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quinta-feira, 2 de abril de 2015

Terra no Asfalto - Capítulo 2 - Fernando "Mu": O Deus Desconhecido - Por Luiz Domingues

Para falar de tais questões radicais, a primeira mudança em questão, foi que o Paulo Eugênio fez contato com um músico que conhecera anos antes e com quem tivera uma banda a atuar pela noite paulistana, e que se chamava: Fernando "Mu". Ele era quase uma lenda no meio musical Rocker paulistano, pois tinha um nível técnico elevadíssimo e sabia tudo sobre harmonia, campo harmônico, divisão rítmica etc.

Apesar de tocar divinamente, era uma lenda, contudo, apenas no métier da noite, pois nunca houvera despontado com um trabalho autoral significativo, embora acalentasse tal esse sonho, desde o final dos anos sessenta.

O próprio, Sérgio Henriques, disse-nos que se o Mu entrasse para a nossa banda, nós deixaríamos de ser um grupo para atuar em bares, para tornarmo-nos uma banda de verdade, pois ele sabia muito bem de sua excelência musical.  

A ideia primordial do Paulo Eugênio seria deixar o Wilson na banda, pois os seus backings vocals eram muito bons, e eventualmente ele tocaria violão, e assim a deixar as guitarras para Mu e Gereba, os dois "demônios".

Mas aí ficaria de fato, um desconforto. Um impasse a ser resolvido logo nos primeiros momentos da banda. Então, alheio a esse imbróglio, algo muito inesperado aconteceu no dia em que ensaiávamos com o Fernando "Mu", pela primeira vez. E eu fiquei bastante intimidado nesse dia.
Na segunda foto, a Diva, Elis Regina e o seu grande amigo nos anos sessenta e setenta, o influente radialista, Walter Silva, vulgo: "Pica-Pau" 

O que aconteceu, foi que o Sérgio Henriques detinha um nível muito alto como tecladista, e a sorte por ter uma esposa que possuía contatos. A sua esposa se chamava: Celina Silva, e ela era filha do radialista, Walter Silva, vulgo "Pica-Pau". Esse profissional foi muito famoso no meio radiofônico paulistano nas décadas de 1950 a 1970, principalmente, e este comunicador conhecia a nata da MPB, fossem artistas, fossem empresários ou executivos de gravadoras.

Assim, ao fazer os seus contatos, ele indicou o Sérgio para ser segundo tecladista da banda de uma diva da MPB: uma certa, Elis Regina!

Dessa maneira, estávamos a começar a ensaiar em uma terça-feira tórrida de janeiro de 1980, quando eu vi entrar no ambiente do Bar Opção, dois senhores a trajar terno & gravata. Não reparei na fisionomia deles, e continuei a tocar. Nunca esqueço-me, tocávamos "Michelle", dos Beatles, quando eu olhei para trás e reconheci um dos senhores: era Cesar Camargo Mariano, marido e tecladista da Elis Regina.

Senti-me muito constrangido, pois ele era um músico de nível altíssimo a fitar-me ali a tocar, e eu com a minha técnica simplória, apenas. 

O Sérgio conversou com eles, e cerca de quinze minutos depois, comunicou-nos que estava a desligar-se da nossa banda, pois acabara de assinar contrato para ser o segundo tecladista da banda da Elis Regina, em meio à sua nova turnê. Desejamos boa sorte, é claro, ficamos eufóricos com essa oportunidade surgida para ele, e assim ele desmontou o seu piano elétrico e partiu, ao acompanhar o Cesar, e o outro sujeito, que deve ter sido um advogado.

Na foto acima, Sérgio Henriques está debruçado sobre o piano acústico, enquanto Mariano toca. Elis ouve, e com mão no bolso, a usar barba e óculos, está o baixista Luizão Maia. O rapaz com camisa branca é o trompetista, Farias.

