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quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Crônicas da autobiografia - O precipício, o arame e o sorriso do grande artista - Por Luiz Domingues

Aconteceu no tempo do Terra no Asfalto, em algum momento de 1981

O Terra no Asfalto foi formado em 1979, com a intenção de ser uma banda de execução de releituras ou "covers" como queiram. Com a exceção de um breve período de 1981, no qual se aventou criar algo autoral e que foi rapidamente frustrado em sua tentativa, a predisposição dessa banda sempre foi de atuar como banda de entretenimento em casas noturnas, predominantemente, mas também em festas corporativas, escolares e diversas outras oportunidades do gênero que surgiram em sua trajetória.

Como eu já relatei com detalhes no meu texto autobiográfico, o grande mérito dessa banda foi ter arregimentado em suas diversas formações, músicos incríveis e eu, em início de carreira, me beneficiei muito desse convívio para aprender muito e crescer como músico.

Debruçado sobre o piano, Sergio Henriques observa o grande, Cesar Camargo Mariano a tocar. Elis Regina está sentada ao lado e em pé, o trompetista, Farias e o baixista, Luizão Maia, com roupa escura. Em algum momento de ensaio de 1980

Um desses geniais músicos que fizeram parte do Terra no Asfalto, foi o grande, Sergio Henriques, músico de sólida formação acadêmica, nível técnico alto e que foi reconhecido por sua capacidade ao ter sido "side-man" de diversos artistas famosos da MPB mainstream dos anos sessenta, setenta e oitenta, em seu auge. Elis Regina, Rita Lee, Pepeu Gomes e Jorge Benjor estão nessa lista, além dele ter feito trabalhos significativos com artistas menos famosos no âmbito comercial, mas importantes artisticamente, como o grupo "Premeditando o Breque", por exemplo.

E entre acompanhar artistas do mega estrelato da música e tocar com a nossa humilde banda, Sergio esteve conosco sempre nas brechas de sua agenda, principalmente em meio as suas obrigações com Elis Regina e Rita Lee com quem mais atuou nesse tempo em que também esteve conosco, concomitantemente.

Certa vez, a nossa banda tocou em um bar localizado no bairro da Bela Vista, o popular "Bexiga" na cidade de São Paulo e cujo palco estava montado em um mezanino altíssimo, que denotava ter sido o pavimento superior de uma antiga residência, cujo imóvel fora adaptado para se tornar uma casa noturna, muitos anos depois.

Lembro-me da dificuldade incrível que foi colocar todo o nosso equipamento naquele palco ermo, cujo acesso era feito apenas por uma escada estilo "caracol" e extremamente estreita. Outra alternativa não menos cansativa foi erguer os equipamentos com muita dificuldade, incluso no uso de mesas para elevar ao máximo a altura das pessoas envolvidas nessa tarefa e foi o que fizemos com a maioria dos amplificadores, as peças da bateria e o piano do Sergio.

Tarefa extenuante por si só, já a realizamos com a perspectiva de que repetiríamos a operação no decorrer da alta madrugada, lá pelas quatro horas da manhã ou mais que isso e foi o que ocorreu, inclusive com a impertinente ação do gerente da casa que não facilitou em nada tal operação, ao exigir que só empreendêssemos tal desmonte após não haver mais nenhum cliente da casa, sendo que muito antes do que ele nos autorizou, a casa já estava bem vazia com a presença apenas dos últimos ébrios relutantes para ir embora para as suas respectivas residências. 

Todavia, o ínterim desse trabalho de montagem e desmontagem foi o que se mostrou mais assustador, visto que o palco era pequeno e para alojar a nossa banda que atuou como sexteto nessa noite, com a participação do Sergio e mais o equipamento, fez com que a linha de frente da banda, com a presença do vocalista Paulo Eugênio e o Sergio, cujo piano elétrico, "Würlitzer", não teve outra escolha a não ser se alojar bem na frente e ajustado de forma enviesada, e assim, todos ficaram com espaço limitado, incluso o trio de cordas formado por eu (Luiz), Aru Junior e Wilson Canalonga Filho e sobretudo para o nosso baterista, Cido Trindade, que mal podia empreender os movimentos básicos de seus braços para poder tocar confortavelmente. 

