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segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Crônicas da Autobiografia: Sobre a Confusão entre a Cítara e a Meditação - Por Luiz Domingues

          Aconteceu no tempo da Patrulha do Espaço, em 2000

Apesar de anotada como uma passagem ocorrida no tempo em que eu fui um componente da Patrulha do Espaço, esta crônica não diz respeito diretamente a alguma ação realizada pela banda em alguma atividade oficial ou extra-oficial em seu favor. 
 
A conexão singela dá-se apenas com o fato de que esta história ocorreu graças a um convite que eu recebi da parte da produtora musical, Sarah Reishdan, que nesta época e até meados de 2003, produziu vários shows da nossa banda. Por conta dessa proximidade, forjamos amizade também pelo fato de nutrirmos apreço por assuntos com cunho filosófico e esotérico. 
Então, eis que Sarah avisou-me que haveria uma palestra ministrada por um guru indiano e que pelo fato dela ser amiga da assessora de imprensa que estava na organização do evento, esta viabilizara dois ingressos para ela, e que, por conseguinte, segundo a Sarah, que eu considerasse-me convidado para comparecer em sua companhia. 
 
Não seria a primeira vez que eu iria assistir uma palestra de um orador indiano, fosse ele um guru, swami, bhramani ou um pensador sob qualquer outra classificação. Desde os anos setenta, eu já havia assistido palestras dessa natureza com gurus indianos a expressarem-se através de um inglês macarrônico e a misturar diversas palavras em sânscrito ou hindi em seu discurso, portanto, não haveria por tratar-se de uma grande novidade. 
No entanto, chamou-me a atenção quando a Sarah falou-me o nome do guru em questão: Ravi Shankar. Ora, eu nunca ouvira absolutamente nada a respeito dele, mas naturalmente que achei curioso o fato desse homem possuir o mesmo nome do grande músico, muito provavelmente o mais famoso artista indiano conhecido pelo imaginário dos Rockers, Freaks & Hippies em geral. 
 
Sobre o citarista, Ravi Shankar, não há muito o que comentar dada a sua grandiosidade dentro da música indiana e também pelo fato da sua fama ter espalhado-se no mundo ocidental, graças à explosão da sua arte, devido à sua introdução via George Harrison & The Beatles no imaginário da juventude dos anos sessenta, que aliás, sonhou em mudar o mundo para torná-lo um lugar sem guerras e regido apenas pela fraternidade, sem egoísmo. 
 
Portanto, estranheza a parte, o fato do rapaz ostentar o mesmo nome, pode ter sido uma mera coincidência. Na mesma proporção (eu ouso comparar), em que no Brasil houve época em que muitos meninos recebiam o apelido de “Pelé” ou mesmo foram batizados como “Romário”, Ronaldo” etc. Raciocínio simplório, eu sei, mas poderia ser uma explicação plausível para explicar a coincidência.

Bem, lá fui eu então, acompanhado de minha amiga e produtora de shows, Sarah, para uma casa de espetáculos de luxo, localizada em São Paulo. Ao chegarmos ao ambiente, verificamos que estava bem lotado e em sua predominância, por pessoas altamente abonadas. 
 
Isso também não surpreendeu-me, pois como eu já havia narrado, não foi a primeira vez em que assisti uma palestra dessa natureza e já sabia, portanto, que gurus com alcance midiático geralmente atraem pessoas das classes mais abastadas, a designar uma espécie de “esoterismo gourmet”. Sei que é algo pejorativo ao ser colocado dessa forma, e deixo claro que não pretendo jactar-me de absolutamente nada e tampouco desenhar de quem quer que seja. 
 
Apenas relato o que vi e nessa circunstância, tirante a boa vontade de alguns, certamente, havia mais deslumbramento da parte da imensa maioria, em estar conectado com algo que supostamente poderia ser considerado como um sinal de status. 
 
Ou seja, praticar “meditação” ou “Yôga”, com esse acento a denotar a pronúncia que essas pessoas adoram verbalizar normalmente, é muito mais um modismo a denotar estar conectado com algo em voga que é benquisto entre os “formadores de opinião”. A questão da busca espiritual passa ao largo para esse perfil de pessoas e infelizmente, foi o caso do grande contingente ali presente.
Bem, eis que o guru entrou em cena, e simpático, fez uma explanação por cerca de uma hora, sobre a prática da meditação, inclusive com a parte final de sua fala, por cerca de quinze minutos, dedicada a uma prática coletiva leve e bastante ligeira. 
 
Em sua palestra, Ravi Shankar falou sobre os princípios mais elementares a respeito da meditação e foi tão superficial em sua abordagem, que eu surpreendi-me, pois sinceramente esperava por um discurso mais substancial. 
 
Em um tipo de analogia, seria como convidar Stravinsky para uma palestra sobre música e este ministrar uma aula primária, a ensinar os rudimentos de uma simples escala maior, ou seja, ao pressupor-se que estariam presentes na plateia: músicos, maestros, musicólogos e professores de música e que assim, ficasse óbvio que ele apresentasse em seu discurso, elementos mais avançados e não uma aula simplória que seria ministrada em uma escola infantil, a ensinar os primeiros passos da iniciação da teoria musical.