Acompanhamos de longe a rápida ascensão dele com a Elis. Tratava-se da turnê do LP "Saudade do Brasil" onde o Cesar Camargo Mariano montou uma banda enorme, com baixo, bateria, guitarra, percussão, dois tecladistas e um naipe de sopros. 

Por isso ele planejou contar com um segundo tecladista, para poder ficar mais tranquilo nos solos, enquanto o Sérgio apoiaria com a parte harmônica das canções. E assim, recebemos várias notícias dele, doravante. Não perdemos o contato, muito pelo contrário, pois ao final de 1980, ele teve férias da turnê da Elis Regina, e voltou a atuar com a nossa banda, que vivia uma outra formação, quando somou muito, naturalmente, mediante a sua técnica refinada. 

Nesse mesmo dia em que o Sergio deixou a nossa banda, conhecemos o Fernando "Mu". Ele era um sujeito muito estranho. Parecia um pistoleiro soturno de filmes ao estilo dos Westerns, com poucas palavras. Algo a ver com os personagens interpretados pelos atores, Clint Eastwood ou Lee Van Cleef em seus filmes, ao chegarem em uma cidade do velho oeste norte-americano.

Ao demonstrar muita arrogância, mal entrou no recinto e com cachimbo na boca, pôs-se a distribuir ordens para os demais. O Sérgio e o Paulo Eugênio já o conheciam, e não espantaram-se com o seu gênio altivo, no entanto, eu (Luiz), Cido Trindade e Wilson, ficamos atônitos. 

O Mu quis ver o Wilson tocar, e não gostou de seus poucos recursos à época. O Gereba não estava presente, pois pegara o seu cachê recebido, referente da festa na empresa de engenharia onde tocáramos ao final de dezembro, e fora para o nordeste, Rio Grande do Norte, para ser específico, para visitar os seus familiares.

Foto de um show da turnê de Elis Regina, com o Sérgio ao fundo, a tocar em um piano Yamaha, enquanto Elis Regina e Cesar Camargo Mariano cumprimentam o público. 

E com a perda repentina de Sérgio Henriques, aquela promissora banda de dias atrás, estava a esfarelar-se! 

Entretanto, o Mu estava ali decidido a assumir o emprego, pois conhecia o Paulo Eugênio, e sabia que ele tinha muitos contatos na noite paulistana, e ao estar a precisar de dinheiro, pois estava apenas a tocar com uma banda que pretendia fazer som autoral (acompanhado do baixista, Roatã Duprat, filho do maestro, Rogério Duprat, e Luis "Bola", um baterista). 

A banda citada tinha um tremendo som, influenciado pelo King Crimson, mas não estava a ganhar nada naquele momento, infelizmente.

Então, Mu disse ao Wilson que o ajudaria, ao passar-lhe a harmonia das músicas, mas no primeiro show marcado, ele não tocaria por não confiar nele (o Wilson ficou muito indignado com essa franqueza gélida, e saiu do bar, muito bravo, mas voltou a seguir, ao aceitar a "ordem", depois de ponderar). 

E no meu caso, ele escreveu rapidamente a harmonia de cerca de vinte músicas, e além das letras para o Paulo Eugênio, ao dizer-nos que tocaríamos aquele repertório no show, sem maiores explicações.

Ele era arrogante, mas muito competente, pois sabia tudo de cor, como um maestro. E não dava para queixar-se do repertório que ele determina tocar com músicas dos "Beatles", "Traffic", "Ten Years After", "Elton John", "Santana", "Jimi Hendrix", "Led Zeppelin", "Deep Purple", "James Taylor"... e o melhor de tudo: o sujeito tocava muito!

Ficamos boquiabertos ao vê-lo a fazer o "Star Splangled Banner" (o hino norte-americano), com todos os ruídos, distorções e alavancadas idênticas às que Jimi Hendrix executara no Festival de Woodstock, mas com um detalhe: em uma guitarra Gibson Les Paul, sem alavanca. Ele fazia toda aquela gama de ruídos motivados pelo feedback do amplificador, apenas a puxar, literalmente, o headstock da guitarra na mão!
Eis acima uma foto de uma guitarra Gibson Les Paul, modelo "Junior", idêntica à que o Mu possuía, e da qual tocou Jimi Hendrix, a fazer uso do feed back, mas sem alavanca...

