Eu nasci em 1960, ano que na verdade encerrara a década de cinquenta, como ano "dez" da década anterior, embora a maioria das pessoas pense ser todo ano terminado em zero, o ano inicial de uma nova década.
Ao pensar nesse ano em específico, havia muita música boa no ar, a televisão já contava com dez anos de atividades no Brasil e prosperava. Haviam tantas salas de cinema espalhadas pela cidade que fazia parte da vida de qualquer pessoa, ir assistir filmes constantemente e quase todos citavam atores como se citam jogadores de futebol.
E sim, o futebol também dominava as conversas em todas as partes, na mesma medida em que o som frenético dos locutores esportivos, era uma trilha sonora comum. A política também era discutida com paixão e evidente, já haviam as falcatruas, o mar de lama e a corrupção a nos assolar, apesar das vassouras populistas & demagógicas que prometiam promover a varrição da bandalheira...
Computadores eram artefatos futuristas e inimagináveis para o cotidiano de pessoas comuns, somente plausíveis em filmes com teor "Sci-Fi" ou em desenhos animados. A comunicação de massa era realizada pelo rádio e a TV e claro, nos jornais e revistas. Telefones, só os fixos e com os aparelhos públicos espalhados pelas ruas, mas nem os "orelhões" existiam nessa época ainda, mas sim cabines. Os jornais eram em preto e branco, com poucas fotos e muitos textos. Coloridos, somente os gibis e as revistas.
O linguajar coloquial era tão bem falado, que ao ser comparado aos dias atuais, ficamos com a impressão que éramos um povo erudito.
A ambientação de 1960, foi inteiramente coadunada com valores conservadores (no bom e no mau sentido dessa linha de pensamento), ao fazer com que a impressão da passagem de tempo fosse lenta. Portanto, as grandes transformações comportamentais que a década de sessenta traria, ainda estavam latentes.
Nesses termos, o mundo em que cheguei, era o de um ambiente fortemente cinquentista sob inúmeros aspectos, mas com fortes valores de décadas anteriores ainda muito presentes. Em vários quesitos, o mundo que me recebeu ainda se mostrava bem influenciado por valores vintistas, trintistas e quarentistas, em múltiplos signos, para o bem e para o mal. E levemos em consideração que havia um bom contingente de pessoas que eram oriundas do século XIX a viver entre nós e obviamente em sua grande maioria a carregarem consigo, a mentalidade desse século então imediatamente anterior.
As mulheres sofriam pressão brutal sociocultural, mas no calor dos acontecimentos, eram poucas as que se queixavam ou se rebelavam com tratamento desdenhoso.
No mundo em que cheguei, quase todas eram: "belas, recatadas e do Lar". Toda a mamãe era do dona-de-casa e criava os seus filhos geralmente com apoio das vovós.
E os pais eram provedores, a trabalharem duro de segunda a sexta, e só dedicarem-se à família, aos finais de semana. Raro foi o lar aonde essa regra não se cumpriu, sem contestações.
Outro signo forte foi o do catolicismo. Com quase 98% da população sendo adepta dessa religião cristã, foram fortes os signos desse domínio cultural.
E o mundo de 1960, foi dos fumantes sem dúvida alguma. Nesse ano e por muitos anos vindouros, ninguém importava-se ou nem sequer cogitava não fumar em ambientes fechados. Ambientes esfumaçados e roupas impregnadas desse odor horrível, eram comuns ao extremo. Raro era o adulto que não fumava e havia todo um tabu ritualístico (pela falsa sensação de status que o tabaco proporcionava), e hipócrita (da parte dos adultos, e quase todos viciados no tabagismo), para se coibir e vigiar os adolescentes que queriam a todo custo ingressar no vício, mas que inevitavelmente o fariam, a repetir o comportamento doentio e padronizado de seus pais, avós etc...
São Paulo já era uma metrópole, mas ainda não havia se solidificado como a maior cidade do Brasil. Todavia, foi questão rápida para assumir tal posto e sob um ritmo vertiginoso, cresceu de uma forma assustadora. Contudo, ainda era muito tranquila e segura, limpa e em alguns aspectos, a ostentar ares europeus.
As estações do ano eram bem definidas e demoraram décadas para começar a se modificarem como verificamos nos tempos atuais. No outono já fazia frio e no inverno, se chegava a um estágio além, o chamado: "frio de rachar". Festas juninas eram sob frio intenso e as fogueiras de Santo Antonio, São João e São Pedro vinham a calhar nas quermesses espalhadas pelos bairros. São Paulo era a dita "terra da garoa" e isso não era exagero, pois de fato, garoava toda noite durante as estações de outono e inverno e sob boa parte da primavera, também.