Bem, a observar o respeito máximo, naturalmente, eu e Sarah assistimos até o final, participamos da sessão de meditação bem simples que foi proposta pelo guru e na segunda parte da palestra, foi aberta a possibilidade de perguntas vindas da plateia. 
 
Algumas pessoas pediram a palavra e o nível das perguntas escancarou de vez a minha suspeita, pois de fato, as madames ali presentes (eram mulheres em sua maioria), não estavam preparadas para acompanhar algo além da superficialidade dessa matéria. E tudo piorou muito, quando uma senhora apanhou o microfone e fez uma saudação ao guru, ao dizer-lhe que o admirava muito, há muitos anos. 
 
Nesse momento, eu pensei comigo que o fato de que nunca ouvira falar dele, até receber o convite para a sua palestra configurava uma enorme ignorância de minha parte, pois a senhora em questão que falava ao guru, acentuara o fato de que o seguia há anos. Todavia, tudo veio abaixo, quando em seguida, a senhora formulou enfim a sua pergunta: -“mestre Ravi Shankar: de onde vem a inspiração para compor aquelas músicas maravilhosas que o senhor toca em sua cítara?”
Bem, muitas pessoas corrigiram a senhora aos gritos, a explicar-lhe que ele não era o famoso citarista, todavia a revelar-se um homônimo do músico, enquanto outras, simplesmente riam. 
 
Eu e Sarah ficamos profundamente constrangidos com a situação e tomados por um inevitável sentimento de “vergonha alheia”. 
 
Nesse momento, dissipou-se o meu constrangimento pessoal sobre nunca ter ouvido falar desse palestrante. Aliás, com todo o respeito, não sei se perdi alguma coisa em não tê-lo conhecido antes e nem mesmo depois, ao não acompanhá-lo com um real interesse, doravante.
E sim, continuo a apreciar com muito carinho a música maravilhosa de Ravi Shankar, o citarista. Namastê!

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Crônicas da Autobiografia - Valorize o que Você Conquistou - Por Luiz Domingues

Aconteceu no tempo do Pitbulls on Crack, em meados de 1997

Certa vez, eu fui interpelado pela opinião de um colega de profissão e a sua intervenção, provocou-me uma reflexão muito interessante. Ocorreu uma reunião, por volta de 1997, com representantes de algumas bandas da cena Rock paulistana de então, e nesse bojo, a maioria dessas bandas rezava por uma cartilha indie e não pelas vertentes pesadas e oriundas do Heavy-Metal/Hard-Rock, sobretudo sob viés oitentista, e naturalmente que pelo fluxo noventista em voga, havia ali naquela reunião, uma turma mais jovem e que recebera diretamente como influência em sua obra artística, a boa nova vinda em torno do Brit Pop. 

Ora, o Brit Pop foi uma tendência que transitou por um bom período nos anos noventa, a apresentar bandas britânicas profundamente influenciadas pelo cabedal sessentista, notadamente o estilo do Rock Bubblegum praticado no Reino Unido na década de 1960. 

Dessa forma, que ótimo que isso tenha ocorrido enfim, para dar um alento ao Rock, após tantos anos marcados pelo obscurantismo Punk e Pós-Punk, e com direito ao niilismo barato, revanchismo e todo o tipo de ataques proferidos por agentes fanáticos em torno de tais falácias e pior, a adotar o famigerado comportamento fundamentalista em prol de tais ditames etc. e tal.

Em termos de Brasil e São Paulo, para ser específico, a banda em que eu mais atuei nos anos noventa, o Pitbulls on Crack, não foi fundada com a intenção de desfraldar acintosamente a bandeira vintage em termos estéticos, mas pela força das circunstâncias e sobretudo por muita pressão pessoal da minha parte (eu assumo que forcei a barra no âmbito interno da banda), tal grupo pendeu para a estética sessenta-setentista, ainda que de uma forma apenas insinuada e assim, eis que eu estive em tal reunião organizada com representantes de bandas simpáticas às estéticas vintage, a visar um tipo de cooperação para a organização de um festival nesses termos. 

E um dos mais eloquentes a manifestar-se nessa reunião, foi o baterista de uma banda Pop-Rock, cem por cento comprometida com a estética sessentista, e cujo trabalho eu admirava (admiro), por tal entrega pela qual os seus componentes demonstravam possuir em torno de tais ideais. 

Essa banda chamava-se: "The Teahouse Band", a tratar-se de um trio muito competente e criativo e que emocionava-me pelo seu entusiasmo em promover o resgate, o religare do Rock, um ideal em que eu também pautava-me e nessa ocasião, sobretudo, o meu empenho foi total dentro dessa prerrogativa.

Bem, eis que em algum momento da reunião, eu comentei que a situação das bandas ali reunidas, incluso a minha na ocasião, era difícil, por sermos todos marginalizados pela mídia mainstream. E por conseguinte, jamais sermos sequer cogitados para fazer parte do elenco de gravadoras de porte major etc. e tal. 

O que eu afirmei, foi absolutamente verdadeiro, não houve nenhuma falácia em meu discurso, no entanto, o que o baterista da "The Teahouse Band" retrucou, chamou-me a atenção e certamente provocou a minha imediata reflexão e retomada de posição, em termos. 