Os seus solos eram infernais! O mercado de covers era fortíssimo já naquela época em São Paulo. Essa tradição com bandas cover era forte desde muito tempo. No âmbito do Rock, eu diria que desde o final dos anos cinquenta, pois havia uma enorme tradição forjada por conjuntos de bailes, festas em apresentações pelos clubes da cidade, boites, casas noturnas, festas particulares, festas colegiais etc. Então, nesse ambiente de final dos anos setenta & início dos oitenta, o mercado de covers era muito forte, com dúzias de bandas a disputar espaço para tocar, principalmente em bares.

A diferença brutal, foi que naquela época, isso não atrapalhava em nada os artistas de música autoral, pois haviam espaços para eles.
A música autoral era apresentada em teatros, casas de shows, ginásios de esportes de clubes etc. 

Nesse circuito de bares, só tocavam bandas covers, e nenhum artista autoral interessava-se em tocar nesses espaços. 

De volta ao assunto primordial, os primeiros ensaios aconteceram de uma maneira normal, mesmo sem a presença do Gereba que estava a viajar, mas nessa específica terça-feira, tudo mudou repentinamente, pois perdemos Sérgio Henriques, e o Mu entrou na banda, a impingir-nos ordens e de certa forma, a assustar-nos um pouco com seu gênio irascível. Gereba estava a viajar, mas voltaria, e Wilson ficou bem chateado, mas tudo contornou-se adiante, para ele.

Realmente, com esse temperamento petulante que o Mu possuía, teve tudo para dar errado, todavia, ele realmente culminou em sair logo da nossa banda, mas por outro motivo, parecido com o que tirou o Sérgio Henriques da nossa formação inicial. Conto a seguir, no momento oportuno. 

E assim, fizemos uma nova apresentação no dia 13 de janeiro de 1980, no Bar Opção. Desfalcados de Gereba e Sérgio Henriques, e a estrear o Mu como novo "lead guitar", tocamos como um quarteto, visto que o Wilson ficou em suspensão nessa noite, a aguardar uma nova oportunidade.

"Lay Lady Lay", do Bob Dylan, foi uma das canções que tocamos no primeiro show com a nova formação, a apresentar o Fernando "Mu", como "Lead Guitar"
 
Tocamos aquele repertório que o Mu estipulara, e foi muito bom. Mesmo ao atuarmos como um quarteto, apenas, a apresentação correu muito bem, pois o Mu era excepcional, mesmo. 

A sua base harmônica era extremamente sólida, os solos, contra-solos e desenhos rítmicos, eram executados sob um altíssimo nível. E ele cantava bem, igualmente. Dividiu bem com o Paulo Eugênio, os vocais, e cantou solo, músicas do Elton John, Traffic, e Bob Dylan, por exemplo. 

Cerca de trinta pessoas apareceram nessa apresentação. Claro que houveram muitos amigos ali presentes, mas foi um bom público, se considerarmos que aquele bar ficava em um buraco escondido, quase debaixo de um viaduto e longe da rua agitada da boêmia no bairro, que era a Rua 13 de maio.

O segundo show dessa fase, foi marcado para o dia 20 de janeiro de 1980, no mesmo bar. Ensaiávamos lá de terça a sexta gratuitamente, e assim, nada mais justo que tocássemos lá. E para a nossa surpresa, quase dobramos o público, a arregimentar mais de cinquenta pessoas para essa nova apresentação. A formação foi a mesma, como quarteto.

Nesse ínterim, com maior convívio, aprendemos a entender melhor o temperamento do Mu. Ele era altivo, mas após esse tempo de convivência, percebemos que era mais uma espécie de proteção que ele carregava por suas inseguranças particulares. 

