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domingo, 25 de janeiro de 2015

Boca do Céu - Capítulo 5 - A Nossa Era dos Festivais - Por Luiz Domingues

Voltamos a São Paulo e estávamos às vésperas do Festival "FEMOC", quando eu tive uma ótima notícia pessoal que refletir-se-ia para a banda: eis que eu ganhei do meu pai, um baixo novo e infinitamente superior àquele simulacro de "Hofner" que eu usava desde 1976.
Foi um instrumento da marca: Giannini, imitação de Rickenbacker, cor cherry (a versão oficial do Rickenbacker qualifica tal matiz, em seu catálogo, como: “Fireglow”), e zero km, ano 1977. 
 
Representou naturalmente um salto de qualidade incrível, a proporcionar-me um impulso em todos os sentidos. Dali em diante, foi que que pude dizer que comecei efetivamente a melhorar, de uma forma vertiginosa, ao nutrir uma motivação ainda maior para melhorar a minha performance no instrumento. 
 
E claro, a qualidade sonora da banda aumentou com um instrumento melhor. Ainda longe de ser um instrumento importado de real qualidade, como eu sonhava possuir, mas foi um avanço em relação ao que eu usava anteriormente.
Vendi o velho Hofner "genérico" e dali em diante, usei o Giannini "RK", até 1981, quando finalmente pude comprar o meu primeiro baixo Fender.
Havíamos inscrito mais uma música no festival FEMOC. Além de "Revirada", inscrevemos também, "Serena", uma balada do Osvaldo, com letra do Laert. 
 
Tínhamos a intenção de inscrever uma terceira música, "No Mundo de Hoje", mas o Festival só previa duas músicas para cada aluno, e como somente eu estudava ali, optamos pelas duas primeiras. Intensificamos assim os ensaios elétricos para dar o melhor de nós nesse Festival. 
Quando soubemos que a eliminatória do Festival estava marcada para o mesmo dia do show do Joe Cocker, ficamos apreensivos, pois não queríamos perder o show do grande astro do Rock. Todavia, o Festival seria muito importante para nós, evidentemente. 

Dessa maneira, tomei coragem e fui pedir ao comitê organizador que deixasse-nos tocar as nossas duas músicas logo no início do evento e dali, sairíamos em debandada para o ginásio da Portuguesa de Desportos, onde tencionávamos assistir esse show internacional e imperdível.

Um outro fator importante para a banda nessa fase, foi a perspectiva para mudar o endereço de nosso ensaio. Já estava tudo acertado com os meus pais, e eu já estava por arrumar o quarto da edícula da minha casa, para abrigar o equipamento. Aproveitei para efetuar uma boa decorada no ambiente. Coloquei cartazes de shows; fotos de bandas que apreciávamos, e outras imagens inspiradoras de ordem contracultural. O que eu não imaginei, no alto da minha ingenuidade juvenil, foi que eu teria problemas sérios com essa mudança. 

Depois que os ensaios começaram a ocorrer em minha residência, a questão da indisposição dos vizinhos com o barulho, teria sido o mais óbvio dos problemas, mas algo pior, que eu não previra, estava por acontecer. E por um triz, a situação não passou dos limites, ao causar-me transtornos muito maiores. No início, tudo foi a ocorrer bem, com a banda a ensaiar aos sábados a partir das quinze horas, até às dezenove, mais ou menos. Mas logo começaram os problemas...
O barulho começou a incomodar a vizinhança, e várias vezes tivemos reclamações nesse sentido. Até aí, normal, pois o quarto de ensaio que usávamos, não continha nenhum preparo acústico, nem mesmo as inevitáveis e super improvisadas caixas de ovos coladas pelas paredes, típica medida barata de quem deseja amenizar um pouco o problema do vazamento sonoro. Mas o pior mesmo, só foi acontecer algum tempo depois, e por um triz, eu evitei um mal maior, ao trazer constrangimento aos meus pais. 

O problema, foi que além da banda, começou a surgir uma quantidade de amigos para assistir os ensaios. Até aí, tudo bem. Mas também começou a surgir a presença dos amigos dos amigos, e chegou-se em um ponto, bem pouco tempo depois, que a situação escapou do controle, com pessoas presentes, sem conexões com ninguém ali do nosso ambiente de trabalho. 

A minha residência tornou-se um “ponto freak”, aos sábados. Houve dia em que eu cheguei a contar vinte e cinco pessoas espremidas dentro do quarto, com a janela fechada, sob um calor incrível. Isso não foi o maior incômodo, por incrível que pareça. O distúrbio maior foi o entra-e-sai de cabeludos, que começou a chamar a atenção da vizinhança.  
 
Por azar, o meu vizinho do lado direito era um policial militar, tenente ou capitão, não lembro-me exatamente qual seria a sua patente. Ele era um bom vizinho, mas começou a ficar incomodado, na verdade, transtornado com o barulho, e com razão, diga-se de passagem, pois ele tinha netos pequenos. Não posso acusar, mas desconfio que ele tomou algumas medidas, graças aos seus contatos.
Pois um dia, um hippie do bairro chamado, "Kanton", que inclusive era meu colega de escola, veio dizer-me que ouvira um rumor a dar conta de que a polícia estava a rondar a minha casa, e que preparava uma batida para qualquer instante. Foi enfático ao dizer-me que eu deveria cortar o quanto antes esses ensaios, pois eles iriam enquadrar todo mundo. 

Ah... os anos setenta... como tenho saudade de muitos aspectos, mas de certas nuances arbitrárias e truculentas, absolutamente não! Portanto, infelizmente, a despeito dessa arbitrariedade poder acontecer pelo fato de vivermos sob atos inconstitucionais que legitimavam-na vergonhosamente, eis poderia lograr êxito uma investida súbita dessas por um aspecto: ao fugir ao meu controle, algum freak desses poderia portar drogas, certamente, e aí, sobraria para o dono da casa, no caso, eu mesmo e consequentemente, meus pais haveriam de submeter-me a uma situação bastante desagradável por conta do fato ali gerado. 

De fato, por várias vezes eu tive que pedir aos convidados, que apagassem os seus cigarros alternativos, confeccionados com material ilícito, e pior, cheguei a flagrar várias vezes, alguns freaks a sacar "bolas" de suas bolsas, e consumi-las, ali dentro, sem nenhuma cerimônia. 
E uma vez, no clímax, flagrei um casal no banheiro da edícula, prestes a usar ampolas. Em suma, foi uma espécie de cena digna do filme: "Christiane F." a acontecer fora do meu controle, e para piorar, eu não fazia a menor ideia sobre quem eram essas pessoas ali presentes!