Meus pais moravam no Brooklin, bairro da zona sul de São Paulo, quando eu nasci, mas a minha mãe deu-me a luz no Hospital São Camilo, no alto do pico mais elevado da Avenida Pompeia, que para quem conhece São Paulo, sabe ser uma avenida que se parece com um tobogã. Tal decisão familiar foi motivada pelo fato dos meus avós maternos morarem na Vila Pompeia, bairro da zona oeste de São Paulo.
Portanto, coincidência, posso dizer que nasci no bairro que ganharia fama, poucos anos depois, por ser o berço do Rock paulistano/paulista e brasileiro. Eu também moraria nesse bairro, mas alguns anos depois e oportunamente falarei disso.
Nasci em julho de 1960, sob um frio tipicamente paulistano, de inverno. Recebi o nome de: Luiz Antonio Domingues.
"Luiz", foi para homenagear a minha mãe: Maria "Luiza", e "Antonio", para homenagear meu avô paterno, oriundo de Cantanhede, uma pequena cidade perto de Coimbra, Portugal.
"Domingues" é o sobrenome da família do meu pai e na tradição lusitana, fiquei apenas com o sobrenome patriarcal, como nome oficial nos documentos. Mas por relação sanguínea e emocional, sou também, Barretto com dois "T's", a família da minha mãe.
Nasci portanto na Vila Pompeia, mas tecnicamente a falar, morava no Brooklin, porém isso por um breve período, pois ainda em 1960, mudamo-nos para o bairro do Belenzinho, na zona leste de São Paulo.
Ninguém que morava nesse bairro e nessa época, se referia ao seu nome dessa forma diminutiva, mas sim como: "Belém". Aprazível ao extremo, tal bairro mantinha ares de uma pequena cidade interiorana, com a praça da matriz, no caso o Largo São José do Belém e sua paróquia homônima, o comércio no área do próprio Largo e no seu entorno, a se estender até a Rua Belém, ligação com a Avenida Celso Garcia, então principal acesso entre o centro da cidade e diversos bairros da zona leste, sob uma linha reta, da Praça da Sé até o bairro da Penha.
De lá saía o trólebus, o típico ônibus elétrico, com a linha: "Praça da Sé-Largo São José do Belém" e anos depois houve uma outra linha: Belém-Pinheiros, que atravessava o bairro do Brás, passava pelo centro velho da cidade, depois pela Praça Roosevelt e descia toda a Rua Augusta, até chegar ao bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo.
Eis acima uma foto do famoso Trólebus (ônibus elétrico), linha Largo São José do Belém-Praça da Sé, a passar pela Rua Belém, em direção ao Largo, o seu ponto final. Essa foto deve ser mais do final dos anos sessenta-início dos anos setenta, pelo aspecto do próprio Trólebus, com carroceria mais próxima dos ônibus tradicionais a diesel, visto que os primeiros carros dessa série foram bem típicos, com design diferente, importados da Inglaterra, ao final dos anos quarenta. Acervo de Barry Blumstein.
Haviam dois cinemas no miolo do bairro, fora os mais de vinte espalhados pela Avenida Celso Garcia, do Brás, bairro vizinho, até a Penha. Dois colégios católicos tradicionais (Agostiniano São José e Maria Auxiliadora) e dois estaduais, o Amadeu Amaral, no Largo São José de Belém, em frente à igreja, sob uma construção do início do século XX, e o outro, hoje em dia desarticulado, na Vila Maria Zélia, a se constituir de uma vila construída para operários, fechada e com vida própria, a se parecer um burgo medieval, com saída para a Rua Catumbi.
Como quase todos os bairros de São Paulo, naquela época, o Belenzinho foi um reduto para acomodar colônias estrangeiras aqui radicadas. Encravado entre bairros maiores como Brás, Pari, Mooca e Tatuapé, o Belém continha italianos, embora estes fossem mais massivos no Brás e Mooca, portugueses espalhados desde os bairros do Pari e Canindé e espanhóis, embora estes fossem mais volumosos no Tatuapé e Penha.
Mas havia também um grande contingente de famílias gregas. Hoje em dia o bairro se tornou um reduto para imigrantes bolivianos, que anteriormente já haviam ocupado os bairros do Pari e Canindé, por volta dos anos noventa.
Músicos a rondarem as mesas e alegrar o jantar das famílias do bairro, em foto antiga do restaurante: "Formiga", clássico estabelecimento gastronômico, localizado no Largo São José do Belém.
As melhores padarias do bairro eram: a Nacional, do Largo e a Tupã, na esquina das Ruas Herval e Álvaro Ramos. Os melhores restaurantes, o "Formiga", também no Largo e a cantina de Romeu Pellicciari (este, um ex-jogador do Palmeiras, na verdade do antigo Palestra Itália nos anos trinta e quarenta), localizado na rua Irmã Carolina, esquina com Rua Pimenta Bueno.
