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quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Crônicas da Autobiografia - Cantar Ária de Ópera, Soterrado - Por Luiz Domingues

                Aconteceu no tempo do Terra no Asfalto... em 1980         

Uma certa vez, o vocalista da minha banda cover entre 1979-1982, "Terra no Asfalto" (Paulo Eugênio Lima), convidou-me a conhecer um professor com quem estava a ter aulas de canto. Tratava-se de um senhor idoso, com forte sotaque estrangeiro, provavelmente oriundo de algum idioma do leste europeu.
Simpático, porém a se mostrar exigente como professor, ele usava métodos de ensino não usuais e o Paulo Eugênio, nosso vocalista, estava empolgado ao confiar no currículo do seu mestre, mas ao mesmo tempo, a apreciar muito as loucuras por ele propostas como didática. 
 
Nesses termos, fazer exercícios de cabeça para baixo, foi um deles. E lá se pôs o velhinho a falar do fluxo sanguíneo e a pressão na caixa toráxica para emitir-se sons nessas circunstâncias adversas. Parecia fazer sentido pela explicação superficial, mas teria algum fundamento científico, de fato? Eu nunca soube a resposta. 
 
Entretanto, o Paulo Eugênio estava empolgado, porque achava as loucuras fascinantes, bem naquele espírito Rocker de valorizar tudo que não é usual, para se quebrar paradigmas e ignorar fronteiras. Visto por esse aspecto, eu até entendi e também apreciei a loucura toda.
Para reforçar o conceito, "Beatlemaníaco" inveterado que era, Paulo Eugênio citava diversas loucuras perpetradas pelos Beatles nos estúdios Abbey Road de Londres, onde tal banda gravara todos os seus discos e em diversos livros biográficos da banda, constam relatos a dar conta que as ideias mais malucas foram tentadas ali para se obter sons diferentes. 
 
De fato, eu também conhecia algumas dessas histórias, como por exemplo, músicas que o John Lennon gravara pendurado de cabeça para baixo para extrair um timbre vocal exasperante segundo o seu desejo deliberado, para canções tensas. 
 
Portanto, encontrar um professor de canto lírico, com formação de música clássica tradicional, mas com a concepção completamente aberta para métodos nada usuais, foi um achado que ele comemorava e assim, empolgado, fez várias aulas com esse mestre e fez questão de levar-me para conhecê-lo.
Sob uma rápida conversa antes da aula começar, o veterano professor falou-nos que amava a música erudita, mas recusava-se a assistir concertos de qualquer natureza no Brasil. Motivo: ele detinha "ouvido absoluto" e não suportava a desafinação dos músicos brasileiros! Há dois pontos aqui para se observar em torno dessa afirmativa da parte dele: 
 
Primeiro: ouvido absoluto é quando a pessoa tem a percepção de ouvir as notas musicais a identificá-las pela sua vibração. Neste caso, é uma precisão tão grande ou maior do que a dos afinadores eletrônicos. O lado mau de quem tem essa capacidade, é que qualquer som da natureza pode representar uma tortura constante, pois dificilmente vai soar 100% afinado. O sujeito ouve um "toc toc" na porta e a depender da parte da madeira que a pessoa percutiu com a mão, pode ser qualquer nota (digamos que seja uma nota “sol”, como mero exemplo), mas não inteiramente afinada no padrão, todavia alguns “comas” acima ou abaixo da afinação perfeita. E entenda “comas” como subdivisões harmônicas microscópicas de uma nota musical.
Segundo ponto: seria para ofendermo-nos quando ele, sendo um imigrante estrangeiro aqui radicado, falou-nos abertamente que os nossos músicos eruditos, incluso os de alto padrão das grandes orquestras, não afinavam os seus instrumentos corretamente? Creio que não e de fato, nem abalamo-nos com tal afirmação. 
 
Então, a proposta da aula que eu assisti foi bastante exótica sob uma primeira instância. Eu pelo menos nunca havia visto predisposição antes. Pois no fundo do quintal da casa onde esse senhor vivia com a sua esposa, havia uma caixa de areia. Outros moradores devem tê-la usado como uma mini horta ou pomar, mas ele tirou a terra e fez uma espécie de cova, onde mantinha uma quantidade de areia razoável ao lado, para ser usada.
Então ele pediu ao Paulo Eugênio que se deitasse ali e o cobriu com areia a usar uma pá, e deixá-lo inteiramente coberto, só com a cabeça de fora e ali, por cerca de uma hora, deu voz de comando para que ele fizesse exercícios vocais. 
 
Deu para ver que o Paulo fez um esforço tremendo no diafragma completamente comprimido pela areia sobre seu corpo e a voz saia com dificuldade. O professor o incentivava a prosseguir, ao estabelecer correções o tempo todo. 
 
Quando acabou a aula, o Paulo esteve extenuado. Pareceu que havia participado da prova da maratona olímpica. Mas ele relatou-me que o esforço empreendido o ajudava a cantar enfim com o impulso respiratório do diafragma, como cantor profissional deve fazer e não a forçar a garganta. 
Aparentemente fez muito sentido a estranha metodologia do professor. No entanto, perguntado se eu desejava matricular-me no curso do velhinho maluco e passar pelo mesmo tipo de exercício, eu disse a ambos que iria pensar no caso. Bem, isso aconteceu na metade de 1980 e até hoje não decidi se devo aceitar ou não...

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