menos em tese, e sobretudo em nossos sonhos mais utópicos, porém humanistas e bem longe da barbárie gerada pelo egoísmo desenfreado em prol do capitalismo selvagem. Daí a provocar a euforia que foi observada principalmente na década de sessenta, foi uma consequência bem natural.

Enfim, o show de Rock não era apenas um recital de música, mas envolvia uma série de outros fatores de outras motivações a se observar aspectos sensoriais, intelectuais e sobretudo a conter implícito o sentimento de comprometimento mútuo com a mesma causa.

Tal sentimento de pertencimento a um ideal maior, norteou os shows de Rock ocorridos nessas décadas. Aliás, para espelhar bem o que representou, digo que uma vez um grande guitarrista que eu conheci bem no final da década de setenta e com o qual eu tive o prazer de tocar por um breve período (Fernando “Mu”, guitarrista da banda cover, “Terra no Asfalto”, pela qual atuamos juntos), me falou certa vez com ar de melancolia, já a pressentir que o panorama estava a mudar drasticamente no início de 1980, quando afirmou isso: -“o meu sonho sempre foi tocar para aquela plateia imensa de freaks, dentro daquela perspectiva de que todos, do palco à audiência, éramos buscadores do mesmo sonho”, mas pelo jeito essa realidade não existe mais”. Em suma, o saudoso e talentosíssimo “Mu”, resumiu bem o que tínhamos e perdemos, infelizmente.

E por falar em shows de Rock com tal carga de valores extra-musicais implícitos, eu tive o prazer de absorver ao menos o fim dessa "Era" e assim, essa foi a minha rotina ao frequentar tais espetáculos, desde um pouco antes da formação do Boca do Céu (a minha primeira banda), e por conseguinte, foi algo muito marcante durante a trajetória dessa banda, no sentido de que eu e meus colegas do grupo fomos juntos a inúmeros shows de Rock dessa natureza e mais do que o prazer pela empreitada, considerávamos tais oportunidades como uma espécie de curso intensivo e importante para a nossa própria formação, a se considerar que éramos aspirantes a artistas.

Nesses termos, além dos shows individuais protagonizados por diversos bandas em teatros e espaços culturais os mais diversos, aconteciam também os shows compartilhados com duas ou mais atrações no mesmo espetáculo e mais que isso, houve em profusão entre 1974 e 1977, principalmente, de muitos festivais e também a contar com as ditas “maratonas” que vinham a ser shows múltiplos com várias bandas, todos com curta duração (o que no meio artístico é também conhecido como: “show de choque”), e realizados sobretudo em ginásios de esportes de grandes clubes da cidade de São Paulo. 

Diferentemente da dinâmica dos festivais de longa duração ao ar livre, nos quais as bandas tocam primordialmente, cada uma delas, o seu show na íntegra, como se fosse um espetáculo individual feito em teatro, nas maratonas, a ideia era ter sim, muitas atrações como chamariz de público, mas obrigatoriamente com pouco espaço de tempo para cada uma delas poder usar, ou seja, a se revelar como os tais shows de choque, com uma duração entre 15 a 30 minutos apenas, a depender de cada circunstância que se fazia premente.

Dentro desse parâmetro, não foram poucas as maratonas que eu tive o prazer de assistir, em ginásios de esportes de clubes esportivos famosos e populares pela mobilização do futebol, como o Palmeiras, Corinthians e Portuguesa e outros sem essa mesma tradição com esporte profissional de massa, mas importantes na cidade, como o Ginásio do Ibirapuera, pertencente ao governo estadual e Clubes Pinheiros e Paineiras, por exemplo.

Como atrações, havia um grupo de bandas e artistas solo que se revelaram como recorrentes e hoje eu sei que muitos deles tinham o mesmo empresário envolvido com os organizadores dessas maratonas, mas tudo bem, tal tipo de artimanha empresarial faz parte do jogo de bastidores do show business e não se trata de algo ilícito.

E assim, foi comum assistirmos muitas apresentações dos Mutantes, O Terço, Som Nosso de Cada Dia, Rita Lee & Tutti-Frutti, Made in Brazil, Joelho de Porco, Novos Baianos, Sindicato, Casa das Máquinas, Patrulha do Espaço e Humahuaca, principalmente, como uma espécie de turma fixa, mas haviam outros tantos grupos que não participavam de todas, mas de algumas, casos do Papa Poluição, Apokalypsis do Zé Brasil & Silvia Helena, Cornélius & Santa Fé, Pholhas, O Peso, Vímana, A Bolha, Bixo (com x mesmo) da Seda, A Chave, Terreno Baldio, Odair Cabeça de Poeta & Grupo Capote, Placa Luminosa, Bendengó, Flying Banana, Flamboyant, Veludo, Burmah, Neblina, Bagga’s Guru e outras.

E mais uma marca indelével: diversos artistas mais identificados com a cena MPB a participarem e leve-se em conta que a MPB vivera uma fase que vinha desde o final dos anos sessenta, com forte aproximação com o Rock e também com a Black Music, portanto, foi comum vermos artistas dessa vertente a se apresentarem e serem muito apreciados, casos de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Walter Franco, Jards Macalé, Jorge Mautner, Belchior, Ednardo, Alceu Valença, Geraldo Azevedo e até artistas ligados à música instrumental, com viés jazzistico, casos de Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Cesar Camargo Mariano (que além do trabalho de acompanhar a grande cantora, Elis Regina, montara uma banda para praticar Jazz-Rock instrumental e quase a flertar com o Rock Progressivo e assim, tal tecladista apareceu em algumas maratonas e foi bem apreciado pelos Rockers e não poderia ser de outra forma, dada a sua excelência musical).  

Pelo aspecto lúdico de tais maratonas, eu não posso deixar de observar o quanto foi mágica a atmosfera na porta de tais ginásios em que elas transcorreram. Havia fortemente no ar aquele sentimento de união que permeava a todos, a denotar compartilhamento de um mesmo sonho, a tornar tal convívio como algo que foi verdadeiramente incrível.

E claro, a expectativa pelo “Concerto de Rock” que cada banda faria naquelas noitadas memoráveis foi um sentimento a mais nesse caldeirão de emoções. Adorávamos todas em suas diferentes propostas artísticas e mediante as suas particularidades, muito ricas por sinal.

Que prazer então era assistir Os Mutantes a tocar as suas longas suítes progressivas tão esvoaçantes, O Terço a desfilar o seu Prog-Folk-Rock, a explosão brasileira percussiva dos Novos Baianos, a ironia fina do Joelho do Porco, Rita Lee em seus melhores dias e a bordo de uma super-banda de Rock (Tutti-Frutti), o som progressivo cerebral e dançante ao mesmo tempo do grande Som Nosso de Cada Dia, a festa da Casa das Máquinas e o Rock básico e super fiel aos princípios, praticado pelo Made in Brazil, entre outras tantas atrações.

Lembro-me muito bem daquela sensação de euforia que era entrar nos locais e observar o palco montado. Aquela predisposição clássica do Rock setentista em termos de haver uma quantidade enorme de amplificadores a configurar uma muralha toda perfilada atrás da linha da bateria e esta, por sua vez, a se manter sobre um enorme praticável e a se revelar enorme mediante uma incrível quantidade de peças e pratos reluzentes aos efeitos da iluminação. E a não menos impressionante montanha de teclados bem ao sabor setentista. 

Hoje em dia o músico leva em conta a praticidade e geralmente toca com um teclado único que é todo computadorizado e contém “presets” com diversos tipos de teclados de ordem “vintage” mediante uma infinidades de timbres disponíveis em um "software" para prover todas as necessidades de uma banda, mas naquele tempo, para poder contar com essa diversidade sonora, só era possível ao tecladista fazer uso dessa diversidade sonora se montasse um teclado ao lado do outro e muitos amontoados uns sobre os outros para facilitar o malabarismo que tais instrumentistas faziam para tocar vários deles, simultaneamente. Falta de praticidade a parte, como era lindo ver aquela armação toda da "tecladeira".

E a iluminação? Que obra de arte a mais a ornar um genuíno Concerto de Rock! E nesse quesito visual, é preciso destacar que muitas bandas usavam bastante o recurso do gelo seco para criar atmosferas glaciais incríveis no palco. Não há nada mais setentista que o efeito do gelo seco, que eu sei que era arcaico e desagradável para ser produzido nos bastidores, no entanto, o efeito visual que era gerado ao público, se mostrava inigualável, posso atestar.

No mais, a pensar exclusivamente como espectador e muitos anos antes de passar a fazer shows de Rock e conhecer todos os meandros de uma produção (portanto, a perder particularmente bastante o glamour idealizado que eu mantinha de outrora), digo que na minha memória como adolescente e aspirante a Rocker, lembro-me da excitação que havia pelo início do espetáculo.

Sei que é uma tendência humana normal para qualquer tipo de situação e não se trata de uma exclusividade de um show de Rock, mas devo salientar que aquela expectativa pelo início do show era um momento extremamente interessante em termos de foco de atenção coletivo, ao ponto de qualquer pequeno falso alarme gerar uma catarse incontrolável.

Por exemplo, se um roadie que fosse instruído a falar: “ei” em um microfone qualquer do palco para o técnico checar se ele estava a funcionar, motivado por uma dúvida surgida de última hora (tal teste de última hora era/é algo comum nos bastidores de qualquer produção, assim como um spot de luz acendido), no entanto, bastava um sinal desses para inflamar a plateia, que era impelida a deduzir que o show começaria, mas pelo contrário, não se tratava disso exatamente naquele breve instante.

E quando começava enfim a apresentação, aquela explosão de som, luz e movimentação dos artistas no palco, em pleno exercício da sua misè-en-scene, se configurava como um irresistível “tour de force” a denotar uma dose cavalar de estímulos múltiplos, ou seja, a configurar toda a síntese do que o Rock representava para todos nós.

Amizades se forjaram naqueles ginásios esportivos, hall de entrada de teatros, filas para comprar ingressos ou para adentrar os ambientes. Muitas vezes, víamos amigos e outras pessoas que identificávamos visualmente apenas, presentes em outros ambientes, mas análogos aos shows de Rock, tais como salas de cinema de arte, peças teatrais com algum viés contracultural, palestras de filósofos e gurus indianos, galeria de arte, exposições e bibliotecas, ou seja, a amálgama contracultural nos impulsionava a estarmos atraídos pelos mesmos interesses, mesmo que não fosse um show de Rock propriamente dito, porque a nossa fome de cultura embasada pela nossa imersão na contracultura, nos impelia a buscar o máximo de informações.

E o aroma de patchouly a pairar no ar...sim, nove a cada dez “freaks” usavam o mesmo perfume e era encantador nos identificarmos também por tal sinal tão sutil. E mais incisivo ainda, era comum nos cumprimentarmos com o gestual típico dos dois dedos a sinalizar a saudação hippie de “paz & amor”, ou seja, mesmo que tenha chegado com grande atraso, o movimento hippie ecoou no Brasil, mesmo quando vivíamos uma ditadura a impor valores diametralmente opostos e nesse sentido, nos deu ao menos um tempo ínfimo para que sonhássemos.

Ao final das maratonas, claro que muitos abusavam dos efeitos do álcool e de drogas em geral e simplesmente ficavam tão fora de órbita que simplesmente perdiam grande parte dos espetáculos, deitados, ou melhor desacordados pelos cantos das arenas, mas definitivamente esse nunca foi o meu caso, pois eu aproveitava cada segundo daquela experiência sensorial total.

E ainda guardo na memória as pequenas lembranças de ocorrências ocorridas em maratonas: 

1) Baby Consuelo em estado de gravidez avançada e a dançar alucinadamente no palco sempre a usar um vestido curtíssimo.

2) Sérgio Dias a tocar cítara em meio às “Brumas de Avalon” graças ao gelo seco.

3) Tico Terpins a usar e abusar do deboche e sarcasmo.

4) Os irmãos Vecchione a comandar o Rock in natura e sem concessões, Rita Lee a desfilar a sua cilibrina do theremin sob o som da sua super banda, o Tutti-Frutti.

5) O sexteto do Papa Poluição a entrar no palco cantando a capella, da portaria do teatro, surpreendendo a plateia vindo pelas suas costas em direção ao palco. 

6) Jards Macalé a cometer experimentalismo misturado com samba em shows de Rock sob intenso nonsense e enorme criatividade.

6) Walter Franco a nos falar sobre poesia concreta e meditação transcendental tudo ao mesmo tempo.

7) O profeta Jorge Mautner a discursar sobre o conceito do “Kaos” com “K” e tocar violino (lembro-me dele a parar para afinar o instrumento certa vez e alguém da plateia brincar com ele: -“ toca Stravinsky”, o que lhe despertou uma sonora gargalhada...

Era impossível não dançar ao som da Casa das Máquinas, voar com Pedrão & Pedrinho a bordo do sensacional Som Nosso de Cada Dia e não apreciar a docilidade folk do Bendengó e do Flying Banana.

Como não se empolgar com o Rock Progressivo ultra técnico do Terreno Baldio? A alcunha de ser supostamente o “Gentle Giant brasileiro” lhe caia bem, certamente, assim como o som viajante do Veludo nos fazia voar e o Apokalypsis do Zé Brasil, idem. A Barca do Sol e o Recordando o Vale das Maçãs com o seu som Folk-Rock a la Gryphon ou Fairport Convention, digamos assim e que bonito que faziam.

O Papa Poluição a nos mostrar a fusão do Rock paulistano via Beatles, ritmos nordestinos e a poesia folk/psicodélica das canções de Belchior, das quais eram parceiros, foi inesquecível

A Cor do Som em seu início de trajetória fora do âmbito dos Novos Baianos, com aquela estética do “Chorinho” oriundo da velha guarda do Samba, via Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga, mas devidamente vestido com a roupagem do Jazz-Rock super eletrificado, nos encantara e por muitas vezes nós vibramos com a sua música de alta precisão.  

Algumas bandas fora do eixo Rio-São Paulo que eu já citei, tocavam ocasionalmente, mas muitas simplesmente não vieram à capital paulista por conta da logística complicada, cachês não condizentes com as necessidades etc. 

Não me recordo da presença do Ave Sangria, e se veio, eu perdi, infelizmente. Assim como o maravilhoso, Som Imaginário. 

Não me lembro das presenças dos mineiros do Clube da Esquina a se apresentarem juntos, a não ser shows solo de Milton Nascimento e Beto Guedes que eu tive o prazer de ver, e o super trio, Secos & Molhados já havia encerrado atividades, uma grande lástima e eu não os vi em ação, lamento muito. 

Não me recordo de Sá, Rodrix & Guarabyra, mas Zé Rodrix em show solo chegou a acontecer (mas eu não vi, perdi e lastimo). 

Todavia, tive o prazer de ver Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti com o seu som instrumental muito mais para o Jazz, entretanto sem gerar nenhuma controvérsia e muito pelo contrário, sendo muito aplaudidos pelos Rockers. 

Enfim, citei alguns exemplos apenas, porém, creio que o leitor absorveu bem o quanto foi impactante ter presenciado as maratonas de Rock setentistas que acompanhei com muito entusiasmo em diversos endereços paulistanos. Dessa forma, posso afirmar que foi mais um fator vital para motivar a minha entrada no mundo da música e que contribuiu demais para a minha formação cultural.