Não havia nessa época, a Avenida Radial Leste e muito menos a Avenida Salim Farah Maluf, esta última a representar a fronteira que divide o Belém do Tatuapé, o bairro vizinho. Nessa época, ali ficava um conjunto com chácaras ocupadas por famílias japonesas e cuja produção de hortaliças, abastecia as pequenas "vendas" (mercadinhos de pequeno porte), ainda com aspecto bem antigo, que haviam em profusão pelas ruas do bairro.
Já existia a linha do trem de subúrbio, que vinha da Estação da Luz em direção ao extremo da zona leste e cidades vizinhas da grande São Paulo, até Mogi das Cruzes. Mas o Metrô, cujos trilhos correm em paralelo com os trens de subúrbio, só chegaria ali no bairro, no início dos anos oitenta.
A nossa residência ficava situada na Rua Redenção, entre os quarteirões das Ruas Herval e Toledo Barbosa. Vizinho de parede de nossa casa, ficava uma fábrica artesanal de objetos de decoração, como cristais e murano. Muitos dos itens de decoração de nossa casa, foram comprados ali, e eu adorava aqueles objetos com formas malucas e super coloridas, já a antecipar meu apreço pela psicodelia, talvez.
Na esquina, havia um chaveiro, um salão de barbeiro e uma farmácia, mas era pequeno o comércio ali naqueles quarteirões, quase que estritamente residenciais, em suma. O grosso do comércio ficava no Largo e no seu entorno.
Só havia um único prédio de apartamentos ali naquele quadrante, na esquina das ruas Herval e Pimenta Bueno, ainda assim, com apenas três andares, sem elevadores.
Tirante o fato de ser aprazível como uma pequena cidade interiorana adorável, nesse bairro havia uma raiz familiar forte que me deu todo o respaldo para eu me sentir muito bem ambientado em meus primeiros anos de vida. Ali foi o bairro onde meus avós paternos moravam desde os anos vinte e onde o meu pai nasceu e se criou.
E assim eu morei nesse bairro e casa, durante a minha primeira infância quase inteira e recebi ali, as minhas primeiras cargas de influência cultural que esboçarei contar em tópicos, ao comentar ano a ano, o teor da experiência adquirida.
Por enquanto, eis abaixo um mosaico do mundo que me rodeava no ano em que nasci, 1960:
Eis o bebê Luiz Antonio Domingues nos braços do papai, Milton e na companhia da mamãe, Maria Luiza, com cerca de um mês de vida, em agosto de 1960, presentes no bucólico quintal da casa dos meus padrinhos, no bairro do Brooklin, na zona sul de São Paulo. Acervo familiar.
São Paulo em 1960 estava assim:
O Viaduto do Chá em 1960, com a visão do Magazine Mappin ao fundo. Tratava-se de uma loja de departamentos ao estilo norte-americano e que foi uma referência para todos os paulistanos.
Visão da Avenida São João, no centro antigo da cidade de São Paulo, em 1960. Impressionante o aspecto de asseio e ausência de mendicância. Impossível não reparar no belo cinema de rua à direita da foto (Art Palácio). O bonde ao fundo e a elegância das pessoas no trajar, pois isso faz com que a imagem se confunda com a de uma cidade europeia ou norte americana.
Natal de 1960, e o comércio do centro a alardear as suas promoções. Ao fundo, a parte de trás do Teatro Municipal. Na pista, a imponência do belo carro da marca Simca Chambord a trafegar!
Uma outra visão do Viaduto do Chá, com o Edifício Matarazzo ao fundo. Hoje em dia, tal edifício abriga a sede da Prefeitura de São Paulo.
Os bondes eram muito tradicionais, mas já incomodavam os motoristas de ônibus e carros particulares que se queixavam de sua presença nas vias. A desculpa usada para eliminá-los, foi atribuir a sua inviabilidade com o início das obras do Metrô em 1968 e assim, foi o principal motivo para desativá-los para sempre. Lastimo muito essa mentalidade. Hoje em dia, com metrô embaixo da terra e bondes na superfície, teríamos um trânsito muito melhor a inibir a profusão monstruosa de carros.
Praça da Sé em 1960 e uma amostra de como era impressionante a frota de carros oriunda de décadas passadas, ainda a circular. Tudo bem que a década de sessenta viu a proliferação da produção automotiva nacional, notadamente com a invasão dos "fuscas" da Volkswagem, pelas ruas da cidade, mas ainda se viam muitos carros das décadas de vinte, trinta, quarenta e cinquenta pelas ruas. Quase todos os táxis, eram velhos carros da marca "Chevrolet" da década de quarenta, vide o da foto acima a rodar. Prova cabal que eram veículos fortes, concebidos para durarem muito, ao contrário da estratégia do descarte, adotada pela indústria, tempos depois. "Compre, quebre e recompre", passou a ser o lema/mantra das montadoras e com o devido beneplácito das autoridades...
