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segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Patrulha do Espaço - Capítulo 7 - A Era das Turnês - Por Luiz Domingues

Foi no dia 26 de dezembro de 2001, uma quarta-feira, que a nossa banda deu início a uma importante etapa. Fazia o calor escaldante e típico de dezembro, e sabíamos que a sensação térmica só aumentaria à medida que nos afastássemos da capital de São Paulo, rumo ao interior. 

A logística dessa primeira etapa da turnê não foi a ideal, mas constituiu-se em torno do melhor que o Rolando Castello Junior conseguiu elaborar como um manager, e convenhamos, o trabalho que ele teve para alinhavá-la, fora imenso. 

O ideal teria sido que cumpríssemos o primeiro show na cidade mais longínqua de São Paulo e progressivamente nos encaminhássemos a tocarmos nas demais, a estabelecermos um caminho de volta à capital para amenizar assim o cansaço da estrada, mas ocorreu justamente o contrário, pelo jogo de interesses alheios aos nossos enquanto artistas, que são decorrentes desse tipo de negociação. 

Nesse aspecto, o show marcado para a cidade de Jales-SP, por exemplo, que foi a cidade mais distante, a quinhentos e tantos Km de São Paulo, teria que ocorrer no sábado, por todo o esforço que estava a ser demandado pela produção local etc.

Enfim, na ordem inversa, partimos para a primeira etapa, a ser cumprida na cidade de Americana-SP, situada cerca de cento e trinta Km de São Paulo, na região de Campinas. 

A equipe que nos assistiu nessa etapa da turnê, foi a mesma que trabalhara no show anterior, em Itu-SP, duas semanas antes, ou seja: os quatro membros da banda, mais Claudia Fernanda a responder pela produção geral, Marco Carvalhanas como Road Manager, Samuel Wagner e Ruiter (este, na verdade, era um carrier), como roadies e o sócio/motorista na pilotagem do carro. 

Sabíamos de antemão que o ônibus continha muitos problemas a serem sanados na sua constituição em geral, mas aparentemente o básico esteve em condições para fazer essa rodagem de mais de mil kilometros, e sob intenso calor. 

Saímos de minha residência, o ponto que tornara-se o novo QG da banda, já há algum tempo, por volta das 11:00 horas da manhã. O calor estava intenso, mas não poderíamos nos dar ao luxo de sairmos mais tarde, mesmo por ser um curto percurso, justamente por sabermos que uma eventual falha mecânica, ou mesmo problemas com a polícia rodoviária, poderiam surpreender-nos na estrada. 

Enfim, a viagem transcorreu de uma forma tranquila e dessa forma, chegamos bem no início da tarde na cidade de Americana. Para quem não conhece o estado de São Paulo, "Americana" tem esse nome por que foi fundada no século XIX, por norte-americanos que ficaram inconformados com a vitória do norte sobre o sul na Guerra de Secessão, daquele país e migraram para o Brasil. 

Muitos desses imigrantes estavam falidos, por terem perdido todo o seu patrimônio, outros temiam por represálias do pós-guerra, e neste caso, vislumbraram na região de Campinas, um terreno bom para as atividades agropecuárias etc. 

O lado bom em termos chegado cedo nessa cidade, foi que pudemos descansar no hotel e nos refrescarmos, visto que o calor revelara-se insuportável. Deu também para visitar a única loja de discos, sob estilo Rocker dessa cidade, nos moldes das lojas da "Galeria do Rock", da capital, São Paulo e cujo proprietário, tanto o Rolando Castello Junior quanto eu, Luiz, conhecíamos desde os anos 1980. 

Aliás, visitar lojas em cidades interioranas, ou mesmo em capitais de outros estados que visitaríamos em breve, tornar-se-ia uma praxe nessas turnês. Verificamos também que uma matéria fora publicada no jornal local. 

Sobre a matéria citada, nós dividimos a mesma página com a dupla sertaneja, "Christian & Ralf", e essa dinâmica de imprensa também acompanhar-nos-ia doravante, com muitas matérias em jornais interioranos e muitas delas em companhias não tão ilustres na mesma página. Sobre a casa onde tocaríamos, esta merece uma análise mais pormenorizada, pelo seu caráter sui generis.

             A fachada da casa mencionada, em Americana-SP

Sobre o estabelecimento em questão, eu e o Rolando Castello Junior já a conhecíamos, pois havíamos viajado ao interior do estado por várias vezes para fecharmos shows em diversas cidades daquela região, e de outras, também. Não tratava-se de um ambiente Rocker, mas sim de uma casa noturna criada para atender a jovem burguesia da cidade de Americana e certamente a atrair igualmente os jovens oriundos de cidades vizinhas muito próximas, caso de Santa Bárbara D'Oeste, cuja fronteira com Americana nem percebe-se, aliás, pois as cidades estão unidas, literalmente. 

Até aí, tudo bem. Não seria a primeira, tampouco a última vez em que apresentar-nos-íamos em uma casa sem uma ambientação Rocker adequada, infelizmente. Ossos do ofício, nem sempre as condições artísticas e/ou técnicas foram as ideais...

                         Foto do interior da casa mencionada

No caso desse estabelecimento, para compensar, o equipamento era muito bom. Havia um PA com bastante pressão sonora, que aliás foi até demais para o tamanho da casa, portanto o técnico teve que dosar bem o volume geral, pois a tendência seria a de ensurdecer as pessoas, se ele não tomasse cuidado. 

A iluminação também era muito digna, até surpreendente ao considerarmos tratar-se de uma casa noturna sem preocupações culturais maiores, a não ser o de prover o reles entretenimento. 

O equipamento pertencia a uma banda de bailes da região (não recordo-me ao certo, mas acho que era da cidade de Araras-SP, um município vizinho), e o técnico/dono do sistema, era o baterista de tal banda. Veterano, esse rapaz era contemporâneo da época da Jovem Guarda sessentista e por conta dessa questão, nós passamos bons momentos a ouvirmos as suas histórias, ao contar-nos como a sua banda acompanhara cantores desse movimento, em shows pelo interior de São Paulo etc. Rimos bastante de algumas histórias que ele contou-nos, principalmente de trapalhadas ocorridas a envolver certos cantores da Jovem Guarda.

                        Outra foto do interior da casa citada

Esse foi o lado bom da casa, e diga-se de passagem, foi bastante surpreendente poder contar com um palco sob uma extensão bem confortável para atuarmos e um equipamento com som e iluminação muito digno, fora a camaradagem do técnico e de seu filho, auxiliar de produção, e também a se mostrar simpático e solícito. 

O lado ruim, foi o fato de não ter sido um ambiente Rocker sob vários aspectos. O primeiro ponto, deu-se a respeito do público habitue da casa não dar a mínima atenção para qualquer artista que ali apresentava-se. Acostumado a tratar as bandas como mero "jukebox", tais clientes adotavam normalmente o comportamento blasé, nesse sentido. Para uma banda cover, caso de 99% dos combos que ali apresentavam-se, isso não era problema, pelo contrário, facilitava-lhes a vida, mas para uma banda autoral, e no caso da Patrulha do Espaço, com uma história significativa sobre os ombros, seria no mínimo, desagradável nos expormos a esse tipo de tratamento.

Quando eu e Rolando Castello Junior fomos visitar a casa, cerca de três meses antes, notamos isso, claramente. Nessa ocasião em que visitamos a casa, vimos que uma banda tocava e ninguém, absolutamente ninguém, olhava para ela, enquanto tocava. 

Pelo contrário, a maioria das pessoas colocavam-se de costas para ela, ao preferir aterem-se à movimentação da paquera, que fora a real intenção de meninos e meninas que ali encontravam-se. Até aí, tudo bem, foi compreensível que essa garotada não estivesse com a mínima intenção de apreciar música e muito menos assistir o show de uma banda autoral. Não cabe crítica de minha parte, mas apenas constato que essa exposição, ou melhor, "falta de", não seria agradável para nós. 

Enfim, esse show foi estratégico para o início dessa micro-turnê e a quarta-feira era o único dia da semana em que os donos da casa a disponibilizavam para uma banda autoral apresentar-se. E mesmo assim, havia a ressalva de que deveríamos inserir alguns covers no meio da apresentação. 

Nesse sentido, acrescentamos algumas músicas que costumávamos tocar em ensaios, no intuito de apenas relaxarmos e uma versão de "While My Guitar Gently Weeps", preparada às pressas, para homenagear o guitarrista dos Beatles, George Harrison, que havia falecido há poucos dias naquela época.

Outro aspecto desagradável dessa casa, fora a sua decoração. Tudo ali dentro remetia à ambientação de um motel, com insinuações em torno do erotismo, luxúria etc. Estátuas com personagens mitológicos greco/romanos mediante intenções eróticas, mostravam-se de um mau gosto atroz. 

Do carpete a decoração das paredes, ao passar pelas luminárias, tudo parecia o ambiente de um motel decadente. Como set de filmagem para uma pornochanchada setentista, seria perfeito, mas como casa noturna, revelou-se um exemplo de mau gosto, o dito, Kitsch. 

Às quartas, o ingresso das mulheres até a meia-noite, era inteiramente gratuito. Por isso, por volta das 23:00 horas, a fila na rua, dobrava a esquina e formada apenas por garotas que pareciam estarem produzidas para participarem de um concurso de Miss. Claro que isso amenizara e muito o clima popularesco da casa, com a beleza das meninas a ofuscar aquele horror kistch, mas claro também que não teríamos a atenção delas, muito mais interessadas em exibirem-se para os rapazes. E assim, resignados nós fomos para o palco.

Todas as fotos que eu achei na Internet para ilustrar a casa citada, o "My Way", de Americana-SP, são de fato fidedignas, com exceção da foto das estátuas, que é meramente ilustrativa.  

A nossa sorte nesse show residira exatamente no fato de que sabíamos como seria a reação do apático público daquela casa, não pelo fato de sermos uma banda desconhecida dentro daquele universo tão avesso ao Rock, tão somente. Esse fator pesou, é claro, mas o maior problema foi mesmo o da apatia crônica daquele público, como uma praxe, segundo amigos da cidade que já haviam nos advertido. 

Tratava-se da casa noturna com a melhor estrutura técnica da cidade, eles nos falaram, mas qualquer show ali apresentado se mostrava morno, mesmo com artistas famosos do mainstream que ali apresentaram-se, e estes se queixavam também da frieza. Portanto, não esperávamos uma reação diferente. 

E não deu outra, começamos o nosso show e ninguém da plateia sequer olhava para nós. E não demonstravam estarem incomodados com a nossa performance ou com fato do repertório não soar-lhes familiar. Apenas andavam para lá e para cá, a flertar como se estivessem a empreender o famoso "footing" das pracinhas interioranas de antigamente... o negócio ali era paquerar acima de tudo e sob uma segunda instância, beber. Justiça seja feita, houveram poucos, mas valorosos fãs da Patrulha do Espaço, ali presentes.

Neste caso, esta seria uma constante para esses shows pelo interior e pelas cidades sulistas, também. Por mais inóspitos que fossem certos shows pela disparidade entre o que representava a banda e a ambientação regular de algumas casas em específico, sempre apareciam fãs reais da banda, com discos de vinil debaixo do braço, a procura de autógrafos e isso sempre foi muito prazeroso, é claro. 

E no meu caso, tornar-se-ia bastante comum, também, ser abordado por fãs que lembravam-se de outros trabalhos meus, e nesse caso, dei muito autógrafo em discos e fotos d'A Chave do Sol e Língua de Trapo, principalmente, mas até do Pitbulls on Crack, algumas vezes. 

Como eu já frisei, foi um show frio por parte do público, mas o fizemos sem nenhum prejuízo artístico. Tocamos normalmente e eu diria que foi um show particular para aquela meia dúzia de pessoas que eram realmente fãs da Patrulha do Espaço e que inclusive vieram de cidades vizinhas, como Rio Claro-SP e Araras-SP. 

Nem mesmo quando tocamos covers bem famosos, ocorreu alguma reação diferente por parte do público habitue da casa. A homenagem para George Harrison, por exemplo, passou incólume. 

E nesse show, nós estreamos um pout-pourri formado por canções do Led Zeppelin, que preparamos para apresentar nessa turnê, como um tributo ao grupo britânico e que doravante sempre surtiria um bom efeito nos shows, a arrancar urros dos Rockers mais antenados.

Tratou-se de um "medley" com trechos de algumas músicas interligadas, tais como: "Ten Years Gone", "Communication Breakdown", "Heartbreaker", "Moby Dick" etc. 

Encerrado o show, fomos a pé para o hotel, que era bem próximo e foi prosaico pararmos na pracinha da matriz para fazermos um lanche em uma barraca de fast-food. A viagem a seguir no dia seguinte, seria relativamente tranquila, com apenas cento e poucos kms de distância a serem percorridos, e portanto, não precisamos sair cedo. 

Deu para dormirmos na parte da manhã, almoçarmos ainda em Americana-SP, e assim partirmos então para São Carlos-SP, aonde teríamos o nosso segundo compromisso, no dia seguinte. O show em Americana ocorreu no dia 26 de dezembro de 2001, na casa chamada, "My Way", com cerca de trezentas pessoas presentes, mas na prática, só com aqueles poucos Rockers abnegados realmente a prestarem atenção e a gostarem da nossa performance. Uma pena, pois estávamos a tocar com condições de som e iluminação bem dignas, e muitos fãs da banda certamente gostariam de nos ver em ação com tal estrutura melhor embasada...

No dia seguinte, após o almoço, já estávamos prontos para a retomada da jornada. 

Particularmente, eu estava a apreciar o empenho do Marco Carvalhanas, como Road Manager da turnê, embora ele não fosse nada experiente na função. Todavia, a sua força de vontade de querer aprender, foi notável e o empenho para agir e ser útil, ao facilitar a nossa vida ao máximo, esteve a agradar-me e acredito que também aos demais. 

Deixamos a cidade de Americana, por volta das 13:00 horas. Como primeiro show da turnê, foi muito válido tocar nessa cidade, embora a casa onde apresentamo-nos não tenha sido a ideal para um show de Rock e sem falsa modéstia, para a tradição de nossa banda, enfim. Entretanto, o importante foi que serviu como estopim, além de ganharmos um cachê razoável que ajudou no cômputo geral e "ensaiamos" ao vivo, ao reforçar a nossa boa condição para os demais shows. 

Mas houve também algo mais a ser comemorado, e embora soassem como conquistas pequenas, foram positivas. Pois então, eis que vendemos discos na loja Rocker local, saímos publicados com destaque no jornal da cidade, além de atendermos as expectativas do nosso diminuto público, e isso valera muito para nós. 

Como eu já mencionei, houveram mais de trezentas pessoas na casa noturna, "My Way", mas aqueles jovens ignoraram retumbantemente o nosso show, embora servira-nos como consolo o fato de que qualquer banda sofria essa indiferença, inclusive artistas conhecidos do mainstream da música, conforme contaram-nos, e vou preservar a identidade de tais artistas, para não criar nenhum alvoroço.

Missão cumprida em Americana-SP, saímos da simpática cidade fundada por norte-americanos "Southern", e fomos para São Carlos-SP, a fim de cumprirmos a nossa segunda escala, nessa etapa da turnê.

O calor mostrava-se fortíssimo e nessa época do ano, não esperávamos outra disposição climática da parte da natureza, pois quanto mais dirigíamo-nos ao centro do estado, a tendência seria a de esquentar ainda mais. 
 
Saímos de Americana pela Rodovia Anhanguera, no sentido de Ribeirão Preto-SP, passamos por Limeira-SP, cidade onde apresentáramo-nos em 2000 (e sobre a qual voltaríamos a tocar no futuro próximo). A Patrulha do Espaço continha uma longa tradição nessa cidade, desde os primórdios da banda, aonde tocou muitas vezes e em uma delas, com a minha banda nos anos 1980, A Chave do Sol, ao ter feito o show de abertura (história já relatada com detalhes no capítulo d'A Chave do Sol). 
 