Eis que o bom baterista e cantor, Raul Antonio, estranhou a minha fala e questionou sobre o que eu reclamara, visto que o Pitbulls on Crack estava há anos no mercado, a contar com constantes oportunidades, a registrar-se uma maciça execução radiofônica, inclusive de mais de uma música, na estação de Rádio Rock mais popular de São Paulo naquela década (89 FM), e também com clips em constante exibição na MTV, além de farta cobertura na mídia impressa. 

Foi nesse momento em que eu parei para pensar e creio ter entendido a mensagem vinda do colega. De fato, o meu sentimento expresso em um discurso pleno de vitimismo, fora fruto de um paradigma arraigado há anos, em torno de uma visão derrotista de minha parte, em relação a considerar impossível que artistas da nossa estirpe, pudessem alcançar o patamar mainstream da música profissional, por conta de barreiras formadas por interesses escusos da parte de poderosos. 

Nesses termos, de fato, o que eu falei procedia, no entanto, a observação feita pelo Raul, levou-me a entender o fator da graduação. De fato, o Pitbulls on Crack não chegou ao mainstream como eu desejaria, mas a projeção que atingiu mediante tal exposição, foi um fato (mesmo que em um estágio alojado no mundo underground), e dessa forma, eu percebi que não teria o direito a reclamar, pois outras tantas bandas e inclusive muito boas, sob o ponto de vista artístico, não obtiveram tal exposição semelhante.

Enfim, a minha lição neste dia foi aprender a valorizar cada conquista que eu tive. Se na minha avaliação mais criteriosa, tais conquistas foram insuficientes para atingir objetivos maiores, isso jamais poderia ser motivo para desvalorizá-las, portanto, o Raul mostrou-se correto em sua intervenção. 

E que bom, o The Teahouse Band também teve oportunidades boas, logo a seguir, inclusive na MTV, com clip elogiado e bem exibido em tal emissora, disco por gravadora, incursões radiofônicas e pela mídia impressa. Não chegou ao mainstream, como merecia, mas fez um percurso bonito, dentro das possibilidades de uma banda underground, ou seja, a tratar-se de um caminho exatamente parecido com que o Pitbulls on Crack também transitou na década de noventa.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Crônicas da Autobiografia: A Queda em Câmera Lenta - Por Luiz Domingues

                       Aconteceu no tempo d'A Chave do Sol, em 1987

Acontecimentos extra-musicais ocorrem o tempo todo no ambiente de um estúdio de gravação e muitas vezes, a depender de cada caso, pode ajudar a descontrair a tensão ou ajudar a criá-la, portanto para melhorar ou piorar o foco dos artistas e dos técnicos ali envolvidos em torno do trabalho de gravação de um disco ou de uma simples demo-tape de uma banda. 
 
Todo músico que teve a felicidade de poder registrar um trabalho, tem uma história para contar nesse sentido, eu tenho certeza. Em meu caso, depois de mais de vinte discos (e mais de quinze fitas demo-tape, até este momento), gravados, acumulei muitas lembranças, boas e más, aliás. Por sorte, tenho mais recordações agradáveis para guardar com carinho na memória. 
 
Sobre a que narro nesta crônica, é um acontecimento engraçado, embora não tenha sido uma história mirabolante, e pelo contrário, a revelar-se como um acontecimento singelo.
O clima não estava bom entre os membros da nossa banda nas sessões de gravação do LP The Key. Aqueles dias foram os últimos em termos de esforços de nossa parte, para manter a banda em atividade, infelizmente. Em meio aos problemas que enfrentávamos, eis que algo inusitado ocorreu em uma das sessões, a envolver-me diretamente.
Estávamos a ouvir um trecho de uma música, eu, Luiz Domingues, junto ao guitarrista, Rubens Gióia e o técnico Pepeu, do estúdio Guidon. A cadeira em que eu estava sentado continha rodinhas e era reclinável, a mostrar-se bastante confortável. 
 
Pois foi em um instante onde estávamos concentrados para ouvir um determinado detalhe de uma música, que eu reclinei-me para ficar mais concentrado. 
 
À medida que escutava com atenção tal trecho da canção, a buscar ter a certeza que não havia nada de errado naquele detalhe que investigávamos, eu não percebi que a cadeira pôs-se a sair discretamente do seu eixo. 
 
Sorrateiramente, eis que a ação da física fez-se valer e praticamente em câmera lenta, eu senti a precipitação da cadeira que fatalmente culminaria em jogar-me ao solo. Foram frações de segundos, certamente, mas a ação pareceu lenta no calor dos acontecimentos e assim, a minha reação e também dos amigos que cercavam-me foi a mesma, ou seja, a revelar um sentimento entre a estupefação pelo inusitado da situação e a letargia, por conta da estranha ação que pareceu lenta. 
 
Pois foi quando a cadeira quase tocou o solo, que o Rubens Gióia teve o reflexo enfim para segurá-la e evitar a minha queda total.

Salvo no último estertor, após uma inevitável e epidêmica sessão de risadas, ninguém ali realmente conseguiu entender a cena, não pelo fato da cadeira ter virado, algo trivial em uma cadeira com rodas e nem mesmo pelo excesso de inclinação em que ela foi submetida, por conta de minha própria ação corporal. 
 