No fundo, era um rapaz bom e mais a vontade conosco a posteriori, ele contou-nos histórias sobre como entrara na música etc. Ele era da geração Woodstock. Enlouquecera lá por 1969-1970 e passou a estudar teoria musical e guitarra de uma maneira compulsiva, com o propósito firme de vir a se tornar um grande músico e artista. 

Havia tido problemas com os pais por conta dessa obsessão, mas seguiu em frente. Tentou engatar trabalhos autorais na década de setenta, mas nada frutificou a contento. Tornou-se uma lenda na noite paulistana, exatamente por tocar demais, mas também por ostentar um temperamento difícil. 

O seu último trabalho próprio, fora com Roatã Duprat e Luis Bola, como já comentei antes. Além do trabalho autoral, tal banda costumava tocar o repertório do King Crimson, com perfeição.

Sim, ele tinha esse jeito autoritário, mas no fundo era um sujeito que apenas sentia a necessidade de ser adorado. Ele era da escola sessentista de Rock e o seu sonho fora o de formar uma banda e ser idolatrado como Jimi Hendrix, Jimmy Page e tantos outros guitarristas desse patamar do panteão dos Deuses do Rock.

De sua metodologia de ensaio, no entanto, creio que não aproveitei muita coisa, pois admito que não gosto de trabalhar em ambiente tenso. Ele tocava muito, mas por ser temperamental, não suportava erros alheios. Não chegava a destratar os colegas em público, mas fulminava com os seus olhos quando alguém errava. 

No tocante ao repertório, eu que nunca fui um entusiasta para tocar covers, ficava até emocionado com as suas interpretações não só à guitarra, mas ao cantar também. Ao cantar músicas do "Traffic", "Elton John" e "Bob Dylan", era demais a sua atuação. 

Mesmo sendo arredio em relação a tocar covers, eu encarei essa fase do Terra no Asfalto como uma autêntica escola. E o foi mesmo decisiva, pois terminada a minha atuação nela, na metade de 1982, senti-me apto para enfrentar doravante um trabalho autoral, com a qualidade técnica vertiginosamente maior do que apresentava à época do Boca do Céu, a minha primeira banda. 

Uma particularidade que revelara o seu drama pessoal em termos de precariedade, o Mu, como vivia em dificuldade financeira, carregava a sua guitarra enrolada com um cobertor velho, pois não possuía um  case adequado (estojo).

Essa foto é de uma guitarra Gibson Les Paul, modelo "Junior", idêntica à que o Mu possuía 

Tratava-se de uma Gibson Les Paul, modelo "Junior", ano 1958. Era uma guitarra rara e valiosa já naquela época, e hoje em dia, se consultarmos os sites de colecionadores, verificaremos que deve ter um valor estratosférico. 

Muito tempo depois, acho que em 1983, mais ou menos, eu soube que ele houvera sido assaltado e agredido em uma rua do bairro do Brooklin, na zona sul de São Paulo, na saída de um bar onde tocara nessa determinada madrugada. Ele foi encontrado caído com um ferimento na cabeça, e a sua guitarra Gibson, nunca mais foi encontrada...  uma enorme pena.

A maldade sempre nos ronda, no entanto, outras histórias trágicas desse nível com o Terra no Asfalto, só lembro-me de uma, mas que ocorreria bem depois, na segunda fase da banda, mais ou menos em fevereiro de 1981. Contarei na devida cronologia. 

E quanto ao Mu, esse assalto e agressão foi um telegrama premonitório do que acontecer-lhe-ia alguns anos depois. Soube que mais ou menos em 1997, ele morreu assassinado em uma mesa de bar. O motivo teria sido um acerto de contas por conta de dívida com traficantes.

Mas de volta à cronologia, eu preciso mencionar que o Mu tocava violino, também. Ele fazia os solos do Jerry Goodman e do Jean Luc Ponty (nas respectivas épocas de ambos na formação da "Mahavishnu Orchestra"), com perfeição, além de diversas demonstrações de virtuosismo ao estilo da Country Music, norte-americana. 

Esteve nos planos da nossa banda usar-se esse expediente, e de fato, assim que Gereba e Wilsinho incorporaram-se novamente ao conjunto, chegamos a tocar a canção: "Hurricane" do Bob Dylan, com o Mu a pilotar o violino. 

A próxima apresentação foi no dia 20 de janeiro de 1980, no mesmo Bar Opção.

A Rua 13 de Maio no Bairro do Bixiga, no início dos anos oitenta, época em que era extremamente agitada, com muitas casas noturnas a apresentar música ao vivo, de todos os estilos, lado a lado.

Desta vez, conseguimos atrair cinquenta pessoas, quase o dobro da primeira apresentação. Isso fora uma proeza, primeiro, pelo fato da banda ainda nem ter um nome próprio definido, e segundo pela localização do bar, no agitado bairro do Bexiga, mas longe do foco do grande agito popular, que ocorria na Rua 13 de maio. 

Foi aí que o nosso primeiro voo maior, ocorreu, quando fomos tocar enfim em uma casa mais sofisticada. Tratava-se de um bar localizado na Alameda Lorena, no bairro Cerqueira César (na região da Av. Paulista), e chamado: Le Café.

A partir desse show (ocorrido no dia 24 de janeiro de 1980, e com oitenta pessoas presentes), o Gereba já havia voltado do Nordeste, e o Wilson reingressou na banda, agora a tocar violão, e fazer os backing vocals. Com os três (Paulo Eugênio, Wilson e Mu), a empreender harmonia vocal e três cordas a harmonizar, além do baixo, o som cresceu demais. Passamos a tocar mais canções dos Beatles, com vocalizações muito bonitas dos três.

O Mu deu muitas informações para o Wilson, que cresceu como músico, a melhorar muito. Ele, Wilson, era extremamente dedicado, e sonhava em tocar bem. 

Uma particularidade dele, dava-se pelo fato de que o seu pai fora o alfaiate do Pelé, na cidade de Santos, nas décadas de 1960 e 1970. O Wilson que era santista de nascimento e também torcedor do Santos FC, passou a infância a ter esse contato com o "Rei" do futebol, e vários outros jogadores do Santos FC. 

Ainda a repercutir o mau gênio do Mu, esperávamos um clima hostil dele, Mu, em relação ao Gereba, mas pelo contrário, eles deram-se tão bem, que isso surpreendeu-nos. 

Mas hoje eu enxergo tal fato aparentemente improvável, com precisão: o Mu respeitou o talento nato e bruto do Gereba. Ele não sabia nada de teoria musical, mas o seu ouvido era extraordinário. O Mu que era um músico com sólida formação teórica, percebeu isso. Além do mais, o Mu ficou fascinado com a escola brasileira do Gereba, via Pepeu Gomes, e quis absorver essa técnica.

Foi pelo fato do Mu ter um temperamento altivo, que esperávamos possíveis atritos inevitáveis com o Gereba. É muito raro um guitarrista entender-se bem com outro, em uma banda com duas guitarras. É preciso dividir muito bem os espaços na hora de se elaborar os arranjos, pois um choque de egos, é inevitável.

Geralmente bandas com dois guitarristas na formação, só vão bem, se estes forem muito amigos, e sabem, por conseguinte, controlar muito bem os seus respectivos instintos egóicos. 

O Paulo Eugênio conhecia bem a personalidade dos dois. Convivera com o Mu em uma banda cover no ano de 1978, e conhecia o Gereba desde a adolescência.

Com o Gereba não haveria problemas, pois ele era "bonachão" por natureza, sempre a brincar, mas o Mu tinha aquela pose de estrela. 

Todavia, para a surpresa geral, eles deram-se muito bem. A sorte, foi que o Gereba o cativou pela sua humildade. Como mostrou-se disposto a colocar-se como o segundo guitarrista, o Mu aprovou essa postura da parte dele.