Logo que se passa por Limeira-SP, existe um entroncamento de estradas e a seguirmos o nosso objetivo, entramos na Rodovia Washington Luis, no sentido de São José do Rio Preto-SP, com destino a São Carlos-SP. Passada a cidade de Rio Claro-SP e também por algumas cidades com menor porte e chegamos enfim nessa ótima cidade interiorana, com forte tradição universitária, pois ali funcionam a UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos) e um Campus avançado da USP. 
 
Eu nunca havia estado nessa cidade anteriormente e impressionei-me com a sua pujança, logo que adentramos em suas avenidas, que conduziram-nos ao centro. 
 
Nessa noite, tocaríamos em uma outra casa noturna, bem próxima a uma bela praça, na Avenida São Carlos, localizada no centro da cidade. 
 
O hotel em que hospedar-nos-íamos, ficava instalado na mesma avenida e distante apenas um quarteirão do estabelecimento em que apresentar-nos-íamos. O comércio no entorno se mostrou muito farto, com muitos restaurantes, lanchonetes e lojas dos mais variados ramos e logo descobrimos uma sorveteria, daquelas típicas do interior, bem em frente ao hotel, que por sinal, visitamos muitas vezes naquelas 24 horas em que permanecemos nessa cidade, aproximadamente. 
 
Feito o "check in" do hotel, fomos para a casa noturna, descarregar o equipamento do nosso ônibus e começar o processo da montagem no palco ali disponível. 
Assim que o ônibus estacionou e começamos a descer do nosso velho ônibus, Mercedes Benz, a primeira pessoa que eu vi, ostentava o visual de um autêntico "freak" sessenta-setentista. Tratava-se de um rapaz a usar uma camiseta cuja estampa exibia a capa do primeiro álbum do "Gentle Giant". Parece um fato irrelevante pelo fator ocasional, mas eu preciso registrar aqui, que essa visão inusitada deu-me um sentimento bom, de que estávamos a lograr êxito em nossa empreitada.

O excelente baixista e um grande amigo desde então, Gabriel Costa, que nos dias atuais (2016), é componente do Violeta de Outono e de outras bandas progressivas e/ou experimentais, altamente técnicas e comprometidas com a nossa causa estética.

Ao apresentar-se como baixista da banda de abertura, ele estava ali para recepcionar-nos e também nos auxiliar no processo do soundcheck. O seu nome era: Gabriel Costa, e a sua banda em questão, chamava-se : "Homem com Asas". 

Esse rapaz fora o contato do Rolando Castello Junior na cidade e não somente nessa ocasião, mas na continuidade dessa turnê, nós teríamos muitas surpresas nesse sentido, mediante a presença de bandas de abertura a auxiliar-nos na produção local, e ao ir além, grupos de Rock profundamente comprometidas com a vibração das estéticas advindas das décadas de 1960 & 1970, e sob excelente nível técnico, a abrilhantar e muito, os eventos que protagonizamos.

Muitos anos depois, o Gabriel Costa seria o baixista do "Violeta de Outono", "Gong", "Dialeto", "Kaoll" e outros tantos trabalhos muito significativos. Então, foi assim que conheci o Gabriel, que tornou-se um grande amigo, doravante. 

Com o apoio dele, e dos demais membros da sua banda que logo a seguir conhecemos e também mostravam-se extremamente simpáticos e solícitos, nós fomos então montar o equipamento e iniciar o soundcheck, enfim.

Visita à loja "Cosmic", no centro de São Carlos-SP, especializada em Rock 1960 & 1970, a se mostrar o seu proprietário sendo este o segundo da esquerda para a direita, cercado por Rodrigo, Marcello e Rolando. Acervo de Samuel Wagner
E nessa perspectiva de uma boa ajuda fraternal, todo o apoio que recebemos foi fundamental para fazer do evento, um sucesso. Não foi a primeira e muito menos a última vez em que fizemos um show sob tal circunstância, ou seja, espetáculos produzidos na base da força de vontade a se suprirem deficiências de produção local, mediante apoio de fãs abnegados ou da parte de bandas locais com similaridade de ideais com a Patrulha do Espaço e fraternalmente dispostas a fazerem acontecer o sonho, em suas respectivas cidades.

Foto mais recente do "Homem com Asas", a apresentar-se em São Paulo

Portanto, esse primeiro contato com o "Homem com Asas", na cidade de São Carlos-SP, tornar-se-ia rotina e particularmente, eu guardo com muito carinho tais lembranças, não só a respeito dessa banda e da cidade de São Carlos, mas também por outras ocasiões em que isso transcorreu e nessa mesma turnê, por exemplo, relatarei outro caso parecido, logo a seguir.

De volta à cronologia, a passagem de som foi realizada nesses termos cooperativos. O PA disponibilizado não foi alugado de uma empresa constituída, como geralmente acontecia, mas fora fruto do esforço do pessoal do "Homem com Asas", e também da parte de mais amigos aquarianos que encontramos nessa cidade.

Aliás, o município de São Carlos surpreendeu-me positivamente nesse sentido e parece que o fato de eu ter visto a capa do disco do "Gentle Giant", estampado na camiseta de Gabriel Costa, fora mesmo o indício da vibração positiva que a cidade oferecer-nos-ia. 

Claro, apesar de toda a camaradagem e empenho dos amigos, o equipamento disponibilizado preocupou-nos, pois pareceu bastante inadequado. Quando chegamos ao bar, achávamos que seria um palco sob pequenas proporções como muitos em que apresentáramo-nos até então, portanto, ter um PA sob parcos recursos poderia suprir a necessidade, mas na verdade, a instalação física da casa em questão, surpreendeu-nos. 

A fachada do bar sugeria a de uma casa noturna com pequeno porte, mas ao adentrá-la, nós descobrimos que ela continha uma área avantajada na parte dos fundos, como segundo ambiente. De fato, na frente funcionava um pequeno bar lounge, mas a área do show, propriamente dito, era bem ampla, similar a um ginásio de esportes de um colégio. 

Nesses termos, o ideal seria alugar um PA profissional, mas o show fora viabilizado como um esforço de mutirão, por ter o objetivo de se minimizar custos, visto que a casa não reunira condições para bancar um show da Patrulha do Espaço, nas suas condições mínimas necessárias. 

Portanto, o esforço para fechar a data, foi um mérito do pessoal do "Homem com Asas" e dos Rockers locais, que vislumbraram em nossa ida, uma oportunidade de ouro para realizar um Concerto de Rock, como nos velhos tempos. 

Então, o equipamento revelou-se um autêntico, "Frankenstein", com caixas, potências e paramétricos oriundos de várias fontes diferentes, e nem sempre uma junção a esmo é viável, pois pode haver incompatibilidades nas configurações entre diferentes aparelhos etc.

Sendo assim, pequenas dificuldades técnicas que surgiram, foram sanadas na base do mutirão, com sempre alguém a lembrar-se de um vizinho, de um primo, ou alguém que possuísse uma alternativa
mais viável em casa em termos de equipamento e alguém pegava o carro de forma incontinente para buscar tal equipamento, a demonstrar boa vontade para sanar a questão. 

E assim, um PA razoável foi montado, a conter uma mesa, potências, alguns paramétricos, multicabo e microfones para suprir todas as necessidades mínimas da banda. Não foi nem de longe o ideal, mas o esforço em ritmo de mutirão mostrou-se notável e o show foi garantido por conta desse esforço cooperativo. 

O mesmo ocorreu com o equipamento de iluminação. Na base do improviso e camaradagem, duas torres laterais foram montadas com spots de quinhentos. Foi um nítido equipamento usado por bandas de bailes e parecia ser original dos anos 1960, ao remeter a bandas da Jovem Guarda. Claro que não fora o ideal, também, mas resolveu parcialmente a nossa necessidade ali. Agora, eu devo relatar fatos ocorridos durante esse soundcheck. 

Da esquerda para a direita, Rodrigo Hid, o dono da loja "Cosmic", Marcello Schevano e Rolando Castello Junior, no interior da loja citada. Click, acervo e cortesia de Samuel Wagner

O primeiro, muito positivo, foi por recebermos a visita de um rapaz que patrocinara o material de divulgação do show. Tratou-se do proprietário da loja de discos de Rock, local, chamada: "Cosmic". Ao seguir a tendência que existia nessa época nas grandes cidades interioranas, havia sempre, pelo menos uma loja desse estilo, a parecer-se com as lojas da Galeria do Rock, de São Paulo. 

Neste caso, o proprietário, a se revelar muito simpático e solícito, ele convidou-nos a visitar a sua loja, que ficava localizada bem próxima da casa onde tocaríamos, em uma travessa da Avenida São Carlos. Claro, deixamos discos da Patrulha do Espaço para abastecê-lo e no decorrer do show, ele veio prestigiar-nos, acompanhado de sua esposa. 

O outro fato ocorrido, foi engraçado e absolutamente bizarro, igualmente. Estávamos a realizar o soundcheck, quando tocávamos a música "Ser" ou "São Paulo City", não lembro-me ao certo, quando vimos uma pessoa estranha a entrar no recinto. Continuamos a tocar normalmente, por achar tratar-se de alguém ligado a casa, uma funcionária, talvez, ou mesmo que fosse uma pessoa autorizada para transitar por ali, pelos proprietários.

Tratou-se de uma mulher rude, bastante masculinizada, a trajar calça jeans com corte masculino, camiseta a exibir o logotipo do grupo de Rock norte-americano, "Kiss" e com o boné virado para trás. 

Ela entrou com a sua expressão facial fechada e de súbito, começou a dançar, a aumentar a sua volúpia, na medida em que tocávamos. Em um dado momento, os seus seios ficaram a vista, pois essa senhora não demonstrara nenhum pudor em conter a natureza diante de seus movimentos bruscos e pela ausência de uma sustentação estratégica, via soutien. 

Ao se portar de uma maneira frenética, ela dançava como louca e urrava, ao despertar a nossa atenção. Ríamos da situação, por considerá-la apenas uma tresloucada de ocasião. 

Então, nós paramos de tocar bruscamente, pois aquele momento ali não era de show, e sob um soundcheck, para-se toda hora, assim que alguém detecta um problema sonoro a ser sanado. Nesse momento, a mulher ficou ensandecida e aos berros, exortou-nos a continuar a tocar, pois tomara a nossa parada como uma afronta pessoal, ao afirmar agressivamente: -"por que parou? Toca um KiiiSSSS"....

Nunca esquecer-me-ei de sua queixa, com uma voz gutural e cavernosa, que faria vocalistas de Heavy-Metal ficarem com inveja.

Convidada a retirar-se sumariamente do recinto pelos proprietários do estabelecimento, ela saiu com bastante agressividade, a xingar a todos, inclusive a nós.

Depois desse ocorrido, nós ficamos a saber que tratava-se de uma pessoa conhecida no bairro, uma pessoa "sem teto" que vivia embriagada pelas ruas e apesar de parecer agressiva, não costumava ir para as vias de fato, ao ficar apenas nos insultos, costumeiramente. O fato de estar a usar uma camiseta do Kiss, e pedir o som de tal banda norte-americana para continuar a dançar, denotara que detinha cultura e em algum momento da vida perdera-se socialmente e se tornara-se pedinte, certamente que fora derrotada pelas circunstâncias alheias à sua vontade.

Voltamos para o hotel, jantamos e na hora combinada fomos para o bar. A casa estava abarrotada quando chegamos para aguardar o momento de atuarmos. O esforço empreendido pelo pessoal do "Homem com Asas", com o apoio da sua rede de amigos, fora notável. Uma matéria também fora publicada no jornal local, ao dar-nos apoio. 

Apesar do equipamento improvisado, teve tudo para ser uma grande noitada de Rock.

Quando chegamos ao ambiente do show, ficamos contentes por ver que mal dava para se caminhar ali. A casa estava abarrotada. O show do "Homem com Asas" estava para iniciar-se e nós nos dirigimos à mesa que nos fora reservada para nos acomodarmos e assisti-lo. 

Assim que chegamos em tal mesa a nós designada pela produção local, eu avistei uma moça loura e muito bonita que pareceu-me conhecida. Ela reconheceu-nos e veio até nós para cumprimentar-nos. Se tratou da pupila & assistente de pintura do artista plástico, André Peticov.

Neste frame de um de nossos vídeos no programa, "Musikaos", onde apresentamo-nos em abril de 2001, uma imagem do artista plástico, André Peticov, e sua pupila em ação 

Essa moça esteve no palco do Teatro Sesc Pompeia, em abril de 2001, quando nos apresentamos, e ela auxiliara o Peticov a pintar, enquanto tocávamos durante uma edição do programa: "Musikaos", da TV Cultura de São Paulo, conforme eu já relatei anteriormente com detalhes.

A sua reação em São Carlos foi engraçada, contudo, pois ela chegou a dizer-nos: -"o que vocês estão a fazer aqui?"

Ora, éramos a atração principal da noite na casa, mas distraída, ela nem havia notado esse fato. Então ela contou-nos que São Carlos era a sua cidade natal, e que estava ali a passar as festas de fim de ano, com a sua família. 

O show do "Homem com Asas" foi ótimo, apesar de ter sido naquela ocasião, uma banda só a trabalhar com covers. Foi uma pena, pois o nível técnico dos rapazes era excepcional e a sua cultura Rocker firme em torno dos ideais estéticos das décadas de 1960 & 1970, se provara como algo notável. 

E tanto fora assim, que se deram ao luxo de tocarem muitas pérolas só identificáveis por conhecedores do assunto. Ficamos muito amigos desses artistas, doravante, que abririam outros shows nossos, ajudariam em outras produções, e a nossa amizade prossegue até os dias atuais, pelas redes sociais. 

Chegara a nossa vez, enfim. A expectativa mostrava-se enorme, foi possível sentir no ar. São Carlos seria uma cidade que nós visitaríamos outras vezes no futuro e foi uma daquelas onde o público Rocker revelara-se muito grande. 

E o nível cultural desses jovens, a se mostrar muito elevado, a começar pelos membros da banda "Homem com Asas", todos universitários, e a maioria deles como estudantes de física na USP, ou na UfSCAR. Tratava-se de uma turma composta por freaks, com visual de hippies sessentistas e todos ali aspirantes a cientistas a atuarem no campo da física, principalmente. 

Começamos a tocar e o equipamento não seria mesmo suficiente para suprir um ambiente amplo com cerca de quatrocentas pessoas presentes. 

Não foi um show confortável para nós, tecnicamente, mas compensou pelo público receptivo e em sua maioria, bastante antenado no que representava a Patrulha do Espaço e principalmente pelo astral que queríamos imprimir após a grande volta de 1999, ou seja, São Carlos foi uma cidade ideal para a nossa proposta reverberar, conforme tudo o que elucidei. 

Um fato engraçado (desastroso, na verdade), ocorreu quando eu fui falar com o público. Ao aproveitar uma deixa do show para efetuar agradecimentos, eis que eu falei o seguinte: -"a Patrulha do Espaço estava muito feliz por estar a tocar em Rio Claro"... 

Eu não bebo, tampouco drogo-me, portanto não houve desculpa para que eu falasse uma bobagem dessas ao microfone, mas o lapso ocorreu... e assim que pronunciei, "Rio Claro", muitas pessoas do público gritaram: -"São Carlos", para corrigir-me e no interior, existem as rivalidades locais bem acentuadas, portanto, creio ter aborrecido muita gente naquela noite, infelizmente. 

Sem graça, tentei corrigir, ao alegar que tocaríamos em Rio Claro no dia seguinte e confundi-me, mas o estrago estava feito... nem passaríamos por Rio Claro nessa turnê, pois no dia seguinte o show seria na verdade em Monte Alto-SP...

Apesar das dificuldades, o show foi muito bom, com momentos de euforia, até. Músicas antigas da Patrulha do Espaço, dos primeiros discos foram muito saudadas, ao denotar que aquele público, apesar de jovem, se mostrara mesmo ligado em Rock vintage. 

Quando o set list aproximou-se de seu final, notamos um clima tenso a vir de fora, e nada a ver conosco, diretamente, ou com o show em si, mas dizia-nos respeito, indiretamente. 