Entretanto, o que realmente chamou a atenção de todos foi a questão da morosidade com a qual o evento transcorreu. Tivesse sido um efeito especial para realçar uma cena de um filme, perfeito, que belo recurso, mas ali, na vida real, foi algo muito inusitado.
Bem, foi engraçado, inusitado e até misterioso em certa medida, mas não ajudou em nada a amenizar o clima pesado com o qual a nossa banda gravou o LP “The Key”, uma grande pena.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Crônicas da Autobiografia - O Acordo Leonino - Por Luiz Domingues

                 Aconteceu no tempo da Patrulha do Espaço, em 2001

Ainda bem, a Patrulha do Espaço fez bastante shows em teatros; arenas e salões espaçosos, embora tenha tocado também em casas noturnas, vez por outra. E principalmente na cidade de São Paulo, não foram muitas as apresentações em casas noturnas, para a nossa sorte, visto que tocar sob uma infraestrutura mais adequada, era (é) sempre muito melhor. 
 
Entretanto, foi em 2001 que o dono de uma casa noturna com bastante tradição na noite paulistana, contatou-nos mediante uma oferta bastante digna em termos de cachê. Ora, se aventou pagar um cachê bastante razoável e a oferecer uma infraestrutura operacional satisfatória, claro que aceitamos tocar. 

E assim, com o tempo a passar, a propaganda foi para a rua, normalmente e quando chegou o dia do show, a perspectiva pareceu-nos ser muito boa em torno da casa lotar e apesar de não dependermos de tal desempenho popular, exatamente para termos um bom resultado financeiro, claro que sempre queríamos a lotação máxima, independente do cachê estar assegurado previamente ou não. 
No entanto, enquanto ainda estávamos em meio aos trâmites do soundcheck vespertino, foi que uma tentativa de coação foi perpetrada e só não foi inteiramente deprimente, pois no calor dos acontecimentos, revelou-se tão patética que gerou risos ao invés de indignação de nossa parte. 
 
Pois eis que o proprietário da casa entrou no recinto e ao mostrar-se eufórico, disse que a casa estava com os seus telefones a ser usados de forma intermitente, com pessoas a perguntar sobre ingressos e a reservá-los. Disse-nos então, que a casa estava a receber uma consulta recorde e que já havia a certeza de uma superlotação e até cogitava-se a possibilidade de ficar gente na rua, sem condições para entrar. 
 
Que bom, ótima notícia, pensamos e assim respondemos a ele. Entretanto, tal afirmativa super otimista vinda de sua parte, teve na verdade, uma outra intenção e esta fora escusa. 
 
O fato, foi que a seguir, o rapaz escancarou a sua real intenção quando propôs-nos uma mudança de nosso trato financeiro, ao alegar que o cachê fixo que oferecera-nos, poderia ser muito inferior à soma que a bilheteria poder-nos-ia render, dada a “demanda excepcional” que ele alardeara ao início de seu discurso eufórico. 
 
Mediante uma calculadora manual, ficou a mostrar-nos então que poderíamos ganhar até o triplo do valor acertado, se aceitássemos desfazer o acordo firmado anteriormente e doravante, fechássemos com a resolução em torno de uma porcentagem sobre a bilheteria, ao invés de um valor fixo em nosso cachet.
Relutamos, é claro, mas ele insistia em sua argumentação, ao mostrar-nos o cálculo matemático que dizia ser plausível, mediante a perspectiva que os telefonemas estavam a apontar, entretanto, mesmo assim, não demovia-nos de nossa decisão em manter o acordo anterior. 
 
Melodramático, gastou todos os argumentos possíveis e em dado instante, estava a portar-se como um vendedor de eletrodomésticos em casas populares, ao usar um discurso piegas, risível e certamente apelativo. 
 
Quando notou que não mudaríamos o nosso acordo, saiu a mostrar contrariedade, ao repetir que nós fatalmente arrepender-nos-íamos quando víssemos a casa super lotada e o dinheiro do nosso cachet ficar aquém do que poderíamos ter recebido, se não fôssemos cautelosos em excesso.

Pois chegou a noite e a casa recebeu um bom público, porém, bem longe da loucura excepcional que ele preconizara no período da tarde. Pois é, onde estavam aquelas pessoas ausentes que telefonaram enlouquecidas, no afã de conseguir reservar ingressos?

Simplesmente desistiram em comparecer? Recebemos então o nosso cachê combinado e não falamos nada sobre o ocorrido. Todavia, um funcionário da casa, que presenciara toda a pressão que o sujeito exercera sobre nós, anteriormente, não conteve-se e ao abordar-nos, disse: -“ele sempre faz isso, com todo artista que vem aqui apresentar-se. 

Combina um cachê fixo e na hora do soundcheck, vem pressionar os artistas a mudar o acordo, mediante a falsa esperança de que ganharão muito mais, em face da “chuva de telefonemas” que supostamente estaria a ocorrer no escritório administrativo da casa. 