Visão do Vale do Anhangabaú do início dos anos sessenta.
Sensacional, me lembrei muito das histórias que meu pai contava sobre São Paulo do final dos anos 50, ele veio morar na nossa cidade em 1954, neto de uma francesa e de um holandês. me dizia como São Paulo era elegante, com jeito de Europa, nessa época. Quanta coisa importante aconteceu no ano de seu nascimento. Ah sim,e meu bairro onde nasci, o Belém. Muito bom sentir essa nostalgia e alegria no coração com sua narrativa.
ResponderExcluirMas que maravilha que tenha gostado !!
ResponderExcluirO objetivo dessa nova série de adendos é traçar um histórico como o Rock e a música em geral entraram na minha vida, mas por força das circunstâncias normais do desenvolvimento humano, os dois primeiros capítulos, por retratarem 1960, o ano em que nasci, e 1961, ano em que só tinha um ano de idade, não tenho lembranças culturais para retratar, mas só recordações primitivas do meu mais remoto desenvolvimento cognitivo.
Sendo assim, optei por fazer um apanhado do mundo que me cercava nesses dois anos iniciais, com aspectos culturais em predominância.
Sobre o que seu pai lhe contou, é a mais pura verdade. São Paulo tinha ares europeus, um asseio impressionante, educação nas ruas, recato etc etc.
A respeito do Belém, fiquei muito feliz por ter despertado essa nostalgia para você que também lá viveu. Eu o conheci ainda bem parecido com uma cidade interiorana, absolutamente tranquilo e delicioso de se viver. Apesar de não ser mais a mesma coisa, quando caminho por aquelas ruas, meus olhos marejam.
Sim !! Bastante coisa bacana ocorreu em 1960 e eu acabei cortando muitas outras que havia colocado, porque o capítulo havia ficado gigantesco. Muita coisa eu sabia de cabeça, principalmente a parte de cinema, mas pesquisando, vi que tinha muita coisa legal, mesmo.
Esteja convidada a prosseguir lendo. Postarei a cada dois dias, um capítulo novo por todo o mês de junho de 2016, enfocando os anos de 1960 a 1975.
De 1976 em diante, o foco maior é a autobio já publicada, mas haverão novos adendos, em forma de crônicas, no futuro, falando do período 1976 em diante, também.
Gratíssimo por ter lido, gostado, emocionado-se e comentado com elogio !
Sim Luiz, continuarei a ler com muito prazer.
ResponderExcluirExcelente, fico muito contente por isso.
ExcluirIncrível como tenho uma familiaridade com São Paulo mesmo nunca tendo morado lá, isso desde a infância, quando lia os quadrinhos da turma da Mônica que se passava no bairro do Limoeiro, que era onde eu queria morar. Até hoje apesar de grande metrópole, as regiões que conheci de SP me passam esse ar interiorano em alguns momentos, muitas ruas arborizadas, pessoas muito bem educadas, muito agradável. Esse mesmo ar de familiaridade sinto em relação a vc querido amigo Luiz, que como já disse, mais me parece um irmão!
ResponderExcluirMuito legal passear pelo passado, sempre muito agradável reviver coisas boas!
bjos amigo!
Fernanda Valente.
Mas que maravilha que tenha apreciado o texto que elaborei, e cujo objetivo é claro em traçar um panorama sobre o ambiente que cercava-me sob vários aspectos, no ano em que nasci.
ResponderExcluirAgora entendi a sua ligação com a cidade de São Paulo de onde vem, remontando à Turma da Mônica, nada mais singelo.
Os bairros de São Paulo, nos quatro quadrantes da cidade, são assim mesmo como descreveu : pequenas cidades interioranas com vida própria, pracinhas; vilas, a igreja da matriz e seu comércio etc etc.
Acho que o bairro que citou, "Limoeiro" faz parte da ficção da Turma da Mônica, sendo uma invenção do Maurício de Souza. Salvo engano colossal de minha parte, não existe um bairro chamado "Limoeiro" na vida real. Talvez ele tenha inventado esse nome para aproximar-se da realidade do "Bairro do Limão", onde possa ter vivido, este sim, um tradicional bairro da zona norte da cidade, perto de outros bairros importantes, como a "Casa Verde" e "Santana".
Sobre o meu texto, deixo o convite : escreverei capítulos com esses adendos à minha autobiografia musical, cobrindo até o ano de 1975. Assim cubro toda a parte que antecedeu o início da minha trajetória na música, em 1976.
E sobre sua observação mais pessoal, que bonitas palavras. Sua gentileza e doçura emocionaram-me, certamente.
Beijos, querida amiga Fernanda Valente !!