Percebemos que a produtora, Claudia Fernanda, estava agitada, a gesticular, e ela parecia tensa. Quando o show acabou e já estávamos fora do palco (infelizmente a casa não tinha estrutura com camarins privativos), o assédio foi grande por parte do público. 

Claro que foi maravilhoso atender os fãs e naquele caso, foram fãs mesmo, com discos de vinil antigos da banda, debaixo do braço, para caçar autógrafos etc. Mas diante de um assédio assim, ficamos atordoados para saber o que havia acontecido afinal, na portaria.

Contudo, a própria Claudia sinalizou a tranquilizar-nos logo a seguir, pois qualquer aborrecimento que houvesse ocorrido, na verdade ele já havia sido solucionado e nós só depois tomaríamos conhecimento do ocorrido. 

E assim, finalmente depois de serenado o fluxo composto por fãs, tomamos consciência dos fatos. Durante o show, um grupo de três ou quatro rapazes tentou entrar na casa a força, sem pagar ingressos. No auge da discussão, estes rapazes se autodeclararam como "Punks do ABC", e com isso, acharam que as pessoas ficariam receosas e os deixariam entrar gratuitamente, mas ninguém intimidou-se pela bravata proferida com intenção beligerante e pelo contrário, a polícia foi acionada e bastou uma só viatura da Polícia Militar aparecer, para os arruaceiros descerem a Avenida São Carlos em frenética disparada. 

Eles ameaçaram voltar com reforços e que hostilizariam a banda, o que deixou-nos apreensivos por ficarmos na calada da noite, a carregar o ônibus e de repente tal promessa ser cumprida, mas o próprio pessoal de São Carlos tranquilizou-nos, ao dizer-nos que isso não aconteceria, pois aqueles vagabundos eram conhecidos por todos, e que não haveria "volta com reforços". 

Fora apenas um grupelho formado por baderneiros locais, com os quais todos estavam acostumados e que estes só gostavam de ameaçar mediante bravatas. E usavam essa alcunha de supostamente serem punks do ABC para amedrontar, visto que tal gangue era famosa nacionalmente, mas na prática, esses arruaceiros provavelmente nem sabiam onde ficava a região metropolitana do ABC.

O último ato da noite, aliás madrugada, foi carregar o equipamento para o ônibus e nessa hora tivemos um pequeno aborrecimento. 

O Marco Carvalhanas, na ânsia de querer mostrar eficiência como Road Manager, ele exagerou no rigor com os roadies. No dia seguinte com todos mais calmos, tudo voltou ao normal. 

Ao se isentarem esses pequenos acontecimentos mais pesados, foi uma noite muito boa para nós. Foi o segundo show da turnê e a banda estava afiadíssima no palco. O contato com os fãs estava excelente, já tínhamos matérias provenientes de jornais locais para engrossar o portfólio e as notícias que tivemos sobre a produção local, dos três shows que faríamos nos dias posteriores, foram muito animadoras.

Fomos dormir contentes com o dia produtivo, portanto. Foi o dia 27 de dezembro de 2001, e nessa quinta-feira, tocamos no "Planet Z", de São Carlos. Cerca de quatrocentas pessoas passaram pela bilheteria e ao contrário do show de Americana, na noite anterior, haviam desta feita, muitos fãs da nossa banda, presentes no recinto. No dia seguinte, sexta, o destino seria a cidade de Monte Alto-SP.

Estar em turnê é cansativo para qualquer um, mas é claro que a disparidade entre as diferentes condições que existem em inúmeros patamares, é gritante. Eu tenho certeza que para os membros dos Rolling Stones também é cansativo estar em turnê, mas o luxo e as mordomias que possuem ao seu dispor, minimizam o cansaço. 

Em nosso caso, as condições eram hercúleas em todos os sentidos, mas houveram inúmeras compensações, também. Se por um lado, nem todo hotel ou restaurante que dispúnhamos, foi bom (e nesse sentido, a cada dia éramos surpreendidos, positiva ou negativamente), por outro, houve sempre a doce constatação de que estávamos a exercer a nossa profissão com total vigor, ao sermos uma banda de Rock, literalmente na estrada e com a agravante de que em meio a um país como o Brasil, que não dava suporte algum à cultura.

Além disso, levemos em conta que sobretudo, no Brasil, se padece de uma real democracia no âmbito cultural, ao deixar que uma maldita máfia domine todos os espaços, despoticamente, para não deixar nem as migalhas do pão que comem sozinhos, para "outsiders do mainstream", como nós. 

Portanto, a possibilidade de se produzir uma turnê com um show por dia, e a cada dia em uma cidade, foi uma vitória retumbante para uma banda de Rock marginalizada como foi a nossa nessa ocasião. 

Nesse sentido, não importou que não fossem shows realizados em teatros bem estruturados com som e iluminação de primeira qualidade, ao menos na maioria das vezes e por conseguinte, sem a estrutura adequada com camarins dignos e logística perfeita. Não importou tampouco que não ficássemos hospedados em hotéis com "cinco estrelas" e a cumprirmos as nossas refeições em restaurantes sofisticados. 

E nem mesmo que a turnê fosse realizada mediante percurso aéreo, com uma equipe técnica profissional de apoio, enorme e bem azeitada, só a incumbir-nos de sermos o que éramos, ou seja, artistas, preocupados com o desempenho no palco e nada mais.

Estávamos tão contentes em estarmos a viajar, que a falta dessas condições ideais que arrolei, não incomodou-nos em demasia, apesar das dificuldades que enfrentávamos na contramão da nossa realidade, como artistas lotados no mundo underground. 

Por exemplo, o show de São Carlos fora sensacional pela vibração, todavia, a infraestrutura que tivemos, foi toda improvisada. A bilheteria robusta que tivemos por conta de cerca de quatrocentos pagantes, compensou a economia em não termos alugado um equipamento de PA e iluminação de cunho profissional, além da estadia em um modesto hotel, mas claro que isso limitara-nos sob vários aspectos. 

A respeito do hotel em que hospedamo-nos, sofremos um pouco com o calor interiorano, desprovido de ar condicionado para enfrentar tais condições ambientais, fora o barulho, por este estar localizado na principal avenida da cidade e nesses termos, mal amanheceu e o movimento urbano da rua não no deixou repousar convenientemente, com as pessoas responsáveis pelo estabelecimento ao não levarem em conta que éramos Rockers extenuados por uma noitada vivida sob Rock, excelente, digamos assim, dentro das nossas tradições.

Ainda deu tempo para um sorvete refrescante na sorveteria que tornara-se nosso oásis contra o calor escaldante de São Carlos, após o almoço. O pessoal do "Homem com Asas" veio despedir-se de nós e a nos agradecer pela oportunidade da noitada Rocker que lhes proporcionamos... ora, nós também agradecemos a eles por todo o suporte recebido em todos os sentidos e se houve o show, e este fora um sucesso, o mérito deles pela produção e esforço para fazer acontecer a apresentação, fora notável.

Foi a hora de partir, e o velho Mercedes'1976 tomou o rumo da estrada. O destino agora foi: Monte Alto-SP, uma pequena cidade na região de Bebedouro e Jaboticabal, no caminho para Ribeirão Preto.

Grande parte do trajeto para Monte Alto foi exercido por uma estrada vicinal bastante aprazível e em alguns trechos, bastante arborizada, o que amenizou o forte calor naquela região e em específico naquela época do ano, com o início escaldante do verão. 

Chegamos na aprazível cidade de Monte Alto, ainda antes das 15:00 horas e com tempo para instalarmo-nos no hotel disponibilizado para nós pela produção local, quando aguardarmos com bastante tranquilidade a hora da montagem e soundcheck. A casa em que tocaríamos era bem montada e continha dois ambientes distintos.

Um deles, de grande porte, semelhante a um salão de festas de clube poliesportivo e o outro, bem menor, mas bastante digno, a conter um palco bem montado e equipamento com qualidade e pressão de PA para fornecer um bom suporte para shows com artistas autorais. 

E seria nesse ambiente menor que tocaríamos, pois o grande espaço estava montado para uma festa temática jamaicana, com bandas de reggae a atuarem e que aconteceria no dia seguinte, sábado. 

O dono da casa, era jovem, mas parecia ser bastante dinâmico e bem relacionado no métier do agendamento de shows e festas por diversas cidades interioranas daquela região. Estava acostumado a produzir shows com artistas do mainstream, de duplas sertanejas a artistas do Pop-Rock vagabundo das FM's, pagodeiros, axé music baiana etc. 

Portanto, ele sabia que uma banda como a Patrulha do Espaço, apesar de ostentar uma história e a sua dignidade artística, estava obviamente "outsider" no mercado da ocasião e sob tal patamar do underground, não deveria atrair um grande público para a casa, ao considerar-se ser Monte Alto, uma cidade com pequeno porte, e sem a perspectiva de um público Rocker local de forma acentuada como houvera ocorrido em São Carlos, uma cidade universitária e com cena cultural forte.

Vista aérea de Monte Alto-SP, uma cidade aprazível ao extremo
 
Na pequena, Monte Alto, o público que comparecia habitualmente em tal casa noturna, tratava-se da juventude bem-nascida local, à cata de baladas tão somente e sem fechar com uma estética em específico como uma possível predileção cultural espontânea. 

Diante desse quadro, tanto fazia se a noite fosse inspirada pelo reggae, música sertaneja ou pagode para essa garotada local. E o curioso é que a casa chamava-se: "The Doors Pub" e mantinha uma decoração que remetia ao Rock, com óbvia menção ao grupo de Rock sessentista, "The Doors" e inclusive ao usar e abusar do logotipo dessa banda norte-americana e da imagem de Morrison, Manzareck, Densmore & Krieger por conseguinte em diversos posters espalhados em sua decoração.

Por isso, o mandatário nos encaixou na sexta-feira, e isso explica o alinhamento da turnê, e cada dia foi um encaixe muito mais em função dos interesses das casas de espetáculos em específico, do que baseado na logística ideal para a nossa banda, daí a turnê ter sido montada ao contrário, ou seja, com o penúltimo show a ser cumprido no ponto mais longínquo da capital.

Mas se as condições não mostravam-se boas por tudo o que relatei, por outro lado, a infraestrutura técnica seria muito melhor do que o show da noite anterior, em São Carlos. Que pena que essa casa, com esse equipamento muito bom, não pudesse ter sido a mesma de São Carlos, pois o público Rocker de São Carlos mereceria ter nos visto em ação com aquele som e iluminação de Monte Alto, mas no mundo underground as circunstâncias eram montadas na base do melhor possível, e nem sempre tivemos tal sorte, enfim...

                    Outra imagem do centro de Monte Alto-SP

Toda a estrutura de Monte Alto, aliás, fora muito melhor em todos os aspectos, a despeito de ser uma cidade minúscula, e a casa não ser Rocker, propriamente dita. 

Fomos muito bem tratados em todos os sentidos. A começar pelo hotel em que nos hospedamos, que continha uma infraestrutura de um nível muito superior ao que usáramos em São Carlos. O jantar foi com pizza a vontade para todos e depois de preenchermos os nossos respectivos estômagos com queijo gorgonzola e provolone, o sono começou a rondar-nos, ao vermos filmes na TV a cabo, mas... tínhamos um show de Rock para concretizar!

Resolvemos irmos a pé para o recinto do show, apesar da advertência do gerente do hotel, de que seria relativamente longe o local. Havíamos optado por deixarmos o ônibus no pátio da casa, estrategicamente preparado para o carregamento do equipamento logo após o show, e assim, fomos para o hotel através de caronas providas por pessoas da produção local. 

Mas subestimamos a distância e não combinamos que ninguém apanhasse-nos no hotel. Claro, na hora de nossa partida, não encontraríamos táxis de forma alguma em uma cidade daquele porte tão tímido e resignados, resolvemos caminharmos. Mas foram dez ou doze quadras, e daquelas com metragem interiorana, sob porte extenso a se demarcarem por conceito numérico e não geométrico, portanto, seguramente andamos por dois Kms ou até mais do que isso. Enfim, ante tal empreitada, creio que conseguimos acelerar o processo da digestão pós-jantar.

A parte boa, foi que a cidade estava completamente deserta, e esse passeio chegou a ser lúdico. A brisa noturna foi refrescante, ao aliviar o forte calor que fizera ali durante o dia inteiro. Ouvíamos o ruído dos grilos, algo tipicamente interiorano, e o revoar de um ou outro morcego, além do eventual barulho produzido por corujas. 

Passamos por uma enorme praça pública inteiramente deserta, muito aprazível, ao se parecer com uma praça de cidade pequena europeia, de tão florida, bem iluminada e bem arrumada que estava. Foi uma visão prosaica e bonita, mas ao mesmo tempo, nos questionamos se haveria público na casa, visto que a cidade estava completamente deserta á nossa percepção mediante tal percurso que fizemos, ao assemelhar-se ao cenário de um toque de recolher, para uma localidade sitiada.

Mas na medida em que aproximamo-nos da casa noturna, vimos que os quarteirões imediatamente anteriores de sua localização, faziam parte da ala mais residencial da cidade e nos arredores do "The Doors Pub", havia movimento, sim. 

Então, enfim chegamos. Realmente não havia um grande público presente, mas já esperávamos essa fraca frequência, por tudo o que já ponderei e pela conversa franca que tivemos com o dono do estabelecimento, que era um experiente agente de shows na região. 

Que pena! Pois o equipamento estava ótimo ao nosso dispor e a despeito do público pequeno, fizemos o nosso show normal e pasmem, apesar do tamanho diminuto da cidade, haviam sim, fãs da banda! 

Foram poucos, mas a se mostrarem muito entusiasmados, como sempre ocorria em show realizados em locais de nenhuma tradição Rocker. Foi, portanto, um prazer tocar para tais fãs tão animados, ainda que sob um pequeno número. A baixa da noite fora o road manager, Marco Carvalhanas, que sentira uma indisposição estomacal e aconselhado por nós mesmos, não nos acompanhou ao show, para se recolher no hotel.

Encerrado, foi tudo tranquilo e assim voltamos para o hotel, onde sob uma instalação de ótimo nível pudemos descansar bastante, pois já marcava-se o terceiro dia da turnê, e além do cansaço diário em fazer um show, que desgasta muito, houve o percurso mediante ônibus, sob a intensa violência solar, tipicamente interiorana. 

E foi providencial dormir bem, pois enfrentaríamos o maior trecho no dia seguinte, ao irmos para Jales-SP, a cidade mais distante da turnê, com a perspectiva de se confirmar como o show mais festejado dessa etapa, pois os organizadores locais estavam a esmerarem-se para divulgá-lo em toda a região. 

O show de Monte Alto-SP aconteceu no dia 28 de dezembro de 2001, no The Doors Pub, com cerca de setenta pessoas na plateia. 

E lá fomos nós, rumo a Jales-SP, ao enfrentarmos o maior percurso nessa turnê e sob um calor incrível. Para quem não conhece o estado de São Paulo, informo que Jales fica no extremo noroeste do estado, quase na divisa com Mato Grosso do Sul, e onde em uma minúscula divisa com Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, quase se chega em Goiás. 

São Paulo não faz fronteira com Goiás, mas ao atravessar por esse estreito de Minas Gerais, são poucos quilômetros para chegar-se em uma segunda fronteira adiante, portanto. Aula de geografia a parte, um fator foi certo: o calor ali foi de uma extrema potência e assim, quanto mais aproximávamo-nos de Jales, mais sentíamos a temperatura a subir!

      Cidade de porte maior e muito quente, Jales-SP, aguardava-nos

Mas houve também o aspecto do calor humano e de fato, assim que chegamos em Jales, fomos muito bem recebidos pelos produtores do show. Eles demonstravam estarem eufóricos com a nossa presença e de fato, fora notável o esforço que houveram empreendido para fazer do show, um sucesso. 

Assim que chegamos, notamos que haviam faixas afixadas pelas principais avenidas, nas praças públicas e pelo pouco que andamos pelo centro da cidade, vimos cartazetes pelas paredes dos estabelecimentos comerciais, a anunciarem o show. Lastimavelmente, não tenho nenhum material desses para ilustrar através dos meus Blogs.