E quando chega a noite e a expectativa não é cumprida, ele acerta a porcentagem, que sempre fica muito abaixo do cachê anteriormente acordado e se o artista questiona sobre a quantidade de público que fora dada como certeira, ele simplesmente inventa desculpas esfarrapadas sobre a condição climática que repentinamente ficou desfavorável ou sobre possíveis transtornos no trânsito da cidade e pronto, o artista vai embora com uma quantia modesta no bolso e a lamentar a falta de "sorte”...

sábado, 23 de novembro de 2019

Crônicas da Autobiografia - A Contrariedade Velada - Por Luiz Domingues

                              Aconteceu no tempo do Sidharta, em 1999        

Das quatro salas de ensaio que o Sidharta utilizou em sua trajetória, certamente que o estúdio do Paulo “PA” Antonio, ex-baterista do “RPM”, localizado no bairro da Vila Mariana, na zona sul de São Paulo, foi o que mais gostamos de usar, por conter o despojamento e o astral muito próximo do que nós queríamos resgatar em termos de elos com a contracultura sessentista. 
 
Entretanto, apesar de apreciarmos todos esses fatores, chegou o dia em que um novo estúdio recém inaugurado e localizado no bairro vizinho, a Aclimação, fez uma oferta melhor e nós resolvemos migrar para esse novo espaço. 
 
Bem, a despeito do bom preço acertado e o fato de que por ser novo, o estúdio tinha condições estruturais bem melhores, incluso no quesito mais importante, que foi o equipamento disponível, a ambientação em termos mais subjetivos, não foi nem de longe compatível com a nossa expectativa.

Extremamente insosso, mais parecia uma clínica odontológica, pela sua frieza asséptica, com ares medicinais e impessoais. Até aí tudo bem, se no estúdio do “PA” nós tínhamos a sensação de estarmos a ensaiar em uma caverna hippie, ali nesse novo estúdio, tudo revelou-se frio em demasia, porém, visto pelo lado prático, não tratava-se da nossa casa e apenas um lugar alugado, portanto, apesar de não ser inspirador, haveria por servir ao propósito primordial, ou seja, simplesmente ensaiarmos.
Nesse estúdio havia dois sócios, um que era muito simpático e portanto mais a ver conosco, por ser um guitarrista de blues, em essência, portanto, com um certo apreço pela sonoridade vintage que buscávamos no trabalho de nossa banda. 
 
E o outro, um rapaz taciturno, sempre mal-humorado e declaradamente fã de Heavy-Metal extremo. Esse rapaz não era mal educado, tampouco impertinente, pois nunca destratou-nos ou teceu comentários desagradáveis em relação a nós, pessoalmente ou à nossa banda, mas a sua antipatia em relação ao nosso trabalho e sobretudo sobre todos os signos que professávamos, revelou-se patente. 
 
Sempre com semblante duro, como se vivesse vinte e quatro horas por dia, contrariado, mal disfarçava o seu incômodo ao ver-nos a entrar e trajados com uma indumentária inteiramente contrária aos seus ideais, visto que usávamos batas indianas coloridas ou camisetas ao estilo “Tye-Dye” e calças “boca-de-sino”, em geral, em contraponto às suas bermudas e camisetas pretas a exibir estampas mediante capas de discos ultrajantes da parte de artistas do mundo do Heavy-Metal extremo que ele certamente devia apreciar. 
Tal choque de opiniões tão díspares entre si, não chegou ao ponto de incomodar-nos e creio, que a recíproca foi verdadeira em princípio, mas em um determinado dia, acho que o rapaz não suportou aguentar calado o seu incômodo e teve um ato falho por conta disso. 
 
Ocorreu que surgira uma conversa em torno de gravarmos uma Demo-Tape e como justamente o entusiasta do Heavy-Metal era o responsável pela operação do equipamento de gravação, como um "tape operator", foi ele a demonstrar as potencialidades do estúdio e claro, o seu portfólio para demonstração aos clientes foi composto logicamente por trabalhos realizados por bandas de Heavy-Metal que ali haviam gravado. 
 
Pois foi nessa demonstração, que ele iniciou a falar sobre a parte técnica do estúdio, logicamente. No entanto, em dado instante, empolgou-se e assim, esqueceu-se inteiramente do seu propósito técnico e passou a tecer considerações estéticas sobre as bandas que ouvíamos. 
 
Ao lançar diversas odes ao Heavy-Metal extremo, nitidamente adotou uma postura de desabafo pessoal, ainda que velado. Falou-nos com entusiasmo desmedido e despropositado sobre as maravilhas em torno daquela estética tão contrária aos nossos ideais e nós o respeitamos, obviamente, sem retrucar em momento algum, mesmo por que, não tínhamos nenhum interesse em convencê-lo que as estéticas que apreciávamos seriam supostamente melhores. 
 
Nunca, em momento algum, esbarrou-se em um confronto tenso e declarado, mas ao final, quando ele percebeu que nós não estávamos de forma alguma interessados no som daquelas bandas, ele fez uma pergunta onde escancarou enfim, todo o seu inconformismo com os nossos propósitos: -“vocês realmente gostam dessas coisas do passado?” 
 