À medida que a data da nossa participação no Festival FEMOC aproximou-se, a nossa preocupação em ensaiar e apresentarmo-nos o melhor possível, norteou os primeiros dias de agosto de 1977. Preparamo-nos dentro de nosso limite, que era estreito, por motivos óbvios, à época. 
 
Lembro-me que no dia da apresentação, acordei com um frio no estômago. Tratou-se em realidade do meu segundo show da vida, sendo que o primeiro houvera sido uma apresentação tosca, e tenha tido como público, parentes e amigos do baterista, Fran Sérpico, tão somente, em meio a uma festa de aniversário familiar, portanto, a conter pessoas indulgentes para conosco. 

No entanto, ante tal nova circunstância seria bem diferente. A despeito do caráter amadorístico de um festival estudantil, realizado em um colégio estadual, tratar-se-ia de um palco, com um equipamento de P.A. e ante a presença de público (alunos, parentes e amigos dos concorrentes, eu sei), mas pela primeira vez, numeroso, e com gente desconhecida a ver-nos. 
 
E além disso, havia a nossa excitação Rocker, para após concretizar-se a nossa participação no Festival, irmos assistir um show internacional. Estávamos muito eufóricos por podermos assistir ao vivo, o mítico, Joe Cocker, na mesma noite.
Chegamos ao ginásio de esportes do meu colégio por volta das dezesseis horas para fazer o soundcheck. O equipamento ali montado, foi surpreendente para um festival colegial. A explicação para tal requinte, foi que pertencia a um conjunto de bailes do bairro, chamado: "A Gota", e um ou dois membros desse conjunto musical, terem sido alunos do colégio, daí o preço camarada que cobraram pela locação (isso é uma mera dedução minha, ao falar com a experiência adquirida, de hoje em dia). 

Como completos incautos, mal sabíamos portar-nos em um trabalho de soundcheck. Nossa sorte, foi que os demais concorrentes não foram nada diferentes de nós, em termos de postura.  

Eu conhecia apenas uma banda entre os demais participantes, na qual os elementos detinham um nível melhor que o nosso, inclusive e cujo guitarrista era meu conhecido, apesar de estar a cursar uma série mais avançada e ser mais velho, cronologicamente. É uma lástima, mas não consigo lembrar-me do nome dessa banda, e só recordo-me do apelido do sujeito: "Cri". O som deles era meio no estilo do “Santana”, a conter balanço latino-caribenho, e tocavam bem melhor do que nós, tecnicamente. 

Feita a passagem de som (muito mal feita por sinal), a toque de caixa, fomos todos à minha casa, que era perto dali e estabelecemos uma concentração, ao prepararmo-nos para tocar. Fomos ao colégio por volta das dezenove horas, sendo que o prometido fora tocarmos às vinte horas em ponto.  

Quanto à nossa expectativa, claro que foi a melhor possível. Estávamos eufóricos, pois foi em tese, a nossa primeira apresentação de fato, visto que o primeiro show fora uma apresentação caseira, para amigos e parentes do nosso baterista, Fran Sérpico. 

Esse evento foi, proporcionalmente, enorme diante de nossas expectativas juvenis. Mal jantamos, tamanha e vontade de subir logo no palco e tocar as nossas duas músicas, "Serena" e "Revirada". E ainda havia a expectativa para irmos assistir o show do Joe Cocker, o outro elemento excitante para a noitada de Rock. 

Lembro-me vagamente das duas músicas. Se precisasse tocá-las hoje em dia, bastaria ouvi-las novamente e eu tocaria com facilidade, pois eram simples em sua execução, e muito provavelmente eu promoveria melhoramentos, pois tenho quarenta anos de experiência acumulada hoje em dia, 2016. 
 
Essas letras não constam no portfólio oficial, infelizmente, a não ser "Serena" que aliás, eu encontrei no perfil do Osvaldo, na extinta rede social "Orkut". E não há nenhum registro de áudio, lamentavelmente. E também, a letra da balada, “Diva”, achada em um manuscrito. Uma pena mesmo, não existir o áudio da época.
O que conversamos em minha residência, nos momentos que antecederam a apresentação, sinceramente não lembro-me com riqueza de detalhes, mas certamente deve ter sido uma conversa a girar em torno da expectativa da nossa performance. 
 
Não havia nenhum acerto a ser feito de última hora. Apenas conversávamos sobre o festival e claro, estávamos também animadíssimos para assistir o show do Joe Cocker.
Afinal de contas, shows internacionais eram raros naquela época, e com três meses de diferença, apenas, havíamos visto o “Genesis” e agora “Joe Cocker”, um ícone “Woodstockeano”. 
 
E a sua banda veio vitaminada com dois músicos de apoio dos Rolling Stones: Bob Keys (sax) e Nicky Hopkins (piano). Não estávamos por acreditar que veríamos tantos ícones do Rock, e no mesmo dia em que o Boca do Céu faria a sua primeira "grande" apresentação em público.
         Osvaldo Vicino, em foto bem mais atual, dos anos 2000

Só um breve parêntese, eis abaixo uma balada do Osvaldo, com letra escrita pelo Laert, que passou a fazer parte do nosso repertório. Segundo o Osvaldo, era inspirada em uma letra do “Uriah Heep”, que ele lera em uma edição da Revista "Rock, a História e a Glória". Chamava-se: "Serena". E abaixo está a sua letra, que eu copiei ipsis litteris, como a vi no perfil pessoal dele, na extinta Rede Social, Orkut:

SERENA

(Osvaldo Vicino-Laert Sarrumor)

Tom - D



Não sei o que você tem

Que me perturba me faz tão bem

O seu olhar me ofusca

A sua voz me emudece

Você é tão serena

E me faz tão intranquilo

A sua sensatez me envolve

Me faz insano

Quero despojar minha loucura

Na pureza do seu beijo

Lapidar minha aspereza

No macio do seu corpo


Música do Osvaldo Vicino e letra do Laert "Sarrumor" Julio.