Todavia, tais fatos não foram os mais alarmantes nessa apresentação, por incrível que pareça, pois além da altura absurda desse palco e da sua pequenez nas dimensões, eis que na sua extremidade, não havia nenhum equipamento de segurança para que quem ali estivesse a tocar pudesse sentir algum amparo estratégico como uma grade, por exemplo. E para piorar a situação, o gerente da casa tomou como providência prosaica para fornecer a nossa segurança, a instalação de um fio de arame, isso mesmo, para ser estendida no comprimento do palco e à meia altura e que segundo ele, seria um aviso "psicológico" estratégico sobre o precipício que ali existia, para ninguém cair e se machucar.

Durante a apresentação, o incômodo de todos foi gritante, não apenas pelo calor excessivo que sentimos a tocar amontoados e sob a ação dos amplificadores, mas também pelo medo de alguém perder o equilíbrio e fazer com que algum equipamento ou nós mesmos caíssemos daquela altura e não foram poucos os sustos que tivemos com pedestais que ameaçaram despencar, além de pedais de guitarras e sobretudo do piano elétrico do Sérgio que estava ali instalado no limite. 

O suor do Sergio e do Paulo, que estavam bem na ponta do palco, respingava nas pessoas que estavam nas mesas bem abaixo a nos ver e ouvir. Latas de refrigerantes e cervejas que eles estavam a usar, quase caíram também. Mesmo assim, com tantas condições adversas, a apresentação foi ótima e entre tantas coisas, apesar de todo esse desconforto, o Sergio tocava a sorrir, porque adorava tocar conosco e amava tocar, acima de tudo. Na mesma época, ele estava ali conosco por conta de uma pausa da turnê da Elis Regina com a qual tocava, como segundo tecladista da banda, braço direito do Cesar Camargo Mariano e enquanto esperava começar os ensaios com Rita Lee, com quem ele iria tocar nos show de lançamento do LP "Lança Perfume" na ocasião.

Sem se importar em tocar em lugares simples assim, conosco, em contraste com os palcos glamourosos com os quais estava acostumado a se apresentar, não se furtava de ajudar a carregar o  equipamento e erguê-lo naquela altura desse bar em específico, tampouco com o aperto compatível para shows de contorcionistas, mas não para uma banda de Rock e nem mesmo ao correr risco de se machucar gravemente ou no mínimo, danificar o seu piano elétrico, que era super caro por natureza. 

Ele tocava e sorria, feliz por estar ali conosco e a reproduzir a arte de nossos ídolos em comum, a se coadunar com o Led Zeppelin, Yes, Stevie Wonder, Gilberto Gil e tantos outros artistas que admirávamos e que tínhamos um enorme prazer de executar as suas obras nessas noitadas animadas.

Lembrei muito do Sergio nos primeiros dias de março de 2023, não só por essa história mas por muitas outras que tivemos em parceria, pois fui comunicado do seu falecimento, infelizmente. 

Muito jovem para partir, eis que a fatalidade lhe ocorreu precocemente. Aqui ficamos sem a sua arte aos teclados, mas lá na dimensão em que foi morar, tenho certeza que encontrou com os nossos companheiros do Terra no Asfalto, que também já haviam se mudado para lá anteriormente: Geraldo Gereba, Fernando "Mu" e Paulo Eugênio Lima. O Terra no Asfalto de lá, que seria poeticamente o "Céu no Asfalto", digamos assim, ganhou um reforço de muito peso: Sergio Henriques, o nosso Rick Wakeman do Terra no Asfalto. 

Descanse em paz e muito obrigado por tudo.

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