Pois é, gostávamos, ou melhor, gostamos...

sábado, 16 de novembro de 2019

Crônicas da Autobiografia - Avisa Esse Baixista Preguiçoso, que Ele Precisa Tocar em Pé - Por Luiz Domingues

 Aconteceu no tempo de Kim Kehl & Os Kurandeiros, em 2012

Já havíamos tocado muitas vezes nessa casa, chamada, Magnólia Villa Bar e antes mesmo de eu ter ingressado na banda, em agosto de 2011, Os Kurandeiros já possuíam uma tradição em ali apresentar-se com regularidade. 
 
Pois foi certa vez, no início do ano de 2012, que um fato curioso ocorreu e não foi ali no calor da apresentação, mas sim, graças a exibição de um vídeo dessa referida ocasião, assim que ele foi postado devidamente no portal da Internet, YouTube. 

Ocorreu que especificamente nesse show, eu havia mexido no estojo do meu instrumento que usaria, durante a tarde e quando cheguei ao estabelecimento e fui preparar o meu set, verifiquei que havia esquecido-me da minha correia e para piorar a situação, nem mesmo a correia sobressalente que sempre levo, e que também fora suprimida indevidamente durante a arrumação vespertina que eu promovi, portanto a caracterizar o lapso que cometi ao mexer no estojo e não repor todos os acessórios necessários, mediante uma checagem básica. 

Fiquei muito chateado na hora, pois um deslize desses é imperdoável para qualquer profissional que se preze, mas de nada adiantava lamentar. Pedi desculpas aos companheiros e logo solicitei ao Kim a gentileza em emprestar-me uma correia de suas guitarras, mas ele também não tinha uma sobressalente, pois apenas contava com a sua usual, para poder trabalhar. 

Enfim, como resultado, não tive outra alternativa a não ser tocar sentado, nessa apresentação. Deselegante em face que a nossa postura não era igual a de músicos eruditos ou mesmo de jazzistas tradicionais, que tocam normalmente sentados, sem nenhum problema, mas com a postura Rocker, em tocar em pé. 

Bem, diante da impossibilidade e com a solidária compreensão dos colegas, lá fui eu tocar a noite inteira sentado em uma cadeira, um tanto quanto constrangido, internamente, mas a tocar tranquilo pelo respaldo dos colegas, sobretudo e também das pessoas da audiência que não demonstraram nenhum incômodo. 
 
E pelo contrário, tal situação motivou piadas amenas, como por exemplo quando o Kim ao apresentar-me, ter falado alguma coisa sobre eu ser preguiçoso, mas em tom de brincadeira super respeitosa, que eu e todo mundo entendeu perfeitamente em tratar-se de algo bem leve. 
 
Todavia, alguns vídeos dessa noite foram postados no You Tube, e assim, eis que no dia seguinte, um rapaz que dizia-se músico e um estudioso do Blues, oriundo de alguma cidade de um estado da região Centro-Oeste, Mato Grosso ou Goiás, não recordo-me, postou um comentário com uma certa dose de agressividade, que chamou-nos a atenção. Iniciou com uma boa dose de soberba a falar sobre si mesmo e o quanto “entendia” de Blues, para depois passar a analisar a nossa performance como se fosse um crítico renomado de algum órgão importante da imprensa. 
 
Até aí, tudo bem, as pessoas são livres para externar as suas impressões. Mas o rapaz, nitidamente, mais pareceu estar preocupado em exibir-se como um “expert” no assunto e muito pelo contrário, o seu suposto conhecimento mostrou-se bem limitado pelas colocações que emitiu em termos de explanações sobre teoria musical, produção de áudio e musicologia. 
 
E o auge de seu comentário veio diretamente relacionado ao meu esquecimento daquela noite, pois finalizou da seguinte maneira: -“a banda é boazinha, até que interpretou bem o Blues em questão, mas avisa esse baixista aí, que ele precisa largar mão de tocar sentado e aprender que o Blues merece o respeito em ser tocado em pé”.

Um vídeo dessa noite em que comentei, a mostrar a performance da banda a executar "Sweet Home Chicago", com Renata "Tata" Martinelli no comando da voz e participações especiais do tecladista, Alexandre Rioli e do hoje saudoso guitarrista, Claudio "Urso" Camargo. Kim Kehl & Os Kurandeiros no Magnólia Villa Bar de São Paulo, em 15 de fevereiro de 2012.
Eis o link para assistir no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=0iHvrpQLtpg 

Ora, ora, eu respeito o Blues, fiquei chateado por haver tocado sentado naquela noite e tudo fora fruto de um acidente motivado por uma distração fortuita ao preparar o meu instrumento previamente em minha residência. 
 
Mas o rapaz não quis saber e fez o seu julgamento impiedoso e com direito a advertir-me sem saber da situação que motivara-me a tocar dessa forma e muito menos saber da minha trajetória na música e o zelo que sempre tive/tenho e terei para apresentar-me da melhor forma possível. 
 
Foi o tal negócio, como era/é fácil tecer críticas gratuitas... e que prazer mórbido a maioria das pessoas que prestam-se a tomar tal tipo de atitude nociva em redes sociais, parece obter com isso.

sábado, 9 de novembro de 2019

Crônicas da Autobiografia - O Lançamento do Disco dos Meus Amigos - Por Luiz Domingues

               Aconteceu no tempo do Pitbulls on Crack, em 1994

Sei bem o quanto era e é ainda (talvez nos tempos atuais, sob outros aspectos, é bem verdade), gravar um disco e enfrentar a dura batalha pela sua divulgação. Mil vezes mais difícil, se for um esforço empreendido por um artista independente, sob uma condição praticamente crônica de falta de apoio, generalizada. 
 
