Aconteceu no tempo d'A Chave do Sol, em 1986...
Os anos 1980, não foram nada agradáveis para quem não comungou do revanchismo paradigmático proposto pela formação de opinião agressiva, oriunda das ideias que moveram o movimento Punk em 1977, e que, por conseguinte, abriu as portas para ramificações múltiplas, onde a estética blasé do Pós-Punk criou os seus monstrengos.
Pior ainda, para quem levou a sua bandeira aos píncaros do fanatismo, ao ponto de formar bandos truculentos, tais como verdadeiras hordas, bem semelhantes em termos de beligerância e ignorância, as torcidas uniformizadas dos clubes de futebol, ou seja, se no futebol os times e os resultados no campo de jogo, representam a parte menos importante no cotidiano desses brucutus, nessa época, as gangues formadas supostamente para defender estéticas dentro do movimento em torno do Rock oitentista, importavam-se apenas em sair às ruas para hostilizar supostos oponentes que não compactuavam com as suas escolhas estéticas, de acordo com as suas preferências em prol do pseudo-Rock que seguiam na ocasião.
Em resumo: para tais
sujeitos, a música foi o que menos importou-lhes e o objetivo fora
apenas hostilizar pessoas que visualmente aparentavam seguir outras
tendências opostas.
Foram muitos os relatos policiais ao longo dessa década, a contabilizar brigas de ruas e muitas emboscadas em estações de metrô; terminais de ônibus; trens de subúrbio, igualmente em portas de estabelecimentos a apresentar shows e nas suas imediações. Passei por algumas situações dessa monta, algumas vezes, assim como tenho o relato de amigos e conhecidos que igualmente tiveram tal dissabor, uma lástima.
Mas a história que tenho a
narrar aqui é mais amena, embora não seja agradável, pois se não
envolveu violência física, propriamente dita, caracterizou uma situação
de humilhação; intimidação; escárnio; desdém e falta de respeito, muito
grande para com a minha pessoa.
Tal história ocorreu em uma noite de sexta-feira, de 1986, e que antecedeu uma viagem que a minha banda na ocasião, A Chave do Sol, faria na manhã seguinte. Por tratar-se de uma viagem a ser realizada sob um horário matutino, recebi o convite do nosso baterista, José Luiz Dinola, para pernoitar em sua residência, a fim de minimizar o meu sacrifício em ter que acordar muito mais cedo, para deslocar-me do bairro do Tatuapé, na zona leste de São Paulo, onde eu morava na ocasião.
Dinola morava com a sua namorada nessa época, Eliane Daic, vulgo, "Lili", em um apartamento na Alameda Santos, quase na esquina com a Rua Bela Cintra, no bairro de Cerqueira Cesar, região próxima à Avenida Paulista. Convite aceito de pronto, lá estava eu sossegado com a minha bagagem em mãos, a bordo de um ônibus a trafegar pela Avenida Paulista, quando senti a aproximação de um grupinho formado por rapazes e moças com visual Post-Punker, no uso de figurinos e maquiagem pesada, típica para quem seguia uma das várias vertentes daquela estética.
Permaneci em silêncio e com
relativa tranquilidade, pois se ao mesmo tempo eu sabia que seria
molestado verbalmente, não temi por agressões físicas, pois entre tantas
tribos oitentistas hostis, essa turma não possuía a fama em procurar as
vias de fato, mas claro, em um momento desses, não dava para confiar em
estatísticas e assim, mantive-me atento e pronto a evadir-me do ônibus,
se a iminência de algum ataque ficasse proeminente.
Eis que o mais impetuoso dos rapazes dessa turma, passou a cantarolar uma canção do Roberto Carlos, em claro sinal de deboche, a provocar-me, para fazer alusão à minha proibitiva longa cabeleira sessenta-setentista, para aqueles dias.
Enquanto destilava o seu deboche para diminuir-me, gratuitamente, as meninas do grupinho, sentaram-se ao meu redor e passaram a tocar em meus cabelos. Não houve dúvida sobre a intenção em desdenhar de minha pessoa e bem naquele espírito tipicamente oitentista em usar e abusar do paradigma de repúdio ao passado.
O sujeito
regozijava-se em cantarolar com claro sinal de desprezo: -"Jesus
Cristo... Jesus Cristo... Jesus Cristo, eu estou aqui"... enquanto as
meninas reforçavam o circo ali instaurado para humilhar-me, ao dizer
frases provocativas tais como: -"hei, Roberto Carlos"... ou: -"os Hippies já morreram,
volte para Woodstock"...
Bem, é
claro que o meu sangue ferveu para deixar-me bastante indignado na hora,
por todos os motivos óbvios, inclusive a estupefação em verificar que
além da extrema gratuidade do ato perpetrado por tais jovens, ficara a
constatação que aquela patuleia não tinha horizontes na vida, pois
francamente, abraçar tal tipo de manifestação em abordar e hostilizar
pessoas que supostamente não seguiam os seus ideais, revelara a extrema
fragilidade emocional de cada um ali, enquanto indivíduo e certamente
sobre a estética pela qual diziam acreditar.
Não reagi, certamente, pois
não teria chances em enfrentar fisicamente cerca de dez pessoas que
formavam tal grupinho, e pelo menos seis ou sete ali, eram homens. Mas
de uma forma ingênua e bastante imprudente, eu diria (ao analisar hoje
em dia), não contive-me e soltei uma frase em sinal de desagrado pela
situação aviltante pela qual fora submetido naquele instante: -"sou
hippie sim, mas quero ver se vocês serão o que são, daqui a alguns
anos". Para a minha sorte, eles apenas riram e regozijaram-se da minha
atitude intempestiva e certamente com uma carga melodramática que para
eles deve ter soado como a uma apelação patética de minha parte.
Certo,
1986 em curso, eles estavam na crista da onda e hippies do passado como
eu, seriam aos seus olhos, figuras quixotescas e desprezíveis. O seu
ideário fora formado por paradigmas muito equivocados, não tinham culpa,
em tese, por ter acreditado na formação de opinião maledicente, mas
aquela arrogância pela qual trataram-me de uma forma completamente
despropositada, fora um acinte, e dura para digerir naquele momento.
Entretanto, nada como um dia após o outro, não é mesmo?
Aonde estarão
essas pessoas? Ainda seriam entusiastas daquela estética? Saem pelas
ruas à cata de pessoas antagônicas aos seus ideais para hostilizá-las?
Aliás, o que eles seguiam mesmo como ideal de vida? Aquela estética
pela qual tanto mostravam-se encantados, levou-os aonde, exatamente?
Enquanto isso, a contrapartida é que trinta e três anos depois (1986-2019, quando escrevi esta crônica), eis que agora encontro-me: firme e forte a acreditar na contracultura; no Rock; a observar os mesmos ideais aquarianos, e com o cabelo ainda pela cintura, como uma marca indelével da minha obstinação em seguir os meus princípios. Esta crônica é uma mera revanche, então, ou uma prova de força?
Não foi a minha
intenção, acredite, leitor. Contudo, que sirva como uma reflexão sobre o
quanto devemos respeitar o próximo e as suas escolhas. Escrevo esta
crônica em 2019, trinta e três anos depois do ocorrido e chegou a minha
hora para cantarolar, mas se permite-me o leitor, com uma pequena
modificação na letra escrita pelo Roberto Carlos : -"Jimi Hendrix...
Janis Joplin... Brian Jones, eu ainda estou (e estarei), sempre, aqui!"
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