Como eu já disse anteriormente, no dia da apresentação, quando despertei pela manhã, senti uma espécie de calafrio estomacal. 
Seria uma apresentação para muita gente, e com palco, equipamento de som e iluminação. Porém, vou contar-lhe, meu caro leitor: foi dessa vez, um pouco nas próximas, e logo eu pude controlar essa ansiedade. Rapidamente dominei esse nervosismo de subir ao palco. 
 
Conheço gente que é veterana, e até hoje sente receio para enfrentar o público, mas eu rapidamente dominei isso. Ainda bem, nunca sofri com o temível, “Stage Fright” (medo de palco).  

Para falar sobre o festival: houve a presença de um apresentador, sim. Foi um aluno do terceiro ano, desinibido e falante, com vocação para animador de auditório. O júri foi formado por vários professores. Fomos chamados, e o nervosismo mostrou-se grande. 

Começamos com: "Serena". O retorno estava péssimo, pois mesmo com um equipamento razoável à disposição, o ambiente era o ginásio de esportes do colégio, portanto uma acomodação acústica inóspita para apresentações musicais, somado ao descaso dos técnicos e ainda a contar com a nossa inexperiência inerente... dessa forma, sentíamo-nos inseguros e "Serena" saiu mais ou menos. 

Sim, o apresentador interveio novamente, e anunciou a próxima música, que foi: "Revirada". Como ela começava com o Wilton Rentero, sozinho, a executar uma introdução bem ao estilo nordestino (sob uma energia Rocker, é bem verdade a la Pepeu Gomes), imediatamente tal intervenção despertou a atenção do público, que aplaudiu, e isso deu-nos muito maior confiança. 
 
Depois, quando adveio a parte "Rock'n' Roll", que animou ainda mais a plateia, que apreciou de primeira. Houve aplausos e assovios. E nós saímos contentes do palco, por termos tido essa boa receptividade. Havia cerca de trezentas pessoas presentes no auditório. 

Claro, os nossos familiares estavam presentes e confesso que foi estranho tocar perante os meus pais, no entanto, como houve um contingente grande na plateia, procurei não olhar muito para as cadeiras onde eles estavam sentados. 
 
E sem nenhum constrangimento, digo que o nível musical dos concorrentes era muito fraco e a única banda que era superior à nossa, foi a do guitarrista conhecido como, "Cri", que eu já descrevi anteriormente. Saímos rapidamente do colégio e guardamos os instrumentos em minha casa, pois estava em cima da hora para chegarmos ao Ginásio de esportes da Portuguesa de Desportos, onde estava para começar o show do Joe Cocker. 

Conseguimos classificar as duas músicas para a final, que ocorreu no dia seguinte, 14 de agosto de 1977.
Entretanto, antes de falar sobre isso, preciso contar sobre o show de Joe Cocker, uma outra aventura Rocker a ocorrer na mesma noite... E com aquela atmosfera típica dos anos setenta, maravilhosa, é claro. Logo que entramos no ginásio, encontramos um freak, que era conhecido nosso de tantos outros shows. Não lembro-me de seu nome, apenas que era uma figura recorrente em portas de teatros; ginásios & afins. Ele sacou um caderninho de sua bolsa, e ali estava anotado o possível set list do show que ele deduzira que o Cocker cantaria naquela noite.
Tempos românticos onde permitia-se esse exercício de imaginação, pois hoje em dia, bastaria consultar o "Google", e procurar o set list básico da turnê do artista para saber precisamente, quais músicas ouviríamos. Todavia, na base da pura especulação apenas, lembro-me que o freak acertou bastante, pois só faltou o blues, "Saint James Infirmary", que ele cravou como certo, mas Cocker não o cantou (que pena, é uma peça belíssima). 

A abertura do show foi cumprida pela banda de baile: "Placa Luminosa". Trava-se de uma tremenda banda, formada por músicos de alto nível, porém, não tinha nada a ver com o público formado por hippies; freaks & Rockers, ali presente. Foi um enorme erro da produção, não ter convidado alguma banda de rock autoral, como: “Mutantes”, “O Terço”, ou “Rita Lee & Tutti-Frutti”.
Os artistas do Placa Luminosa tocaram covers variados, indo do espectro da música Pop, à Black Music e também da MPB (lembro-me deles a tocar o chorinho: "Meus Caros Amigos", do Chico Buarque, naquela noite). Como resultado prático dessa ambiguidade, houve uma tremenda vaia do público. Então o baixista irritou-se, e ao perder a cabeça, falou ao microfone: -"vocês querem Rock?"
 
O público aumentou a vaia pela atitude, certamente ao interpretá-la como um sinal de prepotência, e então, eles começaram a tocar, "The Ocean", do “Led Zeppelin”. Muito bem tocado por sinal, mas a antipatia do público já estava sedimentada, e dessa forma, a banda recebeu mais uma vaia incrível. 
 
Após esse entrevero, aconteceu um enorme atraso, que irritou muito a plateia, mas dá-se o devido desconto pois foram na prática os primeiros shows internacionais a ocorrer no Brasil, que não detinha a mesma estrutura para receber artistas internacionais, de hoje em dia. 
Lembro-me do guitarrista argentino, Tony Osanah, a tentar acalmar os ânimos, quando disse ao microfone: -"pessoal, o Cocker já está aí"... com aquele forte sotaque porteño. Todavia, compensou muito a demora, quando o Cocker entrou no palco!
Foi um show matador, do começo ao final, com um Cocker ainda a usar cabelos longos, sob um visual Woodstockeano. Foi a turnê do LP "Jamaica Say You Will", no entanto, o show foi recheado com clássicos dos primeiros discos. E com Bob Keys no saxofone e Nicky Hopkins ao piano, como convidados especiais. 

Quando o tecladista, Chris Staiton, começou a tocar os primeiros acordes de "With a Little Help From my Friends", no órgão Hammond, o ginásio veio abaixo! Pareceu a reação de torcedores em estádios de futebol, na hora do gol de seu time, tamanha a euforia gerada. 
 
Vale lembrar que em 1977, ainda vivíamos os ecos de Woodstock, fortemente por aqui. Nesses termos o impacto emocional ali gerado, motivou uma emoção coletiva muito forte nessa hora. O coração veio à boca, literalmente e muita gente chorou de emoção, à minha volta, eu recordo-me dessa cena. Como última lembrança, o Cocker foi bom de cerveja, pois durante o show, ele bebeu sozinho um engradado inteiro com latinhas, que ficou à sua disposição, em cima do praticável da bateria. 