Portanto, ao pensar em meu caso, aliás, independente de qual banda eu estivesse a atuar na ocasião, eu sabia que a labuta sempre fora árdua, mesmo que eu estivesse em uma banda com uma melhor condição e esse foi o caso do Pitbulls on Crack, que nunca atingiu o mega estrelato do patamar mainstream, mas em seus discos teve apoio de duas gravadoras consideradas sob porte médio, a ostentar uma infraestrutura muito acima da penúria total com o qual um artista sem apoio algum enfrentaria normalmente essa tarefa. Então, por saber bem das dificuldades, a minha postura nunca mudou, pois eu sabia o que representa trabalhar com parcos recursos e muito pior, sob ausência completa de uma estrutura mínima. 

Foi em meados de 1994, quando empreendíamos esforços para divulgar as duas músicas que graváramos dentro da coletânea “A Vez do Brasil”, da gravadora Eldorado, que eu e os meus colegas do Pitbulls on Crack presenciamos uma cena que seria até engraçada, se não fosse, ao contrário, muito humilhante e posso até dizer, inadmissível. 
 
Ocorreu que fomos conceder uma entrevista a uma emissora de rádio, aliás com bastante relevância no Dial das FM’s de São Paulo. Então, eis que alguns minutos antes da nossa entrevista, uma banda da cena pesada, consagrada, inclusive, em seu nicho de atuação, estava a ocupar a sala da diretoria. 
 
Os componentes dessa banda eram amigos, todos muito gentis e eu, particularmente os conhecia bem, desde os anos oitenta. Estavam ali a divulgar o seu recém lançado novo LP e pleiteavam com o programador da emissora, a sua execução. Em princípio, já haviam quebrado uma regra velada do meio artístico, é preciso observar, visto que não é de bom tom, o próprio artista tratar de assuntos dessa natureza. 
 
O mais adequado é tal tipo de negociação ser empreendida por um empresário; agente; produtor ou melhor ainda, o assessor de imprensa da banda ou da gravadora a tratar tal assunto. 
 
Há inclusive no meio midiático, uma tendência a considerar tal ato perpetrado diretamente pelo próprio artista, como um sinal de amadorismo e isso causa uma má impressão, que muitas vezes pode estigmatizar o artista de uma forma irreversível.

Por saber de sua luta, há anos, claro que eu entendi o propósito dos rapazes e mais do que isso, compreendi completamente que se tivessem um grande apoio empresarial, não estariam ali pessoalmente, pois eles tinham consciência de como funcionava os bastidores da relação entre artistas e órgão da mídia, mas se ali estavam em pessoa, denotava que não tiveram outra alternativa a não ser eles mesmo a travar tal contato. 
 
Todavia, a paciência solidária que tiveram de minha parte, como um colega de profissão, eles dificilmente teriam daquelas pessoas da emissora, viciadas em usufruir das benesses escusas da famosa e execrável prática do dito “jabaculê” ou “Jabá”, na forma mais popular, ou seja, aquela famigerada forma de ”ágio”, para expressar tal procedimento de uma forma mais amena. 
 
Dessa forma, assim que os rapazes da tal banda pesada saíram da sala e cumprimentou-nos, falaram animadamente sobre a conversa ter sido muito frutífera com o pessoal da rádio e assim, o disco ter garantido o seu lançamento  com um testemunhal de locutor; uma possível entrevista com a banda a ser agendada e que uma canção de “trabalho”, entraria na programação. Estavam bem animados e a priori, se contaram-nos tais novidades alvissareiras, certamente que não haveria por duvidar-se da palavra dos dirigentes da emissora que prometeu-lhes tais ações de divulgação de seu trabalho.

Porém, não era assim que funcionava uma negociação dentro de uma emissora de rádio, definitivamente, pois assim que despediram-se de nós e partiram, um dos programadores da emissora passou por nós e ao ironizar com bastante sarcasmo, vociferou : -“eles vieram aqui para lançar o seu disco. Pois vejam só, vou lançá-lo, agora... bem no alto”... foi quando abriu a janela e arremessou o álbum, com capa e tudo, fechou a janela e ainda arrematou : -“está lançado a porcaria do disco deles”...

Ao considerar-se que estávamos em um andar muito alto de um edifício, tal ato pode ser considerado engraçado por alguns ali, mas nós que também éramos artistas e sobretudo pelo fato de sermos amigos dos componentes daquela banda, ficamos bastante chateados com tal ato em tom de profundo desrespeito. 
 