             Mais uma visão panorâmica da cidade de Jales-SP

Os organizadores nos hospedaram no próprio local do evento, pois tratou-se de uma espécie de sítio, e a se localizar um pouco afastado do perímetro urbano, mas nem tanto assim na prática. 

E nesse local, havia um alojamento isolado, que serviu-nos como hotel e camarim ao mesmo tempo. Tal instalação não possuía as mordomias de um hotel formal, mas a vantagem de se estar perto do palco, em menos de um minuto, pareceu-nos conveniente sob uma primeira impressão, entretanto, tal expectativa não consumou-se inteiramente, mas sobre tal característica eu relato depois. 

Fomos conduzidos a seguir para um restaurante próximo, em um "pesqueiro", e esse tipo de estabelecimento alimentar é bastante comum em cidades que tem ligação forte com rios de água doce e no caso, Jales mantém essa tradição. 

Para quem aprecia a pescaria e comer peixes por conseguinte, foi uma aventura e tanto, porém no meu caso, por eu ser vegetariano, fiquei só no prato trivial formado por arroz, feijão e saladas, mas os meus companheiros se esbaldaram nos peixes que foram ali mesmo pescados e escolhidos para comporem as refeições servidas. 

A banda que faria abertura foi formada por rapazes jovens, muito gentis, mas eles não demonstravam possuírem conexão com a nossa cultura Rocker, como a rapaziada do "Homem com Asas", com quem havíamos tocado na noite da quinta-feira, em São Carlos. Pelas conversas que tivemos com esses rapazes, eles sinalizaram gostar de tendências moderna híbridas e até antagônicas com os nossos ideais, eu diria, mas não cabe nenhum julgamento, apenas uma constatação.

O nome da banda era: "O Velho Lobo", e logo a piada pareceu estar pronta, pois o nome do treinador de futebol: Zagallo, foi pronunciado inúmeras vezes naquele dia entre nós. 

E foi até chato, pois os rapazes foram muito gentis e claro que a piada não lhes ofendia diretamente, mas fora obviamente motivada pelo nome estranho com o qual resolveram batizar a sua banda a ganhar uma conotação obviamente dispare ante os seus propósitos. 

O equipamento alugado para o evento pareceu-nos possuir qualidade. Percebemos que o palco continha tudo o que precisávamos, com um PA sob forte pressão sonora e adequado à expectativa de público que os organizadores esperavam ter na hora do show. 

Segundo informaram-nos, a divulgação não limitara-se à cidade e houve o rumor de que viriam fãs de muitas cidades da região. Mais de cem ingressos foram vendidos na cidade vizinha, Fernandópolis, por exemplo e uma excursão fora organizada para transportar tais fãs até Jales. 

Um programa de rádio dessa citada cidade vizinha estava a anunciar há mais de um mês o nosso espetáculo e assim a massacrar uma música na sua programação, para auxiliar tal divulgação. Qual música? Foi: "Olho Animal", que segundo diziam-nos, o público adorava e ansiava que a tocássemos.

Mas essa música nem estava no set list da banda. Nunca cogitamos incluí-la, pois a considerávamos completamente fora da nossa proposta estética, desde que a nossa formação iniciou-se em 1999, e certamente que destoava da nossa proposta "chronophágica". 

Por ser uma canção oriunda de uma fase mais pesada da banda, ele continha um ranço Heavy-Metal e oitentista que destoava da nossa proposta. 

Fomos surpreendidos com tal afirmativa vinda da parte dos organizadores e também através do pessoal da banda de abertura e assim ficamos muito constrangidos, pois nem teríamos como prepará-la emergencialmente, apesar dessa canção manter uma estrutura harmônica, primária. Mesmo assim, não haveria como decorar e tocá-la com desenvoltura. 

Bem, imaginamos: o público estava ansioso pelo show, portanto haveria de gostar o tempo todo da nossa performance e nem lembrar-se-ia dessa música ao seu término. Em suma, subestimamos a expectativa do público.

Fizemos o soundcheck e as condições sonoras no palco seriam boas. Tocaríamos com o conforto que tivemos em Americana e Monte Alto, e que nos faltara em São Carlos, lamentavelmente. 

Nessa altura, algumas pessoas ligadas à produção local do evento, já haviam nos dado a notícia de que a cantora, Cássia Eller, houvera falecido há poucas horas e todos ficamos abismados com a notícia chocante e lamentável. De noite, durante o nosso espetáculo, o Rolando Castello Junior dedicou o show ao George Harrison e à Cássia Eller. 

Quando a noite chegou enfim, nós nos arrumamos e ficamos a disposição da produção local, pois um link ao vivo de uma emissora de Rádio fez a cobertura do evento, e os radialistas queriam que nós participássemos a concedermos entrevistas pontuais, para criarem-se testemunhais ao vivo, a fim de incrementar a divulgação.

Ótima ideia, foi positivo colaborar nesse sentido e quanto mais gente comparecesse, melhor para a banda, apesar desse show em específico, ter sido fechado mediante um acerto com cachê fixo, sem preocupação da nossa parte com a féria da bilheteria. 

Lembro-me então de uma pequena parafernália eletrônica ter sido montada pela emissora de rádio nos bastidores e o repórter radiofônico a nos abordar para formular perguntas e pedir testemunhais de nossa parte. 

Pela excitação toda, pareceu uma ambientação de show de Rock protagonizado por uma banda internacional de porte mainstream, e claro que estávamos a apreciar esse, digamos, glamour incomum. 

Finalmente liberou-se a entrada do público, já com a noite avançada. Foi de fato uma multidão a se aproximar e pela visão que tivemos da pequena estrada vicinal de acesso, foi possível avistar um congestionamento expressivo. De fato, o evento seria e foi um sucesso, pelo que estávamos a presenciar previamente.

Chegou a hora e a banda de abertura iniciou a sua apresentação. Este grupo arrancou bons aplausos da plateia, mas deu para sentir que a grande massa estava ali mesmo com uma forte expectativa para assistir-nos e isso foi sensacional e raro para nós, acostumados que estávamos a não termos essa atenção, infelizmente e neste caso, foram os ossos do ofício de uma banda alojada no underground. 

Todavia, foi preocupante que através da aparência, pareceu ser um público típico para bandas de Heavy-Metal, pois o visual das pessoas, em sua imensa maioria, parecia um autêntico uniforme: a cada dez pessoas presentes, dez usavam camisetas pretas com estampas de bandas de Heavy-Metal, ou seja, foi um indício, mas não poderíamos formular até então, um preconceito baseado apenas em uma constatação meramente visual. 

Se estavam ali e vieram de várias cidades vizinhas, em excursões (ao denotar interesse e sacrifício), foi por que gostavam de nossa banda, não é mesmo? 

O "Velho Lobo" encerrou sua performance e após alguns ajustes feitos pelos roadies para efetuar-se a troca de set ups entre as bandas, subimos enfim no palco. A excitação foi enorme, o público presente se mostrou bem grande. Subimos ao palco amparados pelos gritinhos típicos e aplausos vindos da plateia a formatar aquela sensação da adrenalina típica de início de show, e assim começamos...

à medida que tocávamos, contudo, sentíamos nitidamente que a excitação diminuía, progressivamente. Não houve nenhuma hostilidade, mas sim, os olhares sob perplexidade, que eu nunca havia sentido anteriormente em um show da Patrulha do Espaço e para ser ainda mais amplo, acho que em nenhuma outra banda onde toquei, em toda a carreira. 

Tal perplexidade pareceu-me ter sido unânime, pois a cada música, essas pessoas olhavam-nos com aquela expressão de que estavam a estranhar tudo. Foi como se tivessem uma imagem da banda e ali ao vivo, estivessem atônitos por estarem a nos ver e ouvir, completamente diferentes do que imaginavam que seríamos. 

Todos os pontos chave de nosso show, nos quais estávamos acostumados a provocar reações de euforia, não tiveram nenhum grande respaldo por parte deles. Sentíamos que eles nos olhavam com perplexidade até pelo nosso visual, o que foi bastante decepcionante para nós, também, pois a nossa proposta não era a deles. Seguimos a tocar normalmente, a cumprirmos o set list, mesmo assim, com o sentimento de frustração a pairar no ar.

Quando anunciamos que o show estava a chegar ao seu final, um coro surgiu e ganhou força entre o público: -"Olho animal, Olho animal, Olho animal"...

Queriam ouvir a música que tocara insistentemente na emissora de rádio de Fernandópolis-SP, e claro, gostavam da Patrulha do Espaço que chegara à eles em sua percepção, através da sua fase mais pesada, presente através dos discos: "Patrulha 85" e "Primus Inter Pares", praticamente álbuns orientados pelo Heavy-Metal. 

Não conheciam a história da banda a fundo, a fase inicial com Arnaldo Baptista nos anos setenta, tampouco a fase do Power-Trio que fora prolífica e muito menos entenderiam a proposta de "religare" que nossa formação chronophágica trazia em seus anseios artísticos, desde 1999.

Em suma, conheciam a fase mais obscura (ao meu ver, não quero tecer juízo de valor e contrariar quem não pensa assim e gosta dessa fase pesada da banda), com uma Patrulha do Espaço mais pesada e a flertar com o Heavy-Metal. 

Foi explicada, portanto, a expectativa criada erroneamente e a perplexidade dessa turma por ver-nos a usarmos um estilo de figurino completamente fora da sua cultura habitual e principalmente por tocarmos as músicas de intensa inspiração "1960 & 1970", provenientes do álbum, Chronophagia, e as clássicas da banda, incluso da fase com Arnaldo Baptista. 

Em nenhum momento hostilizaram-nos, mas a decepção ficou nítida em seus semblantes! Acharam certamente que destilaríamos o repertório dessa fase pesada da banda, mas nós, pelo contrário, estávamos com a firme proposta sonora e visual, completamente antagônica! 

Bem, o Junior teve presença de espírito e no auge do coro ali criado a clamarem por "Olho Animal", pegou o microfone e pediu desculpas ao público, ao dizer-lhes que essa canção não estava no repertório, mas que voltaríamos em breve àquela localidade e prometia tocá-la, desta feita.

Um princípio de ovação foi ouvida, ao denotar que haviam resignado-se com tal frustração e compraram a promessa do baterista e membro original da fundação da banda. De fato, alguns meses depois, nós voltamos mesmo para Jales e cumprimos a promessa, mas esse pormenor eu conto no momento oportuno da cronologia.

O público pôs-se a escoar-se do local, mas para nós ficou um sentimento de estranheza muito grande. Tocar para um público que nutre outras expectativas é uma prática normal na carreira de qualquer artista, mas nesse caso, a estranheza fora mútua, pois tanto nós, quanto eles, o público, estivemos estupefatos pela falta de sincronia, na medida em que ambos, esperavam uma grande festa e por motivações diferentes de lado a lado, sobrou um gosto de frustração para todo mundo. 

Pela movimentação toda, esperávamos um público quentíssimo, a reagir exatamente como o público de nossos melhores shows desde 1999. As condições de som e iluminação estiveram boas, o volume de pessoas ali presente foi enorme e a expectativa gerada pelo show, muito grande, portanto, fora o cenário ideal que esperávamos. 

E da parte deles, o público, tais pessoas esperavam a Patrulha do Espaço pesada dos discos que mencionei e sonhavam com os riffs de músicas como: "Olho Animal" e "Robot", por exemplo.

Foi um choque térmico para ambos, e tal falta de sinergia, transformou toda aquela expectativa em uma frustração. Mas a noite/madrugada ainda reservar-nos-ia algumas surpresas...

Quando chegamos ao local, no dia anterior, achamos prático nos hospedarmos no alojamento em anexo ao complexo onde aconteceria o show. Mas no calor da madrugada, notamos que a real perspectiva mostrou-se outra, muito diferente. 

Passada a etapa de assédio pós-show (apesar dos pesares, fomos abordados, como de praxe e muito bem saudados), desejamos nos recolhermos e descansarmos, pois ainda faltava mais uma etapa, com o derradeiro show da turnê, a ser realizado na cidade de Mirassol-SP. 

Contudo, o público escoava de uma forma lenta e muitos, ainda permaneceram no local, ao parecerem não dispostos a se evadir, simplesmente, pois conversavam e gargalhavam em rodinhas. Em resumo: durma-se com um barulho desses, literalmente!

Eu desisti de querer dormir e fiquei a perambular. Em princípio, preocupei-me com o processo de carregamento do ônibus, pois no meio do tumulto da saída do público, seria preciso ficar atento, pois era (é) nesses momentos em meio à balbúrdia que oportunistas poderiam achar propícia a chance para tentar empreender ações de furtos etc. 

Fiquei próximo do ônibus ao observar o trabalho dos roadies e do Marco Carvalhanas, que também estava em alerta. Rodrigo e Marcello arrumaram companhias femininas e foram com tais meninas para recantos mais discretos do complexo, mas o Rolando Castello Junior e Claudia estavam exaustos e tentaram dormir. 

Entretanto, claro que não conseguiram relaxar, apesar de cansados, pois o barulho que a garotada que não saia do local, fazia, os irritava. Então, por volta das 3:00 horas da manhã, um dos produtores do show, que foi muito simpático e solícito para conosco o tempo todo, ofereceu-se para nos trazer um lanche da cidade. 

Dessa forma, rapidamente, ele organizou uma lista com pedidos de todos de nossa comitiva, e foi buscá-lo em uma lanchonete 24 horas, localizada no centro da cidade. Antes porém de partir, nos preocupamos (e isso é uma típica reação de quem mora em cidade grande), com a segurança dele. Oferecemo-nos para acompanhá-lo à lanchonete, para que ele ficasse mais seguro, enfim, pois já se tratava da alta madrugada em curso etc. e tal...

Foi então que o rapaz, na base da brincadeira é claro, fez um discurso a ironizar o fato de que éramos paranoicos porque vivíamos na "loucura de São Paulo" e por conta de tal máxima em sua avaliação, usou e abusou de argumentos exaustivamente repetidos em programas de conteúdo "mundo cão", da TV aberta ao afirmar entre risadas, que vivia em uma cidade pacata, sem crimes, com a típica prática interiorana de se "dormir com as janelas da casa, abertas", "deixar a chave do carro na ignição" etc. 

Então, tudo bem... demos risada juntos, e o rapaz partiu. O tempo passou e nós achamos estranho a demora para tal, pois a distância era pequena. É bem verdade que no padrão interiorano, os atendimentos em geral são bem mais vagarosos do que nas cidades grandes. Estamos acostumados a ter tudo disponível 24 horas por dia e entregue muito rápido, no padrão de São Paulo e sabíamos que nas cidades interioranas, o processo era de uma maior lentidão em tudo, mas realmente ele estava a demorar muito. 

Então o rapaz chegou e nós ficamos assustados! O lanche estava providenciado, mas o rapaz estava todo arranhado, com um dos seus  olhos inchados, a apresentar hematoma, e com as suas roupas rasgadas! Em resumo: enquanto ele esperava o preparo do lanche, fora abordado por bandidos que o assaltaram e lhe agrediram!

Foi trágico e compadecemo-nos, é claro, mas no fim, ele mesmo ironizou a situação e todos rimos muito enquanto comíamos, pois essa seria então a tal decantada "tranquilidade do interior?" Não cabe tripudiar, é claro, mas que foi irônico, isso foi.

No dia seguinte, despedimo-nos do pessoal da produção local desse show e nos preparamos para tomarmos o rumo para Mirassol-SP, na região de São José do Rio Preto-SP. Seria o último dia dessa micro turnê. 

Agradecemos pelo apoio e hospitalidade, além é claro de todo o empenho para fazer desse show de |Jales-SP, um sucesso e apesar dos pesares, foi mesmo, sem dúvida. O show aconteceu em um espaço alugado para eventos, chamado: "Recanto das Festas", na noite de sábado, dia 29 de dezembro de 2001, com cerca de quinhentas pessoas na plateia. Agora a próxima parada seria em Mirassol-SP.

E lá estávamos nós de novo em nosso ônibus, rumo a Mirassol-SP.
Sob um calor muito forte mais uma vez, e ao contrário de outros percursos que fizéramos, desta feita houve um silêncio generalizado no ar. 