Bem, o show do Joe Cocker foi inesquecível, pois ainda mantinha o frescor da sua forma Woodstockeana. Foi inacreditável estarmos a ver aquele mito do festival e que só conhecíamos pelo filme (e também pelo documentário: “Mad Dogs and The Englishmen”), ali, a esgoelar-se no seu vocal dramático e bluesy. O repertório foi incrível. Cocker cantou os seus grandes clássicos e a banda, que o acompanhou foi espetacular.
De volta à nossa realidade, quanto ao festival FEMOC, o baterista Fran Sérpico ficou até o final e soube do resultado. Lembro-me que haviam também vários colegas do colégio para avisar-me, à disposição, também. A nossa reação pelo resultado obtido? Claro que ficamos eufóricos. Classificamos as duas músicas, e isso foi o máximo para nós, a despeito da concorrência ser tão ruim ou pior, com exceção da banda do "Cri", que tocava melhor que todos, mas que curiosamente não sobrepujou ninguém, também a denotar que o critério do corpo de jurados fora baseado em qualquer fator, menos conhecimento musical...

Sobre o fato do Fran Sérpico não ter ido ao show do Joe Cocker, o fato foi que ele não saía muito conosco. Não que não quisesse, mas por ainda ter pouca idade (se eu tinha acabado de completar dezessete, ele devia ter cerca de quinze para dezesseis anos de idade, na ocasião), e ainda vivia sob a mão pesada dos pais. Então, foram poucas as ocasiões em que o nosso amigo foi em shows comigo, Luiz; Laert e Wilton. E o Osvaldo também não saía muito nessa época, houvera sido mais assíduo em 1976. 

Com relação ao festival, o Fran ligou para Osvaldo e Wilton, e havia deixado recado na minha casa, ainda no sábado, visto que eu morava bem perto do colégio. E o Laert ficou de ligar para o Osvaldo ou Wilton, no dia seguinte. Uma comunicação prosaica em tempos não tão distantes assim pela cronologia, mas jurássicos pela diferença tecnológica, digamos assim.
Ás dezesseis horas do domingo, estávamos agrupados e prontos para o soundcheck no colégio. A adrenalina estava a mil por hora. A nossa classificação para a etapa final e a excitação por termos assistido o Joe Cocker na noite anterior, somadas, deixaram-nos eufóricos. Euforia perigosa, por sinal, pois éramos inexperientes e ruins tecnicamente, portanto essa falta de foco poderia atrapalhar-nos e muito. Pois é... poderia atrapalhar de uma forma incisiva, mas pelo contrário, beneficiou-nos, pois entraríamos em cena com uma garra incrível. E chegou a grande hora.

Sem impedimentos, tocamos as nossas duas músicas separadamente, a intercalá-las aos outros concorrentes. Estávamos muito mais seguros agora, e excitados. Portanto, a performance da banda, para as duas músicas, foi muito superior. "Serena" não atingiu nenhuma classificação, mas "Revirada" ficou em segundo lugar no Festival. Sinceramente, a despeito de nossa deficiência técnica, creio que merecíamos ter vencido o festival, pois fomos os mais aplaudidos. 
 
A música vencedora era pobre. Foi defendida por três garotas a cantar em uníssono, acompanhadas de um violonista. Foi uma canção insípida, popularmente romântica, cujo refrão dizia: -"porque te amo, e não quero te esquecer"...
Mas foi compreensível que vencesse, pois o júri conservador, formado por professores, não daria a vitória a uma banda de cabeludos, a tocar Rock, e com uma letra a contestar o sistema vigente. Para compensar, convidaram-nos a fazer um show, dois sábados adiante, quando os cinco primeiros colocados tocariam novamente. 
 
Isso para nós, foi mais importante do que ganhar o festival. Além de tocarmos, "Revirada", novamente, poderíamos fazer um show com duração de trinta minutos. E evidentemente que tal convite nos tornou eufóricos! 

Foi uma grande vitória para uma banda absolutamente iniciante e com quase todos os componentes em fase de aprendizagem musical, ainda muito preliminar.
O troféu que ganhamos com o segundo lugar de "Revirada", no Festival "I Femoc", de 1977, acima em duas fotos

Como prêmio, ganhamos um troféu, que guardo até hoje na minha memorabilia. Nessa final do “FEMOC”, o público foi muito bom. Aproximadamente quinhentas pessoas compareceram ao ginásio de esportes do Colégio Estadual de Segundo Grau Oswaldo Catalano. 
 
E no sábado, 27 de agosto de 1977, fizemos o show da festa de entrega de troféus, para um público de aproximadamente duzentas pessoas. Antes de tocarmos, houve um minuto de silêncio pela morte de Elvis Presley.
Tocamos as seguintes músicas: "Mina de Escola", "Tudo Band", "O Mundo de Hoje", "Ah se você soubesse", "Consenso Geral" e uma versão livre (e pobre), de "Meus Caros Amigos", do Chico Buarque, certamente impactados pela performance do Placa Luminosa que assistíramos, por ocasião do show da abertura do show do Joe Cocker. 
 
E claro, "Revirada", a celebrar o nosso segundo lugar obtido. Foi uma vitória e tanto para quem engatinhava na música. Recebemos vários convites para shows de Rock, que nunca realizaram-se a posteriori, mas adoramos chamar a atenção dessa forma! 

Em relação ao fato de não termos vencido o festival, mas chamado tanto a atenção, a despeito desse detalhe, sim, foi a tal questão da proporcionalidade. Muitas vezes, aquele elogio simplório da professorinha primária pode ter mais impacto na vida de uma pessoa, que uma grande realização obtida na vida adulta. 
 
Essa comparação metafórica cabe aqui, pois a alegria que sentimos por termos sido aplaudidos, ao termos ganhado o segundo lugar, e convidados a fazer o show de encerramento, duas semanas depois, foi enorme, em detrimento de feitos realmente maiores que eu obtive, particularmente já como adulto e músico profissional.
Fora normal para os padrões de um festival amador, e mal organizado, que privilegiassem uma música insossa para vencer o festival. Que perdoem-me aquelas garotas, que inclusive eu nem conhecia, pois não eram colegas da minha classe, mas a música, e a performance delas, foram insípidas. 
 