E por outro lado, não causou-nos uma grande surpresa, infelizmente, pois nessa altura dos acontecimentos, já tínhamos uma bagagem bastante considerável, na música. Entretanto, foi óbvio que tal escárnio arrogante da parte de quem deveria difundir arte livremente, mas agia dessa forma aviltante, revelou-se intolerável.

sábado, 2 de novembro de 2019

Crônicas da Autobiografia - Viva a Loucura! - Por Luiz Domingues

Aconteceu no tempo de Ciro Pessoa & Nu Descendo a Escada, em 2011

Eu estava empolgado por participar da banda de apoio ao compositor, cantor e poeta, Ciro Pessoa, justamente após ter travado bons diálogos com ele, nesse período em que precedeu a realização dos primeiros ensaios a visar os primeiros shows e por conseguinte, ter desfeito a falsa impressão de que o Ciro, por ter sido um egresso da cena oitentista em torno da estética Pós-Punk (por ter feito parte de bandas desse setor, tais como os Titãs e o Cabine C), fosse naturalmente um adepto dos preceitos ordinários daquela estética. 
 
Mas como isso não correspondia à verdade e muito pelo contrário, Ciro mostrou-se tão entusiasmado por estéticas sessenta-setentistas, quanto eu, tal fator não só trouxe-me a sensação de alívio em não ter que enfrentar nenhum antagonismo, mas na verdade, a empolgação do que ali entre nós, haveria por predominar o conceito: "o futuro é Pink Floyd", como ele mesmo gostava em alardear como uma profecia para aludir ao resgate psicodélico. 
Não foi no primeiro, tampouco no segundo, mas exatamente no terceiro ensaio, que sentimo-nos mais seguros, individualmente com a execução das canções, e o entrosamento começou a surgir na parte coletiva da banda. 
 
E foi ali que o Ciro Pessoa impressionou-me com uma performance intensa. Na verdade, já nos dois ensaios iniciais, por ser o autor das músicas e com a responsabilidade apenas para cantar e não ater-se a manipular instrumentos, ele já mostrou-nos a sua força interpretativa ao portar-se como se já fosse o show e eu gostara dessa postura, pois além do profissionalismo, ele demonstrou uma capacidade para mergulhar na emoção. 

Entretanto, foi no terceiro ensaio, com a banda a tocar mais naturalmente, sem inseguranças típicas de um conglomerado formado por músicos que ainda não conhecem-se com a fluidez musical o suficiente para tocar sem olhar-se mutuamente para sinalizar mudanças harmônicas e ou rítmicas, que ele mergulhou ainda mais na sua interpretação e aquela loucura cênica toda de sua parte, estava a empolgar-me, exatamente por ser versada na mais pura representação da psicodelia sessentista, uma de minhas predileções em termos de escolas dentro do Rock. 
 
Pois foi bem na parte final da canção denominada : “Planos” (que aliás era uma das minhas prediletas, exatamente por ser muito parecida com aquele estilo “Space Rock” do Pink Floyd, bem naquela transição do trabalho dessa banda, da psicodelia pura para o Rock Progressivo setentista), que ele costumava declamar um monólogo improvisado, enquanto a banda executava um “looping” harmônico com quatro acordes e sob uma levada ultra divagante, quase sob o poder de um mantra. 
 
E assim, sob tais condições, o monólogo mantinha uma mola mestra, mas a cada execução, ele mudava a ordem e até algumas citações inteiras, sob o poder do improviso. De fato, ele cometeu tal procedimento em diversos shows que fizemos doravante, contudo, foi naquele terceiro ensaio, que a sua inspiração chegou ao clímax, pois nunca mais ele reproduziu aquela fala com tamanha intensidade.
Ocorreu portanto, que foi entre várias frases proferidas em tom de ode à psicodelia e ao surrealismo, que ele passou a enumerar fatos e pessoas relevantes dentro desse universo, a citar de Syd Barrett a Salvador Dali, de Magritte a Manoel de Barros, Jimi Hendrix a André Breton, Luiz Buñuel e outros tantos, onde até o Marquês de Sade que não fora nada surrealista; tampouco psicodélico, entrou na lista. 
 
Mas ao se empolgar, foi além e se a cada nome ele intensificava o seu gestual e ênfase vocal, foi quando gritou: -“Viva a Loucura”, que atingiu o ápice e aquilo impressionou-me sobremaneira. 
Pois eu entendi perfeitamente a sintonia incrível em que entráramos, ao criarmos aquela atmosfera carregada de plena loucura, sim, mas não falo da loucura enquanto distúrbio mental e com a devida carga negativa a denotar uma anomalia em forma de doença, no entanto, a loucura pelo viés da absoluta genialidade de quem quebrara o paradigma da normalidade e nesse aspecto, a loucura como uma superação e talvez mais do que isso, uma elevação da percepção humana tão limitada. 
 
Perfeito, por muitos anos, eu persegui a oportunidade em estar inserido em um trabalho versado pela psicodelia pura e onde o elogio à loucura não fosse uma mera referência da filosofia de Erasmo de Rotterdam, mas sim uma reverência ao poder daquela energia especial que permeou os anos sessenta, enquanto vislumbre da contracultura. Portanto, foi ali naquele ensaio que eu tive a confirmação de que talvez houvesse alcançado tal oportunidade, enfim.
 
Tempos depois, o trabalho não avançou como que eu esperava, e assim, na prática, isso não ocorreu com grande volume e tampouco a performance do Ciro nessa canção, jamais foi tão intensa quanto naquela noite de uma terça-feira de novembro de 2011, em uma sala de ensaio localizada no bairro de Pinheiros, na cidade de São Paulo. Pois ali, atingimos o píncaro da loucura, certamente.