O cansaço arrebatara-nos, após quatro dias com shows, e viagens intercaladas. Fora a primeira experiência da nossa formação em torno de uma turnê sob tais moldes, e certamente que adquirida a prática, depois acostumar-nos-íamos em futuras novas empreitadas dessa natureza, que faríamos, mas por ter sido esta a primeira nesse sentido, cansara-nos, é claro. 

Chegamos em Mirassol antes do horário previsto e esperamos um bom tempo pela chegada do pessoal da banda de abertura, que fora responsável pela produção local. Seria um show em casa noturna, produzido pelo pessoal que citei, portanto, as características desse show seriam idênticas às do show de São Carlos, pelos aspectos positivos e negativos que tal tipo de produção poderia gerar. 

E de fato, para a nossa sorte e alegria, foi um domingo memorável, conforme eu relatarei a seguir, pois a banda de abertura foi excepcional, e os rapazes, tão gentis e antenados em nossa proposta quanto o pessoal do "Homem com Asas", de São Carlos. A banda em questão chamava-se: "Hare". 

Junior Muelas, o baterista do "Hare" na ocasião, e que tornou-se um amigo eterno, movido pelos nobres ideais aquarianos do Rock

Tratava-se de um Power-Trio muito influenciado pelo astral das décadas de 1960 & 1970. Cultuavam toda a magia dessas décadas e vibravam nela, a usar até no cotidiano um visual "woodstockeano" em seu figurino básico, e por manterem o seu trabalho autoral orientado por preceitos aquarianos, fortemente. 

E assim como o pessoal do "Homem com Asas", a constatação de que haviam esmerado-se para divulgar ao máximo o evento, fora notável. O esforço que fizeram para viabilizá-lo, foi sensacional e a simpatia que sentimos por eles, revelou-se instantânea. 

Pelo lado negativo, seria mais um show a ser realizado mediante o uso de um equipamento improvisado de som e iluminação e curiosamente, onde a vibração seria mais Rocker. A se pensar nessa micro turnê, nos três shows que fizemos com equipamento de som e iluminação adequados, o astral deixou a desejar, mas nos mais estimulantes, ideologicamente a falar, as condições mostraram-se inadequadas, portanto, a conclusão foi óbvia: lidamos com uma situação onde não seria possível conciliar tudo ao nosso gosto e necessidades prementes.

                         Visão aérea da cidade de Mirassol-SP

Para amenizar tal constatação, o fato de que o bar em questão, se mostrara bem menor em suas dependências do que o de São Carlos, nos fez deduzir que não seria necessário um grande PA para ali se produzir um som condizente. 

Dessa forma, com o equipamento que o pessoal do "Hare" viabilizara, consideramos que seria adequado para o tamanho da casa, e dessa maneira, preocupamo-nos muito menos do que em São Carlos, na quinta-feira anterior. 

O fato do show de Mirassol ter sido marcado para um domingo, tampouco preocupou-nos, pois fora em pleno dia 30 de dezembro, portanto, a segunda-feira posterior, cairia no dia de Reveillon. Pelo contrário, foi até um alento para esperarmos atrair um bom público. 

Mirassol é uma cidade pequena, mas com boa infraestrutura e está distante apenas a quinze Km de São José do Rio Preto, esta sim, uma grande cidade interiorana, com quase quinhentos mil habitantes e porte de metrópole. Portanto, esperávamos um público advindo também dessa grande cidade, pois a distância era mínima, e o pessoal do "Hare" era de Rio Preto, portanto, a sua base de fãs e amigos viria de lá, com certeza. 

O combinado inicial da logística foi que houvéssemos sido alojados em um hotel, mas nós resolvemos voltar imediatamente após o show, pois estávamos muito cansados e queríamos retornar logo para São Paulo, mesmo com a perspectiva de que isso ocorresse quase ao amanhecer (e foi o que aconteceu, de fato).

Entretanto, mesmo sem hotel, precisávamos tomar banho e dessa forma, o dono do bar, que era dirigente do clube local, o Mirassol, lançou a ideia de nós usarmos as duchas dos vestiários poliesportivos do clube e claro que aceitamos. Fomos então para o clube, que estava fechado para sócios naquela tarde e assim, pudemos usar as dependências exclusivas destinadas aos atletas, com conforto. 

O dono do bar era um sujeito prolixo e desbocado. O tempo todo que esteve conosco, fez brincadeiras malucas e descontraiu o ambiente, a provocar muitas risadas com as suas colocações tresloucadas.

De volta ao bar, nós jantamos e nos colocamos à espera da hora do show. Estava marcado o seu início para o meio/fim da noite e dessa forma, fomos para o nosso ônibus, estacionado na porta do estabelecimento, para descansar nesse momento. 

Quando a noite já estava consolidada, ouvimos muitas vozes, vindas da calçada. Foi proveniente do público a se colocar em fila, na espera pela abertura da casa. A fila estava enorme e isso animou-nos muito, embora não fosse um público Rocker em essência, mas a se tratar de rapazes e moças, típicos frequentadores de casas noturnas à procura de balada & diversão, tão somente. Para o nosso consolo, mais moças que rapazes, pelo menos isso.

Com a aproximação do horário combinado, resolvemos então irmos para o interior da casa, e assistirmos o show do "Hare". Foi difícil entrar no recinto, pois este já encontrava-se inteiramente abarrotado, e a fila de pessoas a desejarem adentrarem, mesmo ao se mostrar como algo quase impossível pelas circunstâncias, foi muito grande. 

Se não fosse pela intervenção providencial da parte de Claudia Fernanda e Marco Carvalhanas que estavam na portaria, teria sido difícil entrar. Lá dentro, estava bastante quente, apesar da farta existência de ventiladores de teto. O fato é que a casa estava muito lotada, e o calor humano só reforçara a típica temperatura interiorana, ainda mais nessa época do ano.

Arrumamos um canto e assistimos a apresentação do "Hare", com muito prazer. O "Hare" detinha o seu trabalho autoral, mas estava acostumado a tocar covers de clássicos do Rock 1960 & 1970, pois infelizmente, raramente encontrava oportunidades para realizar shows exclusivamente autorais, como desejavam e mereciam. 

De minha parte, impressionei-me muito com a performance da banda, mas não só pela questão técnica. Claro que eram ótimos músicos, com grande capacidade técnica. 

A questão que realmente me impressionou, no entanto, foi: eles detinham um "algo a mais" que cativou-me e detesto usar a palavra "atitude", porque tal termo ganhou uma conotação deturpada nos últimos trinta e tantos anos por razões nefastas, e não cabe um desvio de conversa aqui para explicar o porquê disso. 

O fato, é que o "Hare" demonstrou possuir a capacidade intrínseca de extravasar no palco algo mais que uma influência boa daquelas décadas, como muitas bandas bem-intencionadas com tal proposta apresentam, mas conseguira, aí sim, transmitir tal vibração, como se realmente fosse uma banda da época, e isso cativou-me. 

Mesmo quando tocaram covers (e por mais que eu gostasse de tais músicas, ainda assim, sempre iria preferir ouvir o material autoral de um artista novo), a vibração certa estava ali garantida, perfeitamente transmitida pelos três membros da banda. 

Claro, essa perspectiva foi muito particular de minha parte e mais ou menos foi percebida pelos demais, pelo que me relataram a posteriori. Talvez os meus colegas não se ligassem nesse pormenor, mas claro, cada um tem uma visão e uma motivação e pelo que eu me lembro, somente eu estive a enxergar a performance do "Hare" mediante lentes lisérgicas e sob vibrações aquarianas tão acentuadas.

Claro que havia um grupo de amigos e fãs do "Hare" presentes e a vibrar, mas a grande maioria ali, foi formada pela juventude não-Rocker da cidade de Mirassol, e também das vizinhas, incluso São José do Rio Preto, a maior cidade da região e uma pequena metrópole, pelo seu porte e infraestrutura. 

De minha parte, eu estava muito motivado para tocar, depois de um show de abertura tão emocionante, perpetrado pelo "Hare", cujos membros eram: Renato (guitarra e voz), Sandro (baixo e voz), e Junior Muelas (bateria e voz).

 
Depois do excelente show do "Hare", chegou a nossa vez. Claro que não esperávamos nenhuma comoção, pois fora nítido que a casa estava lotada por um público não aficionado, e em sua maioria, formada por jovens burgueses locais.
Fotos desse show da Patrulha do Espaço em Mirassol-SP, em dezembro de 2001. Clicks, acervo e cortesia de Junior Muelas

Mas, os Rockers presentes foram valorosos e trataram de arrumar um jeito de ficarem bem próximos do palco, a garantir atenção e acolhida boa para nós. 
Patrulha do Espaço em ação em Mirassol-SP, em dezembro de  2001. Clicks, acervo e cortesia de Junior Muelas

E foi assim que tocamos, com bastante impetuosidade, ao arrancarmos aplausos dos Rockers presentes e por despertar a atenção generalizada somente quando tocamos a nossa releitura da canção: "Ando Meio Desligado", obra dos Mutantes, mas claro, da parte dos incautos, ao reconhecê-la como uma música do "Pato Fu", que a regravara no início dos anos 2000, e que tornara-se tema de uma novela da Rede Globo.

Mirassol-SP, em dezembro de 2001. Patrulha do Espaço em ação. Clicks, acervo e cortesia de Junior Muelas

Enfim, a despeito desse disparate, foi um show muito bom, e apesar do cansaço que fora evidente pelo acúmulo de dias na estrada, nós tocamos com muita motivação e saímos do palco bastante satisfeitos com a performance. 

Pelo aspecto financeiro, o show de Mirassol seria em princípio uma aposta na bilheteria. Como tratou-se de um encaixe, ao voltarmos para a casa e a encerrar a turnê, foi o único show que não preocupou-nos, nesse sentido monetário. Em Americana e Monte Alto, o cachê cobriu a despesa toda da viagem, São Carlos foi uma perspectiva para engrossar a féria e surpreendeu-nos positivamente, com Jales a apresentar um bom cachê fixo ao significar assim em nossa matemática financeira como o lucro garantido da turnê. Portanto, Mirassol seria um adendo, um reforço de caixa.

No entanto, a super lotação da casa fora muito além das nossas mais otimistas projeções, e a féria encorpou o nosso lucro geral de uma maneira absurda. Não citarei valores, obviamente, mas digamos que o lucro dessa etapa da turnê pagou mais da metade do nosso ônibus, e toda a despesa de oficina para transformar a sua porta traseira, e também, a promover a nova pintura do veículo. 

Lembro-me bem do sorriso da Claudia, ao anunciar o sucesso financeiro da empreitada, após fechar a conta com o dono do estabelecimento. Aliás, nem o próprio dono esperava um sucesso tão grande e inebriado por esse êxito estrondoso, ele já abriu perspectiva para voltarmos em breve, e de fato, isso ocorreria novamente no início de 2002. 

Quanto ao ônibus, o nosso sócio/motorista promovera uma troca de óleo na cidade de São Carlos. Como ele mesmo quis fazer a operação, ao alegar que economizaria por não levar o veículo a um posto de gasolina, tratou de comprar baldes de plástico e arrumou muitos maços de jornais velhos para não sujar o pátio onde foi feita a operação.

Guarde esse fato singelo, caro leitor... no próximo capítulo, você irá se lembrar-se do tal baldinho.

Para encerrar sobre Mirassol: após o show, paramos para um lanche na loja de conveniência de um posto de gasolina próximo da saída da cidade, acompanhado dos amigos do "Hare", e de vários amigos deles, que eram fãs da Patrulha do Espaço. 

Nesta ocasião, um rapaz abordou-me e desconcertou-me, pois de uma forma surpreendente, ele alegou ser meu fã, e que havia me visto a tocar com o Língua de Trapo, em São José do Rio Preto, no ano de 1984! O rapaz aparentava ser jovem e portanto devia ser criança ou no máximo pré-adolescente naquele ano citado, e ao ir além, ele descreveu com detalhes o show e até citou particularidades sobre o equipamento de palco que usamos na ocasião, ao comprovar que comparecera, mesmo em 1984, a se revelar ali em um posto de conveniência em Mirassol, como um mundo muito pequeno para todos nós! 

Despedindo-nos dos amigos e tomamos o rumo para São Paulo. Eram mais de quatro horas da manhã, do dia 31 de dezembro de 2001, quando entramos na estrada para cumprir a jornada de retorno à capital. 

O ano de 2001 estava a encerrar-se e o fecháramos com uma turnê constituída por shows consecutivos, o sonho de qualquer artista, independente de seu espectro. Não éramos os Rolling Stones, a cumprir turnês gloriosas, mediante cachês milionários e sob mordomias as mais diversas, mas estávamos felizes por estarmos na estrada e a realizarmos o nosso trabalho.

O resultado financeiro da turnê fora acima das expectativas, além de termos vendido muitos discos nos shows e nas lojas locais. Muitas matérias foram publicadas nos jornais interioranos, também. Enfim, apesar das dificuldades inerentes, estávamos com a sensação de vitória nessa viagem de volta a São Paulo. 

Já tínhamos perspectivas para outras etapas da turnê, para o início de 2002 e queríamos enfim, acelerar o processo para lançar o novo álbum, que estava gravado, mas engavetado naquele instante. 

Chegamos em São Paulo por volta de onze horas da manhã, muito cansados, mas satisfeitos, portanto. A meta imediata foi descansar e reagruparmo-nos para darmos prosseguimento aos shows, muito em breve. 

E o próximo compromisso seria logo no dia 5 de janeiro de 2002, na cidade de São Roque-SP, interior de São Paulo e eu tenho uma história inusitada para contar sobre tal etapa.

Finalmente, faltou dizer que o show em Mirassol ocorreu na casa "Planet Beer", no dia 30 de dezembro de 2001, um domingo. O público presente nessa noite, foi com cerca de quatrocentos pagantes. 

Próxima parada: São Roque-SP, já no alvorecer do ano de 2002!

O ano de 2002 começou animado então, com a perspectiva de nós continuarmos a turnê, e a ideia básica foi mesmo de proporcionar essa continuidade através de micro turnês semanais, na base do esforço, na vontade e sobretudo, no sonho Rocker. 

Tratou-se de um circuito underground, é bem verdade, e dessa forma, muitos shows foram arranjos improvisados por intermédio de fãs abnegados, da parte de bandas locais que fariam a abertura, jornalistas/radialistas da mídia local e especializada e/ou amigos em geral, sempre no sentido do auxílio voluntarioso, em prol da nossa produção. 

Vez por outra, um show mais bem produzido ocorria no meio da turnê, mas o fato foi que nos acostumamos com a rudeza da produção extra mainstream e tal condição jamais prejudicou a nossa performance no palco e sobretudo, não tirava-nos o foco da grande missão, que seria resgatar a estética "old school" do genuíno Rock vintage e assim respeitar os fãs da banda, mesmo que fossem poucos presentes em cada apresentação, como muitas vezes aconteceu em casas lotadas por jovens alheios, sem noção alguma de quem éramos. Portanto, o nosso lema para efetuarmos tais turnês sempre se baseou na máxima: Carry on, Rockers!

E a continuidade da turnê dar-se-ia logo no início de janeiro de 2002. Uma nova investida ao interior de São Paulo, esteve programada para a primeira semana de janeiro. Seriam apenas dois shows e o primeiro deles na cidade de São Roque-SP, esta situada bem próxima da capital paulista (cerca de cinquenta km), em uma casa noturna local, chamada: "V8".

Pelo nome, sugeria ser uma casa ligada aos motoclubes ou alguma outra agremiação formada por aficionados de motos e carros em geral, mas na verdade fora uma casa noturna comum, sem ligação direta com esse tipo de associação com característica de um motoclube ou similar. 

Fomos então para essa nova etapa da turnê, após um período de descanso nos primeiros dias do novo ano.

Desta feita, a estrada não cansar-nos-ia muito, pela curta distância empreendida entra a capital e as duas cidades que visitaríamos, São Roque-SP e Limeira-SP. 