Nem acredito realmente que a questão da repressão governamental, reinante à época fosse o motivo dessa decisão em não conceder-nos o primeiro lugar. A questão ali foi a falta de discernimento musical & cultural do corpo de jurados, composto por professores do colégio. O único professor mais progressista da escola, foi o professor de português, "seu" Murilo, e ele não fez parte desse júri, embora fosse o mais qualificado, em minha opinião. Dos outros, não poderíamos esperar outra atitude.  

Surgiram dois ou três convites para tocarmos. Um deles foi do pessoal da banda de bailes, "A Gota", que alugou o equipamento para o festival. Mas tudo foi apenas baseado no calor da emoção. Depois esses contatos murcharam e nada aconteceu na prática. 

Para a nossa sorte, independente desses convites, tivemos uma esperança muito boa para o mês de outubro. E logo mais, eu  contarei em detalhes, esse que seria (e foi na verdade), o ápice da carreira do Boca do Céu, sem dúvida. 

Não recordo-me de alguma discórdia interna, gerada por causa da posse do troféu. Lembro do Laert ter ficado com ele por uns tempos, e depois ele ter ficado definitivamente comigo. Está resguardado em meio aos objetos da minha memorabilia. 

Acredito até que os jurados deram-nos o segundo lugar para não contrariar o público, que aplaudiu-nos bastante, apesar das inevitáveis torcidas para as outras canções concorrentes. Sem querer ser insistente, mas ao sendo realista, a música que venceu o festival, foi muito fraca. 
 
Pobre na sua estrutura harmônica, cafona, com uma letra romântica, popularesca e com um padrão de interpretação muito sonso. Nós não éramos bons como gostaríamos de ser, mas pelo menos tínhamos muita força de vontade, ao contrário daquelas meninas a cantar em uníssono como se estivessem na sala de estar de sua casa, em plena noite de natal, com o objetivo de encantar os seus avós... e tem mais: não houve comparação a letra do Laert, com a música delas. Seria como comparar Gilberto Gil em relação a um compositor popularesco qualquer, daqueles que faziam sucesso no programa televisivo: “Clube do Bolinha”. 
 
E a questão do troféu, poderia ficar com o Laert ou Wilton. Seria justo, sendo eles os compositores da canção premiada.
Animados por essas vitórias expressivas que a banda obteve no mês de agosto de 1977, inscrevemos músicas no Festival, “FICO”.
Esse festival era concorridíssimo, e tratava-se de um dos principais festivais colegiais de São Paulo, a contar com uma grande estrutura, inclusive a promover as suas eliminatórias realizadas no salão de festas do Palmeiras; com equipamento de alto nível de som e iluminação e transmissão na TV, pela Rede Bandeirantes. 

Inscrevemos as nossas músicas com o uso das inevitáveis fitas K7, a conter registros tosquíssimos de gravação caseira, mas foi o que pudemos fazer em contraste aos nossos parcos recursos. Apesar disso, estávamos muito confiantes de que ao menos uma música classificar-se-ia. Enquanto aguardamos a lista oficial das músicas classificadas, ensaiávamos com afinco, instalados na edícula de minha residência.
E nesse ínterim, ainda em agosto, ao mudar de foco, lembro de ter assistido uma outra maratona sensacional, desta feita realizada no ginásio da Portuguesa de Desportos. O elenco da noite continha tais artistas: “Som Nosso de Cada Dia”, “Mutantes”, ”O Terço”, Gilberto Gil, “Novos Baianos” e Hermeto Paschoal. Uma lembrança incrível dessa maratona ocorrida na Portuguesa de Desportos, aconteceu no portão da entrada principal, onde em meio à multidão de cerca de cinco mil hippies ali presentes, eis que saíram à rua, a conversar calmamente, as personas de Gilberto Gil e Paul de Castro, baixista dos Mutantes, naquela ocasião. 
Isso foi tão inusitado, que pegou-nos de surpresa, e foram poucos os caçadores de autógrafos que abordaram-nos, talvez pela estupefação que todos sentimos ao vê-los ao passar por nós, como se nada estivesse a acontecer e acredite, leitor, a relação entre artista e plateia era pautada pela idolatria, até então. Lembro-me de vê-los a entrar em um bar nas proximidades do ginásio da Portuguesa, e ambos a pedir guaraná para o balconista, para estabelecer o delírio dos freaks que cercavam-me, incluso os meus amigos...
E no início de setembro, houve mais uma aventura Rocker, sensacional. Contarei com detalhes, a aventura de ver o “Led Zeppelin” na tela do cinema, na primeira sessão, do primeiro dia de exibição oficial. Não anotei, portanto não tenho a data correta, mas foi ao início de setembro de 1977, que o filme: "The Song Remains the Same", do Led Zeppelin, estreou enfim no Brasil.  

Nem preciso descrever a excitação que isso causou-nos, pois além do Led Zeppelin ter sido uma banda padronizada como "mega" no nosso imaginário, e campo de influências óbvias, foi na prática, a única maneira de vê-los em ação, pois eram raríssimas as imagens do Led Zeppelin a tocar ao vivo, graças à estratégia de mão pesada do seu empresário, Peter Grant. 
 
Além do mais, como tupiniquins de terceiro mundo, só mesmo os muito abonados, para sair da Pindorama e ir ver ao vivo em algum palco de um país de primeiro mundo. Sendo parte da maioria esmagadora dos não pertencentes à essa camada seleta de adolescentes filhos de pais ricos, eu e meus amigos só poderíamos ver dessa forma, sob uma tela de cinema. 
Uma semana antes, a distribuidora do filme, em parceria com a gravadora WEA-Atlantic, promoveu uma avant-première, com direito a cocktail e também pelo reforço de um equipamento de PA, dentro de uma sala de cinema, para reproduzir o áudio com a potência próxima de um show ao vivo. 
 
Eu quase arrumei convite para esse evento, pois o meu amigo, o baterista, Cido Trindade, tinha um contato forte dentro dessa produção, que abriu-lhe essa possibilidade. Na hora decisiva, entretanto, só foi possível obter convite para ele e sua namorada, e naturalmente que eu fui preterido e infelizmente perdi essa oportunidade. 

Então, como pobre mortal, contentei-me em assistir a partir da exibição aberta ao público. Foi bem próximo ao feriado de 7 de setembro, provavelmente no dia 8, pois lembro-me bem que foi em uma quinta-feira. 
 
De todos os amigos e companheiros da banda, somente o Wilton Rentero pôde ir, pois queríamos assistir logo na primeira sessão.
Lembro-me que estava a fazer um frio intenso nesse dias e com leve garoa, o que forçava-nos a andarmos pelas ruas, todos encapotados e certamente mais elegantes e Rockers. 
 
Chegamos ao Cine Majestic da Rua Augusta, bem próximo do cruzamento com a Av. Paulista, por volta do meio-dia, para esperar pela sessão das quatorze horas e já havia um freak sentado no chão, perto da bilheteria. Rapidamente vimos chegarem mais hippies, freaks e Rockers pelos dois lados da rua. 

Vou te contar, meu amigo leitor: que saudade eu tenho dessa época, com esses ecos woodstockeanos, ainda tão vívidos. Esse clima de porta de show, era sempre mágico, sentíamo-nos como se estivéssemos na porta do “Fillmore West”, “Winterland”, “Raibow Theater” de Londres, enfim... quando a bilheteria abriu, a fila já era imensa. O rapaz que já estava lá antes de nós, comprou o ingresso, e com ele em mãos, fez uma "pose" e recebeu aplausos da massa freak ali formada.  
 
Fui o segundo e também recebi aplausos dos hippies ao meu redor. Esse clima de fraternidade e cumplicidade em um ideal, foi destruído logo a seguir, infelizmente, graças aos ventos do baixo astral que já sopravam em Londres, e com esses simpatizantes dessa causa esdrúxula, a comprometerem-se a "destruir" tudo o que amávamos... ou seja, que bela "atitude"... mas ainda posso afirmar que experimentei o fim dessa Era Hippie, e sinto-me feliz por ter essas lembranças preciosas em minha memória.
E quanto ao filme, as reações das pessoas na audiência, assemelharam-se às de um show ao vivo. Quando o Robert Plant comia um cogumelo, na cena em que "interpreta" um cavaleiro medieval, as pessoas vibravam, soltavam gritos. A cena do Jimmy Page, como um bruxo ermitão na montanha, também provocava reações acaloradas. Tudo isso além do fato das pessoas a cantarem e muita gente, por não aguentar ficar sentado, a ir dançar pelos corredores da sala de cinema, a tocar guitarras imaginárias. 

Foi inacreditável estar a ver o Led Zeppelin ao vivo, mesmo que sob uma tela de cinema, e a despeito da performance musical da banda nesse filme, não estar cem por cento, honestamente ao analisar. E fui muitas outras vezes assistir, com outras companhias. Lembro-me de ter ido no sábado posterior, por exemplo e desta feita acompanhado do Laert e de uma série de outros amigos e conhecidos dele, Laert, também. 
 
Nesse sábado, lembro de haver sentado-me ao lado de uma amiga dele que estava a viajar pelo efeito de "speedballs" e essa garota não parou um segundo sequer  em contorcer-se durante o filme inteiro, com picos de euforia exacerbados em canções que ela devia gostar mais. E se o leitor prestar bem atenção nos relatos sobre fatos paralelos à minha banda, verificará que o ano de 1977, foi recheado por eventos muito marcantes, a contar com shows, e efervescência cultural a estourar em outros ramos artísticos, apesar dos ventos de baixo astral que já sopravam na Inglaterra.
Capa do programa do Festival Fico, onde o Boca do Céu concorreu em duas eliminatórias, nos dias 7 e 14 de outubro de 1977

No caso do FICO, tratou-se de um festival particular, promovido por um colégio chamado, Objetivo, mas que detinha uma grande estrutura. As eliminatórias eram realizadas no salão de festas do Palmeiras, com cinco mil adolescentes ensandecidos na plateia; palco com equipamento de PA e iluminação profissional; a presença da orquestra do maestro, Záccaro, para quem quisesse contar com tal apoio instrumental e também pela presença de  artistas mainstream para cumprir os shows, a cada eliminatória etc. Vou esmiuçar a seguir a nossa experiência em tal festival!

Para a nossa alegria total, classificamos duas músicas no Festival FICO. Tocaríamos: "Diva" e "O Mundo de Hoje". Havíamos enviado outras músicas, incluso, "Revirada", sem dúvida a nossa maior aposta disponível, e certamente a mais forte do nosso repertório, mas sabe-se lá por que, as classificadas foram as que citei acima.
O antigo salão de festas do Palmeiras, na primeira foto e o maestro, Zaccaro, na segunda foto

Fomos tocar com aquele temor juvenil psicológico, na primeira eliminatória, dia 7 de outubro de 1977. Lembro-me em chegarmos por volta das quinze horas nas dependências do Palmeiras, para o soundcheck, e ficarmos deslumbrados com o tamanho do palco; o equipamento, e o tamanho do salão, onde muitos shows de Rock e MPB aconteceram anteriormente, fora os tradicionais bailes de carnaval do clube e o famoso "Chic Show", que foi o maior baile Black Music da cidade, durante muitos anos. 

Passado o som com toda a rapidez peculiar com a qual os técnicos costumam lidar com artistas desconhecidos, fomos esperar a nossa vez para tocar. Foram horas a perambular pelas áreas permitidas dentro do Parque Antárctica, e quando abriram os portões para o público, aumentou a nossa sensação de ansiedade, ao vermos aquela massa a entrar e rapidamente a abarrotar o salão. Seguramente, houve a presença de cinco mil pessoas presentes naquele ambiente. 
 
Tratou-se de um público formado por alunos, com cem por cento de adolescentes dispostos a bagunçar a todo custo. Sabíamos que ao tocarmos bem ou mal, seríamos hostilizados somente por conta do bullying natural que representaria aquela experiência infantojuvenil. Antes, assistimos o soundcheck dos artistas mainstream que apresentar-se-iam após os concorrentes. 
Naquela primeira noite, seriam "Os Originais do Samba" e com a sua formação clássica, com Mussum, o trapalhão, na formação dos sambistas. Então, quando o festival começou, ficamos naquela expectativa para chegar a nossa vez. E os concorrentes anteriores já haviam sido bem hostilizados... defenderíamos a música: "Diva", nessa primeira eliminatória. Tratava-se de uma canção um tanto quanto taciturna, composta pelo Laert, ao sair um pouco de suas características normais do humor, pois tinha uma letra introspectiva. Ele havia-a composto ao piano, certamente inspirado no estilo de uma MPB, dita mais introspectiva, digamos assim. Eis os primeiros versos de "Diva":

"Diva, eu divaguei

Pela imensidão do tão pouco,

Pelo incomensurável... nada"...
O Laert Sarrumor a cantou ao tocar um piano, “Fender Rhodes 88”, lindíssimo, e aliás o seu sonho de consumo. No entanto, sou forçado a considerar dois aspectos especiais:

1) Ele, Laert, era iniciante ao piano, e portanto, não detinha grande desenvoltura técnica para tocar despreocupadamente, e...

2) Apesar de sonhar em possuir um piano elétrico, Fender Rhodes, ele nunca houvera tocado em um instrumento desses. Quem é tecladista, sabe muito bem que a tensão das teclas de um piano elétrico é muito mais sutil que a de um piano acústico tradicional. Então, ele estranhou demais a diferença na passagem de som, e sabia que estaria em uma situação difícil na hora de tocar para valer, e ainda com a incumbência de cantar e interpretar a canção que defenderíamos, o melhor possível. 

Quantos aos demais, o arranjo para cada um de nós foi simples. O Osvaldo Vicino estava seguro ao fazer a base harmônica, Wilton Rentero faria contra-solos e desenhos para ornamentar a canção e eu e Fran Sérpico, faríamos uma cozinha bem simples, sem voos, mesmo por que, não sabíamos voar naquela época.  

Contudo, a hostilidade mostrava-se imensa por parte do público. Poderiam subir os Beatles ali naquele palco, e seriam maltratados, pois essa foi a determinação daquela horda de vândalos, como torcida uniformizada de futebol. Entramos no palco, e sob vaias e insultos, eis que voaram diversos objetos inusitados em nossa direção. 
Uma moeda de valor, CR$ 0,50 (para quem lembra-se dessas moedas de centavos de cruzeiros, dos anos setenta, há de recordar-se que eram enormes e pesadas), bateu na lente direita dos óculos do Laert e a rachou. A depender de onde se chocasse, poderia gerar um hematoma de certa gravidade, pois continha a massa de uma pedra, e com a deslocação aérea, ficava ainda mais pesada no impacto. 
 
O Laert assustou-se, é claro, mas fingiu naturalidade, ali em cena para não desestabilizar a sua performance. Ao tirar os óculos para examinar o estrago, percebi adolescentes a rir do Laert a repercutir a situação, logo nas primeiras filas. Que incautos.
O Laert estranhou muito o piano. De fato, ele martelava as teclas com a força típica de quem toca piano tradicional, mas no piano elétrico, a tensão das teclas é muito mais leve. Piano elétrico precisa ser tocado com menos força, e isso faz muita diferença na execução. Soma-se isso ao fato de que ele não era um grande pianista, e claro, estava nervoso, como todos nós, pela grandeza do evento em contraste com a sua/nossa, inexperiência naquele momento para lidar com uma estrutura muito maior que a nossa condição máxima da ocasião. 

Claro que a violência atrapalhou. Se houvesse sido um público respeitoso, teria amenizado bastante a nossa performance. Mas se é que existe um lado bom (e eu acho que sim), é nesse tipo de situação que se cresce, a estabelecer uma espécie de batismo de fogo. Sim, a complementar o raciocínio anterior, claro que isso contribuiu para o crescimento da banda, enquanto unidade. Certamente isso colaborou para amenizar a tensão em relação à segunda apresentação no mesmo festival, uma semana depois.
De volta ao fato em si, ainda a repercutir a hostilidade do público na primeira eliminatória, o Wilton Rentero passou a ironizar os garotos hostis do público, ao deixá-los, possessos. 
 
Uma chuva de aviõezinhos de papel o cobriu inteiramente, que a rir, continuou a tocar. Não tocamos mal, mas estávamos nervosos, é claro. 
 
Pois além do nervosismo normal pela grandiosidade do Festival, em comparação à nossa insípida condição como banda iniciante, eis que ocorreu toda essa hostilidade. 
Sabíamos que a animosidade aconteceria para com todos os concorrentes, ao se caracterizar como uma praxe, mas foi o tal negócio: como reagiria qualquer garoto impetuoso daqueles que xingavam e arremessavam objetos em qualquer um, se tivesse que subir ao palco e tocar? 
 
Pois é, é muito fácil ficar ali embaixo a xingar e arremessar objetos...
Páginas internas do programa do Festival Fico, em sua segunda edição, ocorrida em 1977, com fotos reais da plateia que enfrentamos na primeira eliminatória
 
E um outro fator, se tivéssemos tocado qualquer outra música mais movimentada do nosso repertório, teria sido mais tranquila a nossa tarefa. No entanto, "Diva", foi uma música introspectiva, difícil para ser tocada sob uma circunstância daquelas. Ao final, fomos desclassificados, resignamo-nos com a questão da hostilidade, e apesar de tudo, estávamos contentes, pois tocáramos em um palco com PA e iluminação de alto padrão, aliás, pela primeira vez na vida para todos nós, também a observar que foi para um público imenso para os nossos padrões de banda de garagem iniciante, e a TV Bandeirantes filmou tudo, a exibir em sua grade, uma semana depois. 

E como curiosidade, lembro-me de passarmos pelos "Originais do Samba" um pouco antes deles subirem ao palco para o seu show e o Mussum (ele mesmo, o "Trapalhão", que era componente da banda, também), ter brincado conosco, ao dizer-nos alguma coisa como: -"hei Rockeiros, paz e amor" ou alguma bobagem/clichê do gênero. 

Não ficamos tristes com a nossa desclassificação, como eu já disse, pois ainda participaríamos da segunda eliminatória, ao defendermos uma outra música, chamada: "O Mundo de Hoje".  

Não vimos os jurados. Eles ficavam em uma bancada, bem longe da balburdia, e analisavam os concorrentes pelos monitores da TV Bandeirantes, que estava a gravar a eliminatória do Festival. Acredito que até dessem-se ao luxo de assistir o replay, disponibilizado pelos técnicos da TV, diretamente da ilha de edição a capturar o material bruto de todas as câmeras.

Eu nunca mais tive receio de subir ao palco depois disso. E a rigor, este foi somente o meu quinto show na vida, ou seja, dominei a ansiedade típica de um músico iniciante, bem rapidamente. 

Bem, a sensação foi um misto de preocupação pela responsabilidade da apresentação, com a alegria em estar sob uma situação de grande porte, ao menos na minha percepção daquela época. Houve uma boa dose de receio pela hostilidade inevitável vinda daquela horda de vândalos imberbes, também. No entanto, sinceramente, a sensação em estar sobre um palco grande, com P.A. e iluminação de padrão profissional; a usar equipamentos bons para tocar e cinco mil pessoas a olhar-nos, além das câmeras de TV a insinuar uma multidão incalculável a posteriori, foi de uma grande realização pessoal, devo afirmar, em termos de início de carreira. 

O Laert usou um piano elétrico, Fender Rhodes, o Fran tocou em uma bateria Ludwig, perolada e igual à do famoso baterista, Ian Paice, e eu (Luiz), Osvaldo e Wilton, usamos amplificadores da marca, Duo Vox, um bom aparelho para os padrões nacionais setentistas. 

Foi muita coisa para uma banda formada por garotos inexperientes e com pouco técnica, com exceção do Wilton que estava alguns passos adiante de nós no estudo musical e o Laert, que era tão inexperiente quanto os demais, mas continha a genialidade nata ao seu favor. 

E chegou a segunda eliminatória. Iríamos defender nessa segunda participação, a música: "O Mundo de Hoje". Tratou-se de um blues, e curiosamente oriundo de uma ideia dos primórdios da banda, anterior à entrada do Laert, portanto de uma época que somente o Osvaldo Vicino detinha uma noção básica sobre música, ao saber tocar alguma coisa. 

É bem verdade que o Laert estabeleceu uma boa melhoria para a letra, e também na questão da melodia original, ao ficar então, com crédito de autor, também. Estávamos bem confiantes e de certa forma vacinados contra a selvageria juvenil dos vândalos do FICO. 

Na segunda eliminatória, defenderíamos uma música um pouco mais adequada para ser executada em circunstâncias a envolver um grande e bem ruidoso público, naturalmente. Mas não foi o ideal, tampouco, pois tratou-se de um blues tradicional, com estrutura harmônica convencional, e sem nenhum grande atrativo impactante. "Revirada", a nossa música mais forte na ocasião, nem classificara-se. 
 
Talvez tenha sido desaprovada pelos jurados na filtragem geral, pelo teor da letra. Sendo o Fico um festival sob maior envergadura, e transmitido pela TV, não convinha deixar alguém abordar algo mais incisivo, nesse momento político muito difícil. Nunca é demais lembrar que naquela mesma época, a repressão governamental atacara violentamente os estudantes, em uma invasão ao campus da PUC de São Paulo.  

Tocamos e não fomos mal. Sem ter que tocar piano desta vez, o Laert movimentou-se livremente como vocalista e frontman, mas a música não ajudou, no sentido de ser um blues com andamento mais arrastado. Não classificamo-nos novamente, mas ficou a sensação do dever cumprido, e a animação de sentirmos que a banda crescia. 

Diante disso, tínhamos a expectativa de ver a filmagem passar na TV. Seria a primeira vez que eu estaria a aparecer na TV, a tocar, e claro que foi um marco. Naquela noite, o show de artista consagrado para aquela segunda eliminatória, foi duplo. O trio vocal e popularesco, "Harmony Cats" (formado pelas cantoras que ficariam famosas no espectro popularesco do futuro: Gretchen, Sula Miranda e uma outra irmã dessas duas cantoras citadas), e a seguir: "As Frenéticas", grupo vocal feminino com alto teor Pop, que estava a explodir na mídia, naquele momento.
A banda de apoio das Frenéticas, mantinha em sua formação, alguns componentes d’O Peso, uma banda setentista do Rock brasileiro, muito boa, o que conferiu ao show, elementos Rockers na execução, a atenuar a "Disco Music" ultra comercial do repertório normal delas. 

Desclassificados, mas animados com a oportunidade para participarmos de um festival com maior porte, aguardávamos então com muita expectativa a exibição das eliminatórias do FICO, através da TV Bandeirantes. 
 
Isso aconteceu duas semanas depois. De fato, foi a primeira vez que aparecemos na TV. Primeira e última, é bem verdade, pois o Boca do Céu nunca teve grandes oportunidades, e posso afirmar sem pudor que foi melhor assim, por que a banda era realmente muito iniciante nessa ocasião.
Após essas participações no Fico, ainda ficaríamos um bom tempo a procurar novas oportunidades em festivais, e shows de pequeno porte em apresentações colegiais. Mas o ano estava por acabar, e a perspectiva seria mesmo para o ano de 1978. 
 
Claro que estávamos a evoluir musicalmente, mas como não éramos punks, a nossa mentalidade foi em tocar um milhão de vezes mais do que tocávamos na nossa realidade ali naquele instante. 

Talvez se houvéssemos empolgado-nos com a "revolução pusilânime" em curso na Inglaterra, naquele mesmo instante, seríamos mais felizes, ao usar a nossa fragilidade musical como um trunfo... mas, calma! 
 
Estou só a brincar... cartesianamente, ainda penso que luxo é luxo e lixo é lixo. Não compactuo com aquela inversão de valores, tão superestimada por certos setores da mídia mainstream sobretudo pelos formadores de opinião...
Vimos então a exibição das eliminatórios do FICO pela TV, e mesmo inebriados pelo glamour em vermo-nos na tela, tivemos o senso crítico para analisar os nossos erros. Em "Diva", estávamos visivelmente nervosos com a reação selvagem da plateia e em "O Mundo de Hoje", o som da mixagem da TV estava muito ruim. Além do mais, a música não era mesmo adequada para um festival.

Mesmo animados, enfrentamos problemas nos dois últimos meses de 1977. O Wilton Rentero passava por uma fase de pressões familiares e teve que arrumar um emprego dito "careta", para lembrar de uma gíria de época que tinha a conotação de representar tudo o que era oposto aos nossos ideais, onde inevitavelmente, precisou aparar o cabelo etc. e tal e acredite, leitor, cortar o cabelo era um sinal fortíssimo de rompimento com a causa, por isso algo tão simbólico para nós. 

Osvaldo Vicino estava a começar um processo pessoal para afastar-se sutilmente da banda, por interessar-se em coisas extra-Rock, que só perceberíamos claramente no decorrer do ano de 1978, e o Fran Sérpico, que sempre foi mesmo o menos interessado entre nós, desde o começo, também preferia desmarcar ensaios nesses tempos, entretido em seus estudos ou em prol de compromissos sociais particulares. 

Em suma, paradoxalmente à animação Pós-FICO, tivemos uma perspectiva estranha a pairar no ar, ao final de 1977...

Continua...

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