Aconteceu no tempo do Boca do Céu, no início de 1979No avançar de 1978, a pressão familiar em torno de uma possível resolução sobre qual
rumo profissional eu adotaria para o resto da vida, de forma oficial, a
respeito da escolha de uma faculdade para cursar e me profissionalizar
em termos de algo fora da música, ganhou volume. Tudo bem, eu ainda
estava no segundo ano do curso secundário e os meus pais sabiam muito
bem que eu teria que completar o curso em 1979, para prestar o exame
vestibular somente ao final desse ano.
No
entanto, eu estava mesmo é muito determinado a firmar posição para me
tornar músico e na prática, eu já me considerava assim desde abril de
1976, quando entrei para a formação do Boca do Céu, a minha primeira
banda de carreira e mesmo sem saber tocar uma única nota musical na
prática, nessa época, a minha vontade sempre foi ferrenha e a me
acompanhar antes mesmo de eu colocar a "mão na massa", a tratar de
aprender a tocar, simultaneamente ao participar das atividades
incipientes dessa banda formada por adolescentes, incluso eu mesmo.
Em
suma, quando o ano de 1979 entrou, a pressão familiar começou a
aumentar, na medida pela qual se ainda me faltava completar o curso
médio, eu precisava ganhar dinheiro através de qualquer tipo de ocupação
em paralelo aos estudos. O problema foi que a banda não avançara e não
teve nesse instante, nenhuma perspectiva de angariar rendimentos em
torno de possíveis cachês, tampouco outras receitas advindas e pelo
contrário, o grupo estava também a viver um momento de crise interna que
culminou com o encerramento de suas atividades em abril desse ano.
Eu
só começaria a ganhar alguma remuneração com música a partir de
outubro, quando fui convidado para entrar na banda de apoio do cantor,
pianista e compositor, Tato Fischer, e dali em diante, também a participar de outros trabalhos que arrolei como "trabalhos avulsos" para efeito de construção da minha autobiografia, além de também ter feito parte da primeira formação do Língua de Trapo nesse período.
Mas
exatamente nesse ponto do início de 1979, com o Boca do Céu em
frangalhos e a caminhar para o seu final inevitável e sobretudo por me
enxergar sem outras perspectivas de imediato, eu precisava de dinheiro e
a ouvir os boatos de vários conhecidos meus nas mesmas condições, ou
seja, aspirantes a artistas igualmente e quase todos eles completamente sem dinheiro e nada dispostos
a cortar o cabelo e a usar roupas sociais tradicionais, pois ainda
havia essa forte determinação da parte desses hippies convictos, dos
quais me incluía, a não abandonar as marcas de nossos ideais, eis que
busquei alternativas.
Um
primeiro movimento ocorreu nesse sentido de se buscar a solução
conciliadora para tal conflito (ganhar dinheiro versus fazer parte do
"sistema careta"), quando um amigo meu e que já estava a se embrenhar no
mundo da arte, por atuar como músico de apoio de uma companhia teatral,
me disse que alguém que ele conhecera nesse meio da dramaturgia, lhe
dissera que o teatro municipal de São Paulo abrira vagas para o curso de
cenotécnica, ou seja, a formar profissionais que cuidam do maquinário
pesado que existe nas coxias dos teatros tradicionais e bem equipados,
para manipular cenários que servem para ilustrar as peças teatrais e
também shows musicais e que pasmem, o curso não seria cobrado, mas ao
contrário, pago pelo teatro aos interessados, como uma espécie de bolsa
de estudos e que posteriormente, depois de formado, o profissional recém
formado, ressarciria o poder público no caso, a descontar o
investimento educacional empreendido, de seu possível salário assegurado como funcionário público a serviço da secretaria de cultura municipal.
Claro,
fomos correndo nos inscrever, mas a nossa decepção foi instantânea, no
sentido de que ao chegarmos no posto de atendimento do teatro, fomos
informados que as vagas eram limitadas ao extremo e que haviam sido
preenchidas muito rapidamente.
Cerca
de alguns dias depois, esse mesmo amigo que estava na mesma situação,
me informou que um outro trabalho havia surgido e que não era ligado à
arte, longe disso e a despeito de estar a serviço de tudo o que
odiávamos (sistema, consumismo, materialismo etc), era flexível no
tocante à aparência dos funcionários, ou seja, estavam a contratar
jovens cabeludos com aparência hippie, sem restrições.
E
lá fomos nós a um escritório enorme, localizado em um ponto alto da
avenida Brigadeiro Luiz Antonio, bem perto do cruzamento com a avenida
Paulista. Eu, esse amigo que me dera a dica e um primo meu, que também
era amigo de longa data do meu amigo, chegamos lá e fomos direcionados a
um salão rústico instalado no fundo do quintal e sem nenhuma
burocracia, apenas fornecemos os nossos respectivos dados pessoais e
passamos por um treinamento muito simplório, porém eficaz, no sentido de
que o trabalho era fácil de ser executado em tese, pois na prática e a
se tratar de algo que não foi dito nesse treinamento, mas que
descobrimos muito rapidamente, mantinha a perspectiva de coletar
dissabores múltiplos no cotidiano, através do trato direto com populares que teríamos, além de
haver pressão por resultados e a se revelar cansativo ao extremo no
aspecto físico, propriamente dito.
Ali
na hora dessa palestra didática, a simplicidade do funcionamento desse
trabalho nos animou tanto quanto o fato de que realmente conforme fora
ventilado, a tal empresa não se importava com a aparência de seus
contratados e assim, a profusão de hippies cabeludos como nós se mostrou
enorme dentro daquele salão.
E
do que se tratou? Bem, o trabalho era de campo, a fazer pesquisa de
mercado. O foco eram as propagandas de produtos diversos veiculados na
TV e nos cabia indagar se as pessoas consumiam tais produtos no seu
cotidiano, motivados por tais propagandas comerciais ou não.
Então,
entre janeiro e fevereiro de 1979, em meio aos ensaios do Boca do Céu
em seus últimos dias e minha obrigação escolar diária a cumprir o
chamado na época, "3º ano colegial", estive quase que diariamente a
preencher as manhãs e tardes dos dias úteis e dos sábados também, a
tocar a campainha de residências a esmo para solicitar que os moradores
preenchessem um enfadonho questionário, a lhes aborrecer de uma forma
contumaz.
Bem,
não precisei cortar o cabelo e nem usar terno e gravata, porém, para
ganhar um pagamento em torno de uma diária de trabalho, a labuta se
mostrou terrível. Tínhamos que chegar na sede dessa agência bem cedo e
as equipes de trabalho eram montadas a esmo, ali na hora, igual a
formação de times de futebol de salão nas aulas de educação física das
escolas, ou seja, de forma aleatória. Um coordenador ia conosco em uma
"Kombi" e no percurso, nos falava sobre qual seria a pesquisa do dia,
enquanto distribuía os papeis e as pranchetas e em qual bairro iríamos
trabalhar, isto é, nunca era planejado previamente, mas sempre a caminho
do novo destino, dentro do carro.
Ao
chegarmos em um ponto de um bairro, ali se demarcava a posição que o
carro ficaria e se distribuíam as ruas para cada trabalhador percorrer.
Havia também o perfil desejado, que só era revelado na hora. Por
exemplo, em um determinado dia o plano era conversar com pessoas de 20 a
25 anos de idade, em outro, tinha que ser de 45 em diante, ou mesmo
somente com mulheres ou homens, conforme o produto que seria pesquisado.
E
havia a cota de cada um. O coordenador estabelecia um número mínimo de
pesquisas realizadas, que parecia ser uma meta fácil, mas na prática, ao
longo do dia, se tornava sempre muito difícil cumprir, pois a
quantidade de pessoas que simplesmente se recusava a participar era
enorme.
Foi
nesse emprego provisório que eu pude sentir o que um carteiro sente no
seu cotidiano, ao enfrentar o calor escaldante, chuvas torrenciais de verão, cães
raivosos e o trato com muita gente ignorante que hostiliza só por ser abordado e de
forma inexplicável pois a abordagem foi sempre muito respeitosa de
minha parte, cuidadosa inclusive, ao ponto de deixar clara a ressalva
que bastaria a pessoa recusar para eu parar de falar. Mesmo assim, tive
momentos de angústia ao ser ameaçado por brucutus incautos que sem
entender sequer o que eu falava exatamente, se sentiram "ofendidos" pela
minha abordagem, como se eu fosse um galhofeiro de ocasião e estivesse a
estabelecer algum tipo de escárnio gratuito para com eles.
Ocorreu
também que me deparei bastante com o tipo de dona de casa aflita, a alegar estar
com uma panela no fogo alto de seu fogão e não poder parar para atender
alguém na porta (ainda mais a se tratar de uma "bobagem" na concepção
delas e convenhamos, com razão), fato que foi muito comum e certamente
compreensível de minha parte, no sentido de que não queria conversa ou ao
se prontificar a me atender, se irritava quando o questionário se mostrava longo. De fato, alguém tocar a campainha da sua casa para lhe perguntar
se ao escovar o seu dente você usa a pasta cuja propaganda viu durante o
intervalo comercial da novela das oito do dia anterior, eu mesmo não
toleraria, portanto, me solidarizo com quem se indignou comigo nesse
aspecto.
Por
precaução, tomei sempre muito cuidado ao ser atendido por qualquer mulher bonita que me atendeu,
por ter sido mais do que necessária tal cautela, para não gerar nenhum problema com
pai, marido, irmão ou namorado bravo, e também cultivei a paciência com
jovem debochado que fingia ser colaborativo mas buscava apenas a
oportunidade para exercer o escárnio para comigo, como uma oportunidade fortuita que lhe batera a porta. Em termos ligeiramente
diferentes mas no mesmo campo, as crianças tendiam a agir dessa forma
igualmente.
E
no quesito da fraude, pairava o tom ameaçador do coordenador que
advertia os trabalhadores todo dia, assim que chegávamos em um bairro
qualquer: -"eu vou checar todos vocês, e se eu flagrar um questionário
fraudado, o pesquisador estará despedido sumariamente e nem precisa
voltar com a Kombi para a sede". De fato, todos os coordenadores agiam
dessa forma e eu nem posso me queixar, pois esse quesito da
credibilidade da pesquisa precisava ser preservado.E
por ser difícil preencher a cota (se não cumprisse, o trabalhador simplesmente não
ganhava o pagamento do dia, independente das pesquisas feitas e a sola
de sapato gasta completamente), algumas vezes eu confesso que apelei.
Desesperado para preencher a maldita cota e não perder o dinheiro,
muitas vezes já com o período noturno a se pronunciar e a pressão para
voltar para a Kombi a se mostrar insustentável, eu argumentei com
pessoas relutantes a participar pois eu dependia dela para não perder o
emprego e sensibilizadas, muitas responderam o enfadonho questionário
por pura dó da minha pessoa, a me salvar na última hora.
O
efeito da "barra, o que mais" também era desagradável para se impor ao
consultado. Essa técnica de questionamento nos fora ensinada no
treinamento, a consistir de sempre tentar extrair mais alguma informação
da pessoa, sobre as suas lembranças dos comerciais que haviam visto.
Por exemplo, se o assunto era "sorvete", ao questionar as impressões das
pessoas sobre os comerciais de TV sobre tal produto, o consultado
geralmente recorria mais ao seu campo afetivo do que ao comercial em
voga e nesse ponto, o escritório nos forçava a sempre tentar extrair
mais informações quando a pessoa falava pouco sobre o que lembrava
especificamente sobre o comercial comentado. E assim, perguntávamos: "o
que mais?". E ao acrescentar algo a mais, dividíamos as novas colocações
feitas pelas pessoas, por barras, daí ter se tornado folclórico entre
os entrevistadores a expressão: "barra, o que mais?"
Bem,
eis que um dia um grupo de entrevistadores foi chamado a uma sala da
sede e eu e meu primo estivemos selecionados entre eles. Comentamos
entre nós que seríamos despedidos, mas eis que veio a surpresa quando
nos foi comunicado que mediante uma suposta observação de diversos
coordenadores, nós havíamos sido bem cotados e assim, fomos convidados a
fazer parte de uma equipe para trabalhar em uma pesquisa feita em outra
cidade de outro estado. Com perspectiva de pagamento quase dobrado,
despesas de avião & hotel sem nenhum ônus para nós e diárias de
alimentação bem interessantes, fomos convidados e aceitamos trabalhar
nessa campanha a ser feita em Curitiba.
Bem,
o coordenador escolhido foi um rapaz que já conhecíamos do cotidiano
desse trabalho feito em São Paulo e que se mostrava bem sério na sua
atribuição e não muito mais velho do que nós. Fomos à Curitiba,
cumprimos o trabalho dentro da mesma rotina e a diferença foi que
ficamos três dias a trabalhar na capital paranaense. Nas horas vagas
noturnas deu para passear bem pelo então tranquilo centro de Curitiba e
gastar o dinheiro da diária com certos luxos alimentares até.
Algum
tempo depois, nós largamos esse trabalho e tanto no meu caso quanto do
meu primo, não foi por demissão, mas por cansaço daquela rotina
extenuante e sobretudo pela baixa remuneração, pois na realidade aquele
trabalho não prosperaria para o resto da vida para ninguém. A minha
cabeça estava 100% na música e o meu primo havia passado no vestibular e
estudaria no Rio de Janeiro, portanto, mesmo que gostasse desse "bico",
ele teria que deixá-lo em breve por precisar se mudar de São Paulo.
Então
veio o lapso do tempo. Em 1983, eu já estava a tocar com A Chave do
Sol, que estava a ter os seus primeiros sinais de projeção midiática e
em paralelo, fui convidado e aceitei acumular duas bandas ao voltar para
a formação do Língua de Trapo.
E
como o Língua de Trapo tinha o Teatro Lira Paulistana como um pilar de
sua carreira, ali eu toquei por muitas temporadas, e me acostumei a ter
como um excelente suporte técnico, o trabalho do técnico de som da casa
que se mostrava extremamente solícito e competente na sua atribuição
técnica. E logo que eu o vi pela primeira vez nos bastidores do teatro,
achei a sua fisionomia familiar e sobretudo pelo seu nome, deveras
exótico, não tive dúvidas de que se tratava do mesmo rapaz que fora
coordenador dessa empresa de pesquisas e que além de muitas vezes
comandar a equipe na qual eu fui escalado para trabalhar em bairros
variados de São Paulo, também fora o coordenador dessa empreitada feita
em Curitiba.
Não
falei com ele sobre isso de imediato, mas em 1984, já bem mais
entrosado, ao ponto de nos considerarmos amigos e também pelo fato dele
ter operado inúmeros shows d'A Chave do Sol e ter se afeiçoado à nossa
banda, eis que um dia, em um momento de jantar ocorrido na casa do nosso
baterista, José Luiz Dinola, eu tomei coragem e lhe revelei a minha
lembrança sobre tal passagem mútua que tivemos em 1979, marcada por algo
absolutamente nada a ver com a nossa relação com a música.
Ele
ficou perplexo, pois não se lembrava de forma alguma de haver me
conhecido nessa época e o simples fato de eu tocar no assunto dessa
empresa de pesquisa de mercado já o deixou estupefato, pois a realidade
da vida dele havia mudado radicalmente. Ora, a minha também e foi
verdadeiramente incrível termos tido essa relação de trabalho tão
incomum em 1979, e anos depois estarmos a trabalhar novamente, desta
feita mergulhados na música profissional.
No
entanto, volto neste instante ao início desta crônica e relembro ao
leitor que quase todo mundo que foi parar nessa agência de pesquisa de
mercado na qual trabalhei em 1979, era aspirante a artista, empenhado para adentrar na engrenagem do show business, ou já dentro desse ramo, mas a
precisar reforçar o orçamento pessoal, por ainda estar nas camadas inferiores da música profissional. Nesses termos, por termos quase
todos essas características, não pode ser considerado exatamente uma
surpresa termos nos encontrado anos depois sob outras circunstâncias e
ter sido tão boa a nossa relação de trabalho no campo artístico.
Para
encerrar esta história, esse rapaz que já era muito bom ali no início dos anos
oitenta como técnico de áudio, ficou ainda melhor com o decorrer dos
anos. Ele foi técnico fixo de artista mainstream por anos a fio, operou
"PA" gigante de grandes festivais e é respeitadíssimo no meio, com todos
os méritos, no rol dos melhores operadores de som para shows ao vivo,
do Brasil.
E
da minha parte, ficou essa lembrança de algo não exatamente ligado à
música, mas que dadas as circunstâncias bem típicas da época, se tornou
uma página curiosa da minha trajetória pessoal. Enfim, lembrei de muita
coisa, mas.../o que mais?