Claro que o calor do verão foi enorme, mas nessa primeira etapa, por termos ido a uma localidade bem próxima, no caso, São Roque, foi uma viagem que não permitiu que nós sentíssemos tal efeito em demasiado. Portanto, saímos de São Paulo no meio da tarde, ao dar-nos ao luxo de evitar o sol a pino e com a perspectiva de chegar na hora do soundcheck, sem prejuízo.

Eu e Rolando Castello Junior já conhecíamos a casa, pois fomos visitá-la ainda em 2001, quando viajamos ao interior para semearmos o terreno para a realização da turnê. Agora, estávamos em plena fase de colheita, com a realização dos shows em si, obviamente. 

E por conhecermos a casa, sabíamos que ela detinha uma instalação sui generis, no sentido de que ficava instalada sob um ponto muito alto, construída em uma encosta, praticamente. Portanto, para acessá-la, seria necessário subir uma escada íngreme e enorme! 

Chegava a ser assustadora pela dificuldade e também pelo perigo que constituía, sem dúvida. Avisamos todos os companheiros sobre essa questão e principalmente os roadies, que sofreriam muito nessa etapa da turnê, mas não haveria outro meio para transportar-se o equipamento, a não ser por essa dura peregrinação, sob ares de penitência.

Entretanto, quando chegamos na porta do estabelecimento, mesmo com todos os membros da nossa comitiva, muito bem avisados, todos manifestaram-se com ênfase, ainda dentro do ônibus, ao olharem aquela escada absurda, pelas janelinhas do nosso carro.

Precipitou-se então um festival de palavrões ali proferidos coletivamente, daqueles que são tipicamente pronunciados como forma de interjeição, a se exprimir a estupefação, entremeadas por risadas, algumas de escárnio, outras nervosas e a trazer nas entrelinhas um certo ar de lamento. 

Enfim, não houve outra solução e os roadies sofreram muito para transportar todo o backline da banda, mediante subidas sofridas e o único consolo nessa circunstância foi o de que emagreceriam bastante, e sem pagarem para usar academia de musculação. 

Mas essa não seria a única bizarrice nessa história! O clima observado no interior da casa mostrara-se muito estranho. Era um bar musical e acostumado a promover shows com bandas ao vivo, periodicamente, havia um palco razoável à disposição, equipamento de PA e iluminação compatível, mas o astral dentro da casa não parecia ser o de uma casa noturna tradicional. 

Foi na verdade, tenso, ao parecer ser agressivo não só pela rudeza das instalações em si, mas pelo aspecto subliminar ali instaurado, sobretudo. 

Fizemos o soundcheck e ajeitamos o som da melhor maneira possível. Fomos jantar e quando voltamos, começamos a entender a característica do estabelecimento e o quanto seria estranho tocar ali.

Quando chegamos ao estabelecimento para aguardar a hora do show, começamos a entender enfim o astral predominante no ambiente. Assim que o adentramos, o som mecânico que alimentava o ambiente da casa, revelava-se absolutamente antagônico à nossa proposta artística.

Tocava-se naquele instante uma seleção com Rap e o que mais aproximou-se de nós ali, foi o som de bandas modernas dos anos 2000, sob orientação Punk, ou ligadas em street culture, como o Charlie Brown Junior, com aquela questão ligada ao mundo do skate etc. e tal, ou seja, antagonismo total aos nossos propósitos. 

O clima ficou tenso na casa. A maioria das pessoas ali presentes eram jovens a aparentar serem entusiastas desse tipo de abordagem cultural.

E todos ali pareciam dispersos, não interessados em apreciar aquele som, que aparentemente seria do espectro deles. Andavam para lá e para cá, desinteressados no som, acintosamente, como se estivessem a realizar o clássico, "footing", em meio a uma praça interiorana. 

Até aí, tudo bem, apresentamo-nos muitas vezes em casas híbridas, que não eram exatamente adequadas para shows de Rock com bandas autorais, mas nessa, em específico, o clima ficara estranho, tenso, ao fugir até do padrão de casas onde o mote seria a paquera e a bebedeira e sob uma terceira, rara, e obscura instância, a atenção para a performance do artista que ali apresentava-se. E com a agravante de que se fosse um show com intenção autoral, o descaso tendia a ser ainda maior. 

Bem, apesar dessas observações, fomos cumprir o show e de fato, quando começamos a tocar, o desinteresse foi total da parte daquela audiência. Tocávamos para ninguém, praticamente, apesar de haver na dependência do estabelecimento, uma multidão ali presente.

Ninguém hostilizou-nos, pois pareceu não importarem-se com o show e mesmo que fosse um artista teoricamente de seu agrado a apresentar-se ali, ao vivo, creio que não interessar-se-iam, o que foi uma reação bizarra da parte desse público, em tese. 

O que queriam tais pessoas, afinal, ficou óbvio: divertirem-se em um sábado a noite, a beberem e a arrumarem parceiros sexuais, o que é a praxe da noite em qualquer parte do mundo. Mas ali naquele ambiente, tal determinação ocorrera de uma forma bastante obscura, eu diria. 

Bem, dos males o menor, pois não houve hostilidade e o máximo que aborreceu-nos ali foi o desinteresse generalizado, mas tal predisposisão representou na prática os ditos "ossos do ofício", algo corriqueiro para qualquer artista lidar na carreira.

O lado ruim mesmo foi enfrentar novamente a escada íngreme. A máxima popular, na qual afirma-se que na descida "todo santo ajuda", revelara-se apenas uma meia verdade, ali. O fato, foi que ante uma escada altíssima e íngreme daquelas, a preocupação em se evitar acidentes com equipamentos pesados, foi total. 

Cogitamos dormirmos na cidade, mas de última hora, mudamos de ideia e seguimos para a outra cidade onde tocaríamos no dia seguinte, ainda no decorrer da madrugada. 

Foi então uma viagem tranquila e relativamente rápida, apesar de termos usado uma estrada secundária que faz comunicação entre as cidades de São Roque-SP e Limeira-SP, ao passar também por Itu-SP e Salto-SP. 

Chegamos em Limeira-SP, sem reserva de hotel, pois o plano inicial fora pousarmos em São Roque, e aí nesse aspecto, começou mais uma história hilária. 

O show em São Roque-SP, aconteceu em 5 de janeiro de 2002, na casa de shows: "V8". Cerca de seiscentos pessoas estiveram presentes em nossa apresentação, mas a prestar atenção e apreciar mesmo a nossa performance, creio que foram quinze ou vinte, pois mesmo nas situações mais inóspitas, sempre apareciam fãs abnegados com discos de vinil da banda, debaixo do braço. 

Já em Limeira-SP, assim que chegamos, com o dia a raiar...

Chegamos na cidade de Limeira-SP com o dia a amanhecer, domingo, 6 de janeiro de 2002. Não tínhamos nenhum compromisso na cidade, antes do soundcheck, marcado para as 15:00 horas, pois ao tratar-se de um domingo, não faríamos as costumeiras visitas às lojas de disco, tampouco haveriam entrevistas agendadas em nenhum órgão de imprensa local. 

A ideia, portanto, foi dar entrada em um hotel e descansar na parte da manhã, almoçar e descansar mais, pois a casa só abriria naquele horário que eu mencionei acima. 

Contudo, diante de preços proibitivos, hotéis melhor categorizados ficaram inviáveis naquele instante e dessa forma, a nossa busca centrou-se nos mais baratos e nessa circunstância, fomos parar nos arredores da rodoviária da cidade.

          Vista da estação rodoviária da cidade de Limeira-SP

Como é público e notório, hotel de entorno de rodoviária, tende a não ser o tipo de estabelecimento indicado para quem quer apenas dormir e dessa forma, lá fomos nós a entrarmos em um pulgueiro e tanto.

Até aí, tudo bem, a nossa banda não era formada por estrelas exigentes que costumavam provocar chiliques quando não são atendidas em suas reivindicações mais básicas. Ali forjamos uma turma resiliente, sem melindres, e cujos membros que se tivessem que dormir no próprio ônibus, ninguém ali reclamaria, com certeza. 

Mas na falta de um lugar seguro, priorizamos parar em um hotel que ao menos possuísse uma garagem que comportasse o nosso ônibus e nessas circunstâncias, quase todo hotel normal só abrigava carros de passeio em seu estacionamento padrão.

Com o backline da banda todo no interior do nosso bólido, não seria prudente arriscar deixá-lo na rua, e assim, fomos parar nessa pocilga. Foi um hotel usual para frequência rápida, digamos assim, e a simples presença de um bando de cabeludos, já chamou a atenção de uma forma absurda em suas dependências. 

Eu até divertia-me com esse tipo de situação, pois sentia-me nos anos sessenta, ao causar estupefação entre caipiras/"hillbillies", habitantes de pequenas cidades norte-americanas no calor do "Flower Power", o que não deixou de conter uma espécie de glamour enviesado, eu diria... mas o pior estava por ocorrer, pois quem conseguiria dormir com gritos e tiros que vinham da rua?

Pois é, segundo apuramos depois com amigos de Limeira, mais que barra pesada por ser entorno de rodoviária, aquela região representava a "cracolândia" da cidade, e ali a prostituição, tráfico de drogas e abordagens criminosas mediante armas como fator de coação, era uma constante. 

De fato, a rua estava forrada por prostitutas seminuas, mas com todo o respeito que todo ser humano merece, a pergunta foi: quem em sã consciência pagaria para fazer sexo com aquelas "moças" (que na verdade aparentavam serem bem "veteranas"), tão prejudicadas pela aparência nada atraente? Mesmo assim, o carrier, e dublê de roadie que o nosso sócio/motorista arrumara-nos, animou-se com as opções femininas que observara, encostadas na parede em frente ao hotel, e assim, foi gastar seu cachê do show da noite anterior, feliz da vida com tal perspectiva. Enfim, há gosto e estômago para tudo neste mundo, definitivamente. 

Quanto aos tiros, estes foram decorrentes de pequenas ações criminosas, talvez a apontar para acerto de contas perpetrados por traficantes e coisas do gênero.

Sem condições para dormir-se com um mínimo de silêncio naquele momento, aceitamos tomar o café da manhã que começara a ser servido. No entanto, quando observamos as opções disponibilizadas na mesa, desanimamos. Ficou só pelo café, pois era um ambiente nada asseado e os produtos oferecidos, com má qualidade, mas por outro lado, perfeitamente compatíveis com o padrão do hotel, nos termos da tarifa da diária ali cobrada. 

Bem, diante desse quadro perturbador, só conseguimos pregar os olhos quando a manhã já estava em sua metade e o sol a pino, com o típico calor interiorano abrasador a agir. 

Mas nesse ponto, houve o forte assédio perpetrado pelos pernilongos e as pulgas em profusão, portanto, dormir mesmo, foi um luxo inacessível naquele momento...

Bem, não éramos os Rolling Stones a desfrutar de mordomias em meio a uma turnê e se hoje esse relato desperta-me risadas, e muito provavelmente o leitor também ache graça da situação, na hora, não foi bem assim. 

Acordamos então, mas ainda não revigorados devidamente e tratamos por sairmos daquela espelunca. Por volta do meio dia, o clima de decadência da rua do hotel, amenizara-se. Foi possível sair à rua sem a certeza de que seríamos vítimas de um assalto. 

Fomos então para as imediações da casa onde tocaríamos, aí sim localizada em um bairro residencial decente e tratamos por procurar um lugar para almoçar e a completar a longa espera pela sua abertura e realização do soundcheck.

O estabelecimento chamava-se: "Bar da Montanha" e desta feita se tratou de uma casa com forte tradição Rocker na cidade e em toda a região.

Foi a primeira vez que tocamos ali, mas só pela sua fachada, já sentimo-nos mais adequadamente a vontade, a apresentar pinturas na parede e neste caso a ostentar motivações psicodélicas e caricaturas com astros do Rock, 1960 & 1970. 

Mesmo que a infraestrutura não fosse boa, haveria de ser um show muito melhor do que o da noite anterior, quando tocamos para um público avesso à nossa proposta.

Então, após uma longa espera, eis que um dos donos da casa finalmente chegou e pudemos assim, descarregar o nosso equipamento e começar a montagem. 

O local mostrara-se bastante agradável, com um palco coberto, mas a maior parte da área útil da casa, ficava ao ar livre, com muitas mesas a lembrar os quiosques praianos. Algumas paredes ostentavam pinturas psicodélicas rústicas, mas apenas pela intenção de se evocar tal vibração, já mostrara-se adorável por si só. O astral do local lembrava o de salões rústicos que existiam em São Paulo, onde ainda existiam (existem hippies a frequentá-los), tais como: Fofinho e Led Slay, por exemplo.

A famosa fase do trio clássico da Patrulha do Espaço, entre 1981 e 1984, com Dudu Chermont, Rolando Castello Junior & Serginho Santana

Um dos proprietários do estabelecimento que recepcionou-nos, foi extremamente simpático e sabia com quem estava a lidar. Ele era fã declarado da Patrulha do Espaço e contou-nos ter visto a banda em ação na cidade de Limeira, nos anos 1980, na fase do trio formado por Junior, Dudu e Serginho. 

O palco se mostrou um pouco apertado, mas na base da boa vontade, nós nos acertamos. Já havíamos tocado em palcos muito piores, como por exemplo naquele show que eu mencionei muitos capítulos atrás, realizado em uma casa noturna sob característica jazzística, em São Paulo, onde sentimo-nos verdadeiras múmias a tocarmos engessados, sem podermos fazer nenhum movimento brusco com o braço do instrumento, cada um de nós da linha de frente da banda.

O camarim constituiu-se na parte mais curiosa da casa, no entanto. Tratou-se de um charmoso chalé ao estilo pré-montado, que o rapaz adaptara como camarim para os artistas que ali apresentavam-se, com uma estrutura de moradia, talvez para uma pessoa somente ou no máximo, para um casal. 

Mas como "camarim" dava conta do recado, visto que em muitos lugares que tocamos, nem isso existira. Uma das janelas dessa casinha, apontava para a parte de trás do palco, e ali fora colocada a mesa de mixagem e as potências que alimentavam o PA da casa. 

Claro que era inadequado, mas foi a melhor forma que o rapaz teve para deixar o equipamento guardado em segurança, visto que com a maior parte do estabelecimento a ficar ao ar livre, não oferecia tal guarida, apesar de que nos momentos em que a casa ficava fechada, a segurança ficava por conta de dois cães da raça, Doberman, ambos bastante agressivos, que vimos presos no canil.

Feito o soundcheck, sentimos que ali o som não seria de primeira qualidade. Por que será que nas casas mais Rockers tínhamos essa predisposição negativa e em casas destinadas ao exercício hedonista da parte da juventude burguesa, o equipamento quase sempre apresentava boa qualidade? 

É possível que houvesse alguma explicação lógica para essa dinâmica e de fato, havia... pois o Rock estava mergulhado no patamar do espectro underground, com casas Rockers a serem mais debilitadas financeiramente a falar e assim, pecavam pela falta de infraestrutura, simples assim. 

No entanto, na hora, só atribuíamos tal dinâmica desagradável ao fator do suposto azar, a caracterizar algo imponderável. Deu para relaxarmos no pós-soundcheck, quando a casa abriu e o público começou a tomar lugar pelas mesas espalhadas. 

O som ambiente foi bem agradável e pelas janelas da casa onde estávamos alojados, víamos Rockers, cabeludos e freaks em geral a chegar, enfim, e assim, pareceu-nos que teríamos um público bem antenado.

Fomos tocar então no horário determinado. Haviam muitos fãs da banda, o que deixou o clima muito agradável para a nossa performance. 

Mas ao contrário do que supomos inicialmente, a grande maioria do público portou-se de uma forma apática, ao se mostrar disperso pelas mesas mais distantes do palco. Parecia um público Rocker pelo visual que essas pessoas detinham, mas surpreendentemente, não demonstrou interesse em nossa performance. Isso não aborreceu-nos, absolutamente, mas causou-nos espanto, é bem verdade.

O importante foi que o show foi animado, com os verdadeiros fãs da banda a demonstrarem no semblante e na gesticulação que estavam extasiados. Na abordagem pós-espetáculo, fomos agraciados com o carinho desses fãs, e sobraram boas histórias da parte de fãs mais veteranos, ao falar-nos sobre as andanças da Patrulha do Espaço por Limeira-SP, na década de oitenta e de fato, a cidade mantinha uma tradição de gostar da banda e vice-versa. 