Além do mais, o Mu ficou muito fascinado pela técnica instintiva do Gereba, principalmente no estilo brasileiro. Como o Mu não tinha muito esse traquejo com a MPB, ele quis absorver essa influência, e na contrapartida, o Gereba aprendeu muita coisa de Rock internacional, que era a especialidade do Mu, além da teoria, a estabelecer-se assim, um intercâmbio sadio entre os dois. 

De fato, logo o Mu receberia uma proposta de trabalho irrecusável, e precisava ter essa bagagem brasileira mais na ponta da língua. Falarei sobre isso na cronologia dos fatos.

Dessa forma, sobre Gereba e Mu, ocorreu que um adaptou-se ao estilo tão dispare outro. 

Era difícil não ficar amigo do Gereba, logo de início, pois ele era um sujeito muito simples, mas extremamente comunicativo e brincalhão. Não lembro-me de tê-lo visto carrancudo, nenhuma vez. Ele não era um Rocker, certamente. A sua cultura musical era bem estreita. Mal sabia o nome de muitas bandas clássicas, quiçá as obscuras. O seu talento era enorme para tirar de ouvido peças musicais complexas, e reproduzir fielmente, nota por nota, sem entender nada de teoria musical, e nada de técnica de guitarra ou violão.

Já o Mu, foi o inverso. Ele sabia campo harmônico e escalas na ponta da língua, tinha uma excelente leitura de partitura, e conhecia a história do Rock de cor e salteado.  

Aproveito para mencionar que havia uma turma que gravitava em torno da banda. Eram amigos do Paulo Eugênio, Gereba e Wilson, principalmente.

Neste casarão, funcionava a pensão onde moravam Gereba e Wilson, e que serviu de QG do Terra no Asfalto, nos primeiros tempos da banda, como ponto de encontro. Não existe mais tal casarão, pois foi demolido para dar lugar a um edifício residencial nos dias atuais. Ficava localizado na Travessa São Geraldo, uma minúscula via da rua Turiaçú, sentido centro, antes de chegar-se no cruzamento com a Rua Cardoso de Almeida, no bairro das Perdizes, na zona oeste de São Paulo.

O Paulo Eugênio morava na Rua Traipu, e Wilson e Gereba dividiam um quarto de pensão em uma rua estreita, chamada: São Geraldo, travessa da Rua Turiaçú, ambos os endereços a fazerem parte do bairro das Perdizes, na zona oeste de São Paulo. 

Ali foi o ponto de encontro dessa turma toda. A pensão em que moravam, também chamava-se "São Geraldo", e os outros moradores desse estabelecimento espantavam-se com a movimentação de cabeludos a carregarem instrumentos para lá e para cá. Wilson e Gereba apelidaram a pensão onde habitavam, como "Sãope".

O baixista, Ney Haddad, hoje consagrado ao lado de Kiko Zambianchi, com longo currículo recheado por bons trabalhos musicais na sua carreira

Lembro-me que o baixista, Ney Haddad, foi um desses amigos. Ele era um adolescente nessa época e alguns anos depois, abriria o estúdio "Quorum", no mesmo bairro das Perdizes, além de que tornar-se-ia baixista da banda : "Neanderthal", com a qual tanto o Pitbulls on Crack (a minha banda nessa ocasião futura), teria contato em bastidores de shows e TV, nos anos noventa.

Outro rapaz dessa turma, chamava-se: Sérgio, e ele era irmão de um dos músicos da banda experimental, "Uakti" (que dava os seus primeiros passos naquela época). Ele chegou a contar-me que seu irmão idolatrava o Gentle Giant na década de setenta, e tocava bateria.
Mais um músico que eu conheci bem no início de 1980, foi um rapaz muito magro e elétrico, que respondia pelo apelido de: "Catalau". Ele morava em uma rua próxima (Rua Ministro Godoy), e mesmo por ser muito jovem nessa ocasião, informaram-me que ele havia sido parceiro de composições do "Casa das Máquinas", nos anos setenta.

A namorada do Mu tocava flauta. Chegamos a cogitar ter a sua participação como convidada, quando possivelmente tocaríamos então canções de bandas como: Jethro Tull, Focus, Genesis, Moody Blues etc. Chamava-se: Virginia, e acabara de voltar de Londres, quando informou-nos uma novidade esfuziante: ela tinha visto um show recente do King Crimson... e
u e Cido Trindade ficamos pasmos, pois nem sabíamos que o velho Rei Escarlate havia voltado à cena.
O King Crimson na sua formação dos anos oitenta, que é bem interessante, mas causava muita estranheza aos fãs que acompanhavam o trabalho da banda entre os anos sessenta e setenta. E não nego, também prefiro o trabalho 1960 & 1970
 
E empolgada, dizia que o baixista usava um instrumento exótico, que tinha som de baixo, mas não era baixo (o tal do "Stick"). Bill Bruford não usava uma bateria convencional, e os músicos tocavam trajados com terno & gravata, e usavam cabelos curtos, na intenção parecida com o visual ultra "nerd" dos componentes da banda Techno, alemã, Kraftwerk... cáspite, os anos oitenta estavam a chegar... socorro!

Em relação às pessoas que eu citei nos parágrafos anteriores, eu só tornei-me conhecido delas, praticamente, sem aprofundar-me na amizade com nenhum deles em princípio, a não ser o Ney Haddad, mas este por outras circunstâncias no futuro, como já citei. 

No caso do Ney Haddad, tive notícias dele, anos depois, a dar conta que estava a morar no interior de São Paulo, em Ribeirão Preto, a tocar em uma banda de bailes. Já no início dos anos noventa, soube que havia voltado para São Paulo, quando montara um estúdio.

Frequentei o estúdio "Quorum", de sua propriedade (em sociedade com os irmãos Molina), estabelecimento onde gravei uma fita demo de um trabalho paralelo de um guitarrista, cuja história, já enfoquei no capítulo adequado (Trabalhos Avulsos).

Já entre 1992 e 1994, nos encontramo muitas vezes pelos bastidores de emissoras de TV, Rádio e camarins de shows, por ele ser baixista do "Neanderthal", banda que estaria também presente na coletânea em que o Pitbulls on Crack gravaria, pelo selo Eldorado. 

No caso do Catalau, mais adiante, eu vou contar um pormenor sobre uma quase entrada dele, para o Terra no Asfalto. Foi em um período onde o Mu já havia deixado-nos e o Paulo Eugênio Lima esforçou-se para promover uma reformulação da formação, e a ideia seria contar com três guitarristas: Wilson, Gereba e possivelmente o Catalau, mas não passou das conversas preliminares e alguns ensaios informais.

No início de 1983, eu (Luiz) e Catalau ficamos mais próximos quando A Chave do Sol fechou um contrato no Victoria Pub, para dividir a noite, ou com o Tutti-Frutti, ou com o "Fickle Pickle" (a depender da noite), banda na qual ele era o vocalista. 

Essa história eu já contei com detalhes nos capítulos d'A Chave do Sol. O outro rapaz que era irmão de um dos componentes do "Uakti", e cujo nome não recordo-me mais, infelizmente, nunca mais o vi. Morava em um prédio de apartamentos, também nas imediações, e continha uma particularidade: quando ficava com o estado mental alterado, digamos assim, ele apresentava uma gargalhada descomunal.

Muitas vezes ele provocou epidemia de risadas entre nós, nem tanto pelo motivo da graça em si, mas pelo efeito avassalador de sua gargalhada, que causaria inveja ao Coringa, o inimigo do Batman...

Um outro rapaz, que cujo nome esqueci, mas que era apelidado como: "Catito", era completamente maluco, e tinha aquele comportamento típico de freak setentista.

Lembrava o personagem, "Lingote", do Chico Anysio, pois praticamente só comunicava-se por monossílabos. Era fanático pelo John Lennon, e na sua Kombi (que muitas vezes transportou a nossa banda para apresentações), só ouvia discos solos do Lennon, e enlouquecia ao cantar enquanto dirigia, ao berrar a melodia de músicas como: "Isolation", por exemplo, uma canção forte do álbum do John Lennon, de 1970, "Plastic Ono Band". 

Além do Edmundo Gusso, que eu citei logo nos primeiros capítulos, e mais um ou outro não tão marcante que tivesse-me marcado na memória, creio que o núcleo básico de amigos da banda, nessa fase inicial, foi esse.



Animados com esse show no Le Café, que fizemos três dias depois, realizamos uma nova apresentação no Bar Opção.

No Le Café, atraímos oitenta pessoas e dessa vez no Opção, setenta pagantes. Sem dúvida que ao tratar-se do universo dos barzinhos, foi algo expressivo esse número de pessoas.  
 
E tocamos mais uma vez no Bar Opção, no dia 3 de fevereiro de 1980, com noventa e cinco pessoas presentes, a demonstrar claramente que estávamos a crescer. 
 
No dia seguinte, fizemos um teste em uma casa sofisticada do bairro dos Jardins, chamada: "O Ponto". Era na verdade um clube privê, uma verdadeira alcova, onde homens casados conduziam as suas amantes para iniciar a noitada extra-conjugal. Foi uma apresentação bizarra em seu início, pois o estabelecimento estava completamente vazio e o gerente ordenou que começássemos, assim mesmo, nessas condições.
O Paulo Eugênio ainda insistiu para que esperássemos entrar ao menos algumas poucas pessoas na sala, mas o gerente foi grosso para conosco e mais uma vez ordenou que iniciássemos imediatamente. Certo, a apresentação foi em clima de ensaio durante toda a primeira entrada e somente após o intervalo, algumas pessoas acomodaram-se pelas mesas em frente do palco.
 
Na saída, quando estávamos a carregar o equipamento para fora do estabelecimento, foi que notamos que a casa estava lotada em outros ambientes, digamos mais reservados...
Esse contato era do Mu, que o tinha consigo desde o início, mas ele chegou a comentar com o Paulo Eugênio, que primeiro queria ter confiança na banda, para depois vendê-la em uma casa assim, com maior sofisticação.
 
Todavia, apesar desses avanços, a banda corria riscos. Houve um rumor de que o Mu recebera um convite irrecusável por parte da Celina Silva, esposa do tecladista, Sergio Henriques, e que ele estava propenso a aceitá-lo. Se confirmada a sua aceitação, certamente que abalaria as estruturas frágeis dessa banda, mas seria, pelo seu lado pessoal, uma grande oportunidade para a sua vida e carreira.
Após mais um show no Bar Opção, ocorrido no dia 10 de fevereiro de 1980, com um bom público formado por cerca de cem pessoas presentes, agendamos mais uma boa chance em uma casa de melhor nível. Fomos tocar no bar "Lei Seca", que ficava localizado no bairro do Brooklin, na zona sul de São Paulo. Nesse show, enfim, passamos a adotar o nome: "Terra no Asfalto", após uma rápida votação interna entre os componentes do conjunto. 
A explicação foi a de brincarmos com o conceito contraditório entre a terra rural e o asfalto urbano. A banda não tinha nada de rural, mesmo quando tocava MPB, mas o nome detinha um certo charme. 
 
Essa apresentação no Lei Seca ocorreu no dia 12 de fevereiro de 1980 e arregimentou cinquenta pessoas como ouvintes. O bar era infinitamente mais bem arrumado que o Opção, embora tivesse uma decoração rústica, a imitar um "saloon" do velho oeste norte-americano.
 
Apesar do pouco público, o dono da casa gostou de nós e marcou uma nova data para o dia 16 de fevereiro de 1980. Nesse novo show, conseguimos o mesmo público da ocasião anterior (cinquenta pessoas), mas novamente fomos agendados para uma terceira data, ali. 
 
Continua...

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