O Bar da Montanha recebeu-nos muito bem, e as portas ficaram abertas para outras ocasiões. De fato, voltaríamos lá algumas vezes no futuro. 

Quanto à reação apática de uma parte do público, os donos falaram-nos que fora normal tal comportamento da parte daquelas pessoas. Por incrível que pareça, na visão deles, essa turma gostava de Rock vintage, mas não demonstrava entusiasmo, explicitamente. Ficavam sempre tão entretidos com suas conversas particulares pelas mesas, que tendiam a não prestarem atenção nas bandas, portanto, não fora nada contra nós ou pelo fato de sermos uma banda autoral.

Certo, "cada louco com a sua mania", como se diz no jargão popular. Na saída, enquanto os roadies carregavam o ônibus, um fato bizarro ocorreu. Um cão vira-lata, a parecer ter alguma descendência "poodle" ainda que remota, ficou a rondar o ônibus. Lembro-me que a sua sujeira era incrível e por conta desse fator, a sua pelugem pareceu ser com uma fantasia de gás carbônico para se usar em uma festa de "Halloween". 

Enfim, todos ali se afeiçoaram ao bichinho e logo surgiu comida para tirá-lo da sua situação advinda de uma vida errante sofrida pelas ruas. Contaram-nos que ele era conhecido no bairro e não tinha dono etc. Quando já estávamos na estrada, a voltarmos para São Paulo, ouvimos ruídos estranhos vindo do compartimento onde o equipamento alojava-se. Fomos ver o que seria aquele ruído e bingo... lá estava o cachorrinho! O carrier/roadie, resolvera adotá-lo e o colocara no ônibus à nossa revelia.

Bem, acho que o bichinho gostou da oportunidade que a vida deu-lhe, é claro. Alguns dias depois, quando encontramos o carrier para empreendermos uma nova etapa da turnê, ele contou-nos que após se efetuar o rito do banho e tosa, o cãozinho se mostrara como branco de fato, e o cinza em questão fora mesmo uma cor adquirida pela vida sofrida, involuntariamente. 

Assim foi o show em Limeira-SP. Aconteceu no dia 6 de janeiro de 2002, um domingo, no Bar da Montanha e com cerca de quatrocentas pessoas presentes no estabelecimento. Para a nossa sorte, mais da metade esteve realmente a gostar e a interagir conosco. A próxima etapa da turnê prosseguiria na semana seguinte, com mais três shows pelo interior de São Paulo e a extensão para uma viagem fora do nosso estado, rumo ao Paraná.

Nesse início de ano a prioridade foi mesmo a de excursionar, realizar muitos shows e capitalizar ao máximo essa boa fase que a agenda proporcionara-nos.  

Tínhamos um disco novo gravado, porém ainda não mixado, todavia, a verba para dar continuidade esteve comprometida, na verdade. A nossa prioridade foi quitar o ônibus e investir em alguns ajustes nele, para tornar as nossas viagens mais seguras e confortáveis.  

A despesa operacional para organizar as turnês, também era elevada e tínhamos planos de expansão nesse sentido gerencial. Por exemplo, entre 1999 e 2000, precisávamos de um "site" e nessa época, ainda engatinhávamos no quesito da informática/computação/Internet e por conseguinte, todas as ações virtuais foram até então improvisadas, com o Rodrigo e o Marcello a tomarem a dianteira, mas munidos apenas com a parca experiência adquirida como simples usuários iniciantes, e sob o uso dos seus respectivos PC's caseiros, sem muitos recursos, como hoje em dia estão disponibilizados, amplamente (2016).  

Logo surgiria uma opção (ainda 2001, ao sair um pouco da cronologia), mais categorizada nesse sentido, mas falo sobre tal questão, depois.

Por enquanto, o próximo passo a ser dado no mês de janeiro de 2002, foi uma nova micro excursão ao interior de São Paulo, com uma esticada ao Norte do Paraná. Foram três shows: Avaré-SP, Ourinhos-SP e Londrina-PR, cidades que ficam na mesma rota geográfica, a obedecer uma coerência no quesito da logística.  

No caso de Avaré-SP, foi uma volta à casa "Ferro Velho", onde já havíamos nos apresentado em duas ocasiões anteriores (2000 e 2001), e não obstante o fato de ser uma casa com proporção pequena e condições de som e iluminação precárias, fora um ambiente bom para a banda, pela história pregressa ali escrita por nós.  

Na semana dessa micro turnê, recebemos a notícia de que o show de Ourinhos-SP, "caíra", como se diz no jargão do show business, e dessa forma, com tal cancelamento, chegou-se a cogitar cancelar toda essa etapa da turnê, pois excepcionalmente, essa fase mostra-se bastante arriscada, financeiramente a falar, visto que tratara-se de três shows a ser em realizados em casas noturnas com pequena proporção. 

E ainda por cima, com a desistência de Ourinhos-SP, ficamos inseguros por haverem somente dois shows sem cachê fixo, a se cobrir as despesas.  

No entanto, as notícias vindas de Londrina-PR, foram muito otimistas e com a perspectiva de uma casa lotada assegurada pela produção local, praticamente esteve paga a despesa operacional para se prover tal etapa da turnê e um eventual lucro viria de Avaré-SP. Sendo assim, mantivemos tudo firmado conforme o combinado e partimos para Londrina-PR, através da noite de 9 de janeiro de 2002, e como quase sempre acontecia nessa etapa da história da banda, acumulamos histórias mais uma vez, sob uma nova investida na estrada. 

A bela e pujante Londrina-PR, cidade onde tocamos muitas vezes

Londrina fica distante de São Paulo, por cerca de quinhentos e vinte Km, portanto, ao viajar no período noturno, fugimos do calor torrencial de janeiro, mas perdemos em agilidade, com a viagem ao ser feita sob uma velocidade mais comedida, por uma questão de segurança. 

Chegamos em Londrina com o amanhecer a pronunciar-se e fomos direto ao hotel Berlim, no centro da cidade. Ao instalarmo-nos, apreciamos a atmosfera antiga do estabelecimento, ao parecer ser uma construção dos anos 1920, mas desistimos de dormir pelo restante da manhã, quando notamos que tal tarefa seria impossível por um motivo prosaico: os quartos que nos foram reservados, ficavam instalados em uma ala próxima a uma avenida com grande movimento.

Estacionamento interno do Hotel Berlim, em Londrina-PR. Foto extraída da Internet e do acervo de Vincoleto Kajão 

Em suma, com aquele barulho oriundo de carros, ônibus e motos em velocidade, com direito a freadas, buzinadas e eventuais gritos permeados por xingamentos, realmente inviabilizou-se o nosso sono matutino e convenhamos, mesmo que houvéssemos dormido por grande parte do trajeto pela estrada, estávamos muito cansados, após cerca de quinhentos e vinte Km percorridos. 

Resolvemos então promovermos um passeio interno pelas dependências do hotel, ao visar apreciar essa atmosfera vintage que remetia aos filmes do Win Wenders, sob uma primeira impressão que eu tive e posteriormente pelas cercanias do mesmo. 

Dentro do estabelecimento, divertimo-nos em descobrir algumas partes do hotel que realmente deram-nos a ideia de que seriam instalações antigas, e recordo-me que o Marcello fez algumas filmagens com uma câmera de formato VHS, cujo produto registrado, um dia poderá aparecer no YouTube, a conter lembranças de bastidores, tranquilamente. 

Sob um passeio pelo centro, a seguir, eu comprei os dois jornais da cidade, e fiquei feliz ao constatar que haviam sido publicadas matérias de página inteira em ambos, a abordar-nos. A reverência com a qual a imprensa local tratou-nos, fora até comovente, de certa forma e nos fez pensarmos o quanto uma banda a carregar nos seus ombros tanta história e tradição como a Patrulha do Espaço, deveria ser tratada sempre dessa forma e em contraponto, o fato de que isso mostrava-se raro, tornava tal atenção, um fato dispare, diante da realidade cultural e midiática brasileira.

Em tais matérias, falou-se a respeito de nossa história, mas também do então momento presente da banda e das perspectivas que tivemos na ocasião, o que foi bastante animador para nós.
Houve um grande mérito nesse específico fato, pois a produção desse show (apesar de que tocaríamos em um bar sob pequeno porte), tratou o evento como se fosse de uma dimensão maior, e daí ter nos fornecido a segurança necessária para termos ido tocar nessa cidade, pois não obstante o fato da casa ser pequena em termos de dimensão física, a projeção da parte do produtor responsável pelo evento, foi de público máximo e com expectativa ansiosa para nos ver em ação.

O produtor do show foi um rapaz chamado: Marcelo Domingues e apesar do sobrenome igual ao meu, não se tratara de um parente de minha parte. Esse rapaz era bastante dinâmico e mesmo ao se colocar como um novato na profissão, mostrara bastante competência e de fato, pouco tempo depois, ele estaria a frente de um Festival independente que ficou famoso no circuito de bandas independentes, chamado: "Demo Sul". Inclusive, a Patrulha do Espaço participaria de uma edição de tal festival nesse mesmo ano de 2012, meses depois, como headliner do evento por ele produzido. 

Almoçamos, descansamos um pouco e fomos fazer o soundcheck no período da tarde. De fato, a casa era bem pequena, mas havia um PA digno para ser usado, que garantiu-nos uma sonoridade confortável para o show. O palco era diminuto, mas já havíamos nos acertado em lugares até menores, anteriormente, portanto, adaptar-nos-íamos. 

Voltamos ao hotel, jantamos e no horário marcado, voltamos ao local para exercermos o show, que aliás, chamava-se: "Valentino", inspirado no ator e galã latino do cinema, dos anos 1920, Rodolfo Valentino.


Quando chegamos ao local, realmente foi animador verificar que a casa estava muito cheia. Uma pena ter sido um espaço tão pequeno, no entanto, o produtor, Marcelo Domingues, assegurou-nos que aquela primeira investida seria uma preparação para algo maior e compatível com a tradição da banda, portanto, resignamo-nos em tocarmos nessa ocasião no pequeno, Bar Valentino, mas ficamos alegres pela acalorada recepção e o show foi quente, do primeiro ao último acorde.

De fato, foi um espetáculo energético, sob muita emoção e sobretudo marcado pela calorosa recepção do público de Londrina. Quando executamos o último acorde da última música e não haveria mais um pedido de "bis", pelo avançar do horário, o público teve uma reação engraçada pois debandou rapidamente do bar, como se estivesse em um teatro. 

Não pareceu-nos comum uma debandada dessas em um ambiente de casa noturna, pois o normal seria terem permanecido no local, pelo menos a grande maioria daquelas pessoas. Mas houve uma razão para tal atitude e só depois percebemos. 

Segundo amigos de Londrina, aquele procedimento era comum ali, por que o público que acompanhava shows autorais comparecia, apreciava o artista e evadia-se rapidamente, pois depois a casa recebia um outro público completamente diferente, interessado em aproveitar a "balada" e paquera, sem música ao vivo. 

E houve mais um elemento nessa dinâmica, pois a nova turma que tomara conta do ambiente, revelara-se como um público gay, predominantemente. Por isso, vimos a debandada do público Rocker, e a chegada de casais gays masculinos e femininos, a lotarem as mesas e a ignorarem a desmontagem do nosso equipamento. 

Nessa etapa da turnê, estivemos desfalcadíssimos, pois o único roadie de fato, Samuel Wagner, ficara doente, e não acompanhou-nos nessa viagem. A nossa equipe que já era reduzidíssima, ficou inoperante, praticamente, pois só tivemos a presença do carrier que estava a viajar conosco e ele não entendia nada das funções de montagem, desmontagem e sobretudo nas práticas de socorros imediatos que todo roadie presta aos artistas, no decorrer dos shows, e assim, a se mostrar absolutamente inadequado para tais funções. Por sorte, nenhuma ocorrência mais grave acometeu-nos, que precisasse de um apoio mais categorizado no palco.

Fomos ao hotel Berlim e enfim pudemos dormir. No dia seguinte, tínhamos mais de trezentos Km para rodar rumo a Avaré-SP, para voltarmos ao nosso estado. 

No caminho para Avaré, o produtor do show de Ourinhos-SP, que havia desistido do show naquela cidade, ligou-nos a lamentar o cancelamento etc. Ele desmarcara a nossa apresentação, porque no mesmo dia, haveria uma festa ao ar livre patrocinada pela Prefeitura da cidade e dessa forma, ele temeu por um fiasco em sua casa noturna, mas a posteriori, foi surpreendido pelo cancelamento de tal festa oficial, pelo mau tempo na cidade e assim, ficou sem o nosso show. Pena mesmo, pois teria sido um prazer tocarmos em Ourinhos... paciência.

Faltou dizer que esse show em Londrina-PR ocorreu no dia 10 de janeiro de 2002, e no Bar Valentino, foi registrada a presença de cerca de cento e cinquenta pessoas, mas acreditem, a casa comportava com certo conforto, apenas cinquenta pessoas, ou até menos, portanto, esteve mesmo superlotada. 

O azar foi mesmo ter sido realizado em uma casa de pequeno porte, pois certamente teríamos angariado um público maior, entretanto, o produtor, Marcelo Domingues, trabalhou dentro de suas possibilidades e ao contrário do aventureiro que nos contratara para um festival mal produzido na mesma cidade, em 2000, este não quis cometer nenhuma loucura. 

O cachê prometido fora módico, mas pagou a despesa da viagem inteira dessa etapa da turnê. A ideia seria ganhar dinheiro com os dois outros shows, mas com a desistência de Ourinhos, esse plano veio terra abaixo. Portanto, a última esperança dessa semana dar-se-ia em Avaré-SP, mas houve um quase impedimento para que isso se concretizasse a contento e nós sabíamos desde o princípio: em Avaré, a casa "Ferro Velho" era pequena, e para obter-se um resultado financeiro razoável precisava superlotar as suas dependências, como ocorrera em Londrina.


Saímos de Londrina pela manhã, mas não tão cedo, pois estávamos muito cansados, por que havíamos aberto mão de tentarmos dormir um pouco na chegada no dia anterior, devido aos problemas de barulho que enfrentáramos no hotel, esta a se localizar à beira de uma avenida com tráfico intenso.  

O produtor desse show em Londrina foi bastante consciente de todo o processo e nós sabíamos que não reunira mesmo condições para nos oferecer melhores condições diante de um quadro em que o melhor possível foi nos colocar para tocarmos em uma casa sob pequeno porte.  

Contudo, ficamos apalavrados para cumprirmos uma volta em Londrina em um futuro não muito distante e sob circunstâncias mais favoráveis. E de fato isso ocorreu e no momento oportuno, falarei a respeito.  

Seguimos viagem e como eu já mencionei, o produtor do show de Ourinhos ligou no celular, mas foi apenas para lamentar o cancelamento do espetáculo e nesse aspecto, quando entramos de novo no estado de São Paulo, ao deixarmos o norte do Paraná, nós também lamentamos quando avistamos a cidade de Ourinhos, às margens da estrada.  

Chegamos em um bom horário na cidade de Avaré-SP, e mesmo só com a presença de um carrier nada preparado parta nos ajudar a não ser no trabalho braçal, nós montamos rapidamente o pequeno palco da casa noturna, "Ferro Velho", aonde tocaríamos pela terceira vez. 

Tivemos novamente o apoio dos amigos, Dárcio e Marcos Cruz, que auxiliaram-nos muito nas duas passagens anteriores que tivemos naquela cidade, mas eles mesmos se mostraram um tanto quanto desanimados quando os encontramos durante o nosso soundcheck.  

Fora uma circunstância diferente mesmo e nesse quesito, o Junior ainda tinha a dinâmica sessenta-setentista enquanto manager, a respeito do trabalho permeado pela labuta acumulativa do artista, que a cada visita em uma cidade, mais público angariava por consequência natural. 

Eu desconfiava dessa estratégia estar ultrapassada e muitas vezes deparamo-nos com um eventual segundo e terceiro show no mesmo local, com resultado prático em termos de público, muito aquém do primeiro. Isso contrariava a lógica empresarial "old school", pois nos tempos modernos da Internet a se popularizar, a tendência seria o público comparecer uma vez para assistir o artista em ação e não interessar-se em vê-lo novamente, tão cedo.  

Claro que eu achava isso triste, por vários motivos. Ao analisar como artista, foi óbvio que achara isso terrível e na contramão, desejava mesmo poder estabelecer temporadas fixas em teatro, de quarta a domingo, com direito a sessão maldita no sábado e matinê no domingo, como extras. 

Mas a realidade dos anos 2000, desenhara uma juventude cada vez menos interessada em cultura e iconoclasta ao extremo, portanto, a concepção antiga de se formar-se um séquito fiel, não existia mais, lamentavelmente. Portanto, sob judice, o show em Avaré-SP, tornara-se temerário nesse aspecto e pela desanimação de nossos amigos, Dárcio e Marcio, creio que não tivemos motivos para nutrir uma grande esperança em relação ao show em si, naquela noite.  

E não deu outra... de fato, o semblante preocupado expresso nas feições faciais dos amigos, Dárcio e Marcos, já prenunciara que a noite não seria coroada com a casa cheia, e assim ocorreu, com apenas sessenta pessoas presentes, ao destoar das ocasiões anteriores em que ali apresentamo-nos, com um público mais substancial.  

O show foi morno, confesso. Estávamos com meia força naquela noite, pois o cansaço físico acumulado mostrara-se grande e o fato dessa etapa da turnê ter gerado apenas uma renda para cobrir as despesas operacionais, mexeu um pouco com o nosso ânimo psicológico.  

Todavia, foram os "ossos do ofício" e na vida de qualquer artista, isso sempre foi algo muito comum, ainda mais para artistas como nós, acostumados a lidarmos com a realidade áspera do mundo extra mainstream. No underground, a realidade foi/é essa, e revés financeiro se mostrava como algo corriqueiro, aliás, mais usual do que raro.  

Bem, claro que tocamos com respeito aos sessenta fãs que ali compareceram, mas a energia com um público pequeno era sempre mais diminuta, independente do profissionalismo que todo artista tem a obrigação de exercer no palco. 

Foi o dia 11 de janeiro de 2002, no Bar Ferro Velho, da cidade de Avaré, no interior de São Paulo. Essa etapa da turnê foi sofrida também pela falta de um apoio técnico. Sem um roadie mais experiente, restou-nos apenas contarmos com um carrier sem noção alguma e isso certamente nos cansou também.  

A próxima etapa da turnê foi uma aventura e tanto. Viajaríamos para o Rio Grande do Sul, para exercermos três shows em três cidades gaúchas: Bento Gonçalves, São Leopoldo e Porto Alegre. Essa viagem rendeu inúmeras histórias, que contarei a seguir!

   

Nessa etapa, tivemos uma viagem cansativa, de fato, para atravessarmos os três estados do sul do Brasil. Não somente por conta do cansaço adquirido pela longa jornada que estaria em jogo, mas seria um teste e tanto para o nosso ônibus. Será que ele aguentaria uma viagem com de mais de dois mil Km, sob o sol ardente do verão? Bem, não tivemos uma outra alternativa a não ser apostar no bólido, não é mesmo?

Partimos então para a nossa primeira turnê pelo Rio Grande Do Sul, com essa formação, pois a Patrulha do Espaço mantinha uma forte tradição naquele estado, desde a época de seus primórdios, nos anos setenta. E nesse caso, é claro que esse carinho do público Rocker gaúcho para com a Patrulha do Espaço, haveria de ser um fator de esperança para nós, em tal nova investida. 

O nosso primeiro alvo foi a cidade de Bento Gonçalves-RS, localizada na Serra Gaúcha, com um show a ser cumprido em uma casa noturna, na sexta-feira. Haveria um show em Caxias do Sul-RS, cidade próxima, no sábado, mas este fora cancelado, infelizmente, ao deixar-nos sem atividade para esse dia, mas no caminhar da turnê, nós aproveitamos bem tal pausa forçada, conforme contarei a seguir. 

No domingo, a apresentação seria em São Leopoldo-RS e na segunda-feira, o show ocorreria na capital gaúcha, em Porto Alegre. 

Saímos de São Paulo na quinta-feira, logo após o almoço, ao visarmos estabelecer uma viagem tranquila, sem correria, com planos para estacionarmos em algum lugar entre o Paraná e Santa Catarina, para dormirmos e daí a prosseguirmos no dia seguinte, com tranquilidade.

O calor revelara-se bem forte e apesar dos estados do sul serem tradicionalmente os mais frios do Brasil, com invernos rigorosos quase dentro no padrão europeu, o verão é tórrido também por lá e nesses termos, não poderíamos forçar o ônibus em uma jornada tão quente. 

O primeiro trecho entre São Paulo e Curitiba é normalmente bastante tenso, com muitos caminhões a atravessarem um longo trecho de serra, pelo qual a velocidade seria reduzida para um ônibus velho, sem motor turbo, caso do nosso bólido. 

Logo após a fronteira com o Paraná, decidimos parar em uma estalagem na beira da estrada. Não foi uma lanchonete de posto de gasolina, mas a se tratar de uma exótica casa encravada sob uma encosta da serra, a parecer um saloon de velho oeste norte-americano. 

Ali nós renovamos as forças ao refrescarmo-nos com bebidas geladas e definitivamente estávamos fora de São Paulo, ao ouvirmos o forte sotaque paranaense emitido pelos funcionários da casa, com a nítida influência do idioma polonês na sua maneira de pronunciar as palavras. 

Seguimos em frente e logo avistamos a cidade de Curitiba, pois quem conhece aquela região, sabe que logo que se cruza a fronteira entre os dois estados, a capital paranaense não tarda a aproximar-se, com poucos Km de percurso.

Nesse momento, o Rolando Castello Junior nos contou as suas reminiscências sobre quando morara em Curitiba, a destacar diversos aspectos da cena artística local nos anos noventa etc. E que bela visão é Curitiba, uma metrópole vistosa, com ares americanizados pelo lado positivo de tal comparação, logicamente, vista de uma forma panorâmica pela estrada, en passant.

Contudo, nós nem entramos na capital paranaense. Seguimos em frente pela BR 116, sob uma linha reta em direção a Porto Alegre, onde existe a bifurcação logo após Curitiba, quando é possível trocar de estrada e prosseguir pela BR 101, rumo a Joinville, em Santa Catarina, e que dá acesso também à Florianópolis. 

É possível igualmente se chegar em Porto Alegre por tal estrada litorânea, mas a volta é maior, apesar do caminho ser muito mais bonito, pois esta via possui grandes trechos a margear o mar de Santa Catarina e do próprio, Rio Grande do Sul. Porém, não estávamos a turismo e portanto, a opção mais objetiva foi seguir em frente, ao descer em linha reta pelo Paraná, em direção a Santa Catarina. 

Por volta das nove horas da noite, o nosso motorista pediu para parar, pois alegou estar no seu limite cognitivo, fatigado. Claro que acatamos e o apoiamos. Não houve motivo para corrermos mais riscos com o motorista bastante cansado e a noite já em alto curso.

Paramos na pequena cidade de Mafra, em Santa Catarina, e dormimos em um hotel de beira de estrada, que apesar de ser simples, mostrara-se muito organizado e confortável, ao surpreender-nos, positivamente. 

Combinamos no saguão de sairmos bem cedo, por volta das seis horas da manhã, para não sermos surpreendidos com alguma eventualidade a ocorrer da estrada. 

O ônibus seguia bem, sem nenhum problema e por sairmos cedo, chegaríamos em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, na metade da tarde, sem problemas, para irmos direto para a casa noturna aonde tocaríamos, para descarregar o nosso backline e realizarmos o soundcheck.

Um problema interno gerado pelo motorista, revelar-se-ia uma pequena bomba relógio com hora para detonar, infelizmente. Dias antes da viagem ele comunicara-nos que gostaria de levar consigo a sua esposa e filho pequeno, na viagem. Ele nos disse que seria uma oportunidade boa de passar um tempo prazeroso com sua família, e também que a sua esposa e filho não conheciam o sul do país etc. 

Claro, ele nos consultou previamente ao esperar pela aceitação de nossa parte, pois apesar de ser sócio do ônibus, ele sabia bem que o objetivo do uso do carro sempre foi empreender viagens de turnê de uma banda de Rock, ou seja se tratava de trabalho para nós e não turismo.

Contudo, na base da camaradagem, claro que aceitamos a sua reivindicação, mas não ponderamos em contraposição, o que poderia ser constrangedor para nós, e para a própria família do motorista. Aquilo era um ônibus de uma banda de Rock e não uma excursão de turismo, reitero... então, é claro que conflitos aconteceriam e seria apenas uma questão de tempo para saber quando iniciar-se-iam...

Na primeira etapa da viagem, o clima foi suportável, mas claramente houve um constrangimento mútuo entre a banda e os convidados especiais de última hora. 

Com exceção do menino, que diante de sua inocência infantil, interagiu conosco com bastante desenvoltura, ao brincar e assistir os nossos guitarristas a espantar o tédio da viagem com um show acústico aos violões & flauta, em vários momentos da jornada. 

Em contrapartida, a mãe do menino e o dublê de roadie que o motorista trouxera para fazer parte de nossa equipe técnica, desde o fim de 2001, colocaram-se na posição de segregados de nós, a confabularem entre si, na parte da frente do ônibus, o tempo todo, e mediante expressões faciais inamistosas para nós. 

Enfim, se ficasse apenas por esse clima velado, tudo bem, mas os constrangimentos piorariam bastante em questão de horas. Contudo, eu falo mais sobre isso no momento adequado da narrativa. 

Por volta de duas da tarde, nós já estávamos a trafegar pelo território gaúcho, ao passarmos pela cidade de Vacaria-RS. Saímos da BR 116 e sob uma estrada vicinal estadual gaúcha, seguimos rumo à Bento Gonçalves, a apreciarmos as belas paisagens. 

Quase fomos multados por absoluta ignorância de nossa parte, pois não sabíamos, mas nas estradas gaúchas existiam controladores de velocidade escondidos em pontos estratégicos, e que por lá tal artefato punitivo eram chamado como: "pardalzinho".

Isso dava-se por causa do ruído provocado pelo sensor que emitia um som semelhante à de tais pássaros. Não aconteceu conosco a ocorrência de uma multa nesses termos, por um triz. 

Chegamos em Bento Gonçalves-RS por volta de 15:30 horas e decidimos nos dirigir diretamente para a casa onde apresentar-nos-íamos, embora o soundcheck estivesse marcado para as 17:00 horas, apenas.

Encostamos o ônibus na porta e ligamos para a produtora da casa, para comunicar-lhe a nossa chegada e solicitar-lhe que viesse abri-la, antecipadamente, visto que chegáramos bem antes do horário estabelecido. 

Fizemos o soundcheck com tranquilidade e ficamos satisfeitos com as condições sonoras da casa. Tratava-se de um estabelecimento bem montado, mas pelo que apuramos, híbrido. Não se observava nenhum critério artístico em sua constituição, pois a mistura de atrações díspares que ali promovia geralmente, caracterizava mais uma falta de noção do que um suposto ecletismo. 

Bandas cover e autorais misturavam-se sem nenhuma cerimônia e pior ainda, estilos muito diferentes mesclavam-se no palco. Bandas de pagode, Pop-Rock, Axé Music, folclore gaúcho etc. Bem, não seria a primeira vez que tocaríamos em uma casa dessas características, mas confesso, não era normalmente agradável e estimulante para nós, quando acontecia. 

Como parte da intrincada logística para garantir-se que uma turnê desse certo, para uma banda fora do patamar mainstream como a nossa, era válido, no entanto. Muitas vezes, shows realizados em lugares não muito adequados ajudavam a garantir o restante da turnê, financeiramente a se destacar, como um fator de realidade irrefutável. 

Encerrado o soundcheck, nós fomos enfim para o local no qual ficaríamos hospedados por dois dias, visto que o show na cidade de Caxias do Sul-RS houvera sido cancelado. Ali, tivemos duas notícias: uma ótima e uma má.

Instalamo-nos, e aí a ótima nova foi que tratava-se de uma chácara afastada do centro da cidade, muito bem cuidada e confortável, que nos fora cedida graciosamente pelo guitarrista, Evandro Demari, que era amigo do Rolando Castello Junior, há muitos anos e quando ele soube que iríamos para o sul, prontificou-se a convidar-nos para hospedarmo-nos em silvestre acomodação. 

Tal propriedade era de sua família, para o uso em regime de veraneio, mas também continha uma ampla videira que produzia bastante uva para a indústria vinícola da cidade, que aliás, era (é) a base da economia local.

Tanto que a chácara ficava localizada muito próxima das instalações de uma famosa vinícola, que abastece o mercado nacional e para os enólogos e entendidos em geral, trata-se de um dos melhores vinhos nacionais. 

A chácara era muito confortável e o nosso anfitrião, extremamente simpático e solícito. A sua família foi muito hospitaleira e veio nos conhecer, ao abastecer a despensa e a geladeira da casa, e além disso, ofertou-nos garrafões com vinho e muitos cachos de uva, in natura, quando fomos embora dali, no domingo. 

Aliás, foi uma quantidade absurda de uva, que suprir-nos-ia pela turnê toda e pelo volume, certamente que nós chegaríamos em São Paulo com uma ampla sobra desse montante para a divisão total entre todos os participantes da nossa comitiva. 

Todavia, uma ação sabotadora ocorrida dois dias depois em Porto Alegre, impediu isso, e na hora oportuna desta narrativa, eu relatarei os fatos lamentáveis que fizeram com que as uvas fossem inutilizadas. 

Bem, após um breve período de descanso, banho reconfortante e jantar, fomos para o show. Um amigo do Evandro Demari, saxofonista, nos foi apresentado e o Rolando Castello Junior de pronto o convidou para uma participação de improviso e ele aceitou, ainda que a relutar um pouco por se sentir inseguro em relação à sua participação. 

A ideia básica foi que ele tocasse conosco através de um solo em "Sunshine", e nós o tranquilizamos, pois seria um "looping" bem simples para ele executar ao final da música, com poucos acordes para decorar o mapa harmônico da canção.

A casa de shows em que tocaríamos, chamava-se: "Boulevard".
Era bem montada e na verdade, era uma boite a servir a burguesia local, nem um pouco preocupada em fomentar arte & cultura, mas apenas a prover entretenimento, ambiente para bebedeiras, paqueras etc.

Quando chegamos, a casa já continha um grande público no seu interior, mas foi nítido que seria um show burocrático, sem interação com o público. Para intensificar essa percepção, o som mecânico que tocava naquele instante, mostrara-se híbrido e disparatado. Tocava-se um pagode, e a seguir, uma música sertaneja, depois um som Pop internacional de gosto lamentável, baseado no R'n'B conspurcado e modernoso norte-americano de então, e "música" eletrônica; a gerar uma salada de frutas indigesta e nesses termos, o nosso show de Rock autoral poderia ser um fator insuportável para aquele público nada preparado para receber-nos. 

Por incrível que pareça, nos mantivemos resignados com tais disparidades ali apresentadas, por já termos enfrentado situações análogas, anteriormente, portanto, não seria algo insuportável para se cumprir. 

No entanto, o que estragou mesma a nossa noite, não foi o show em si, mas um empecilho criado pelo sócio/motorista e endossado pela sua comitiva pessoal. Falo sobre isso, logo mais.


Quando já nos colocamos no palco, preparados para entrarmos em cena, o som ambiente da casa estava sob um volume inacreditável, a tocar uma música ao estilo de um pagode Pop, desses típicos de emissora de rádio FM. 

O público dançava animadamente e a impressão que tivemos foi que seria um choque térmico substituir um som de pagode, tocado mecanicamente, por uma banda de Rock a executar ao vivo, e nesse breve momento tememos pelo pior, pois dificilmente o PA ajustado para nós tocarmos ao vivo, teria a mesma pressão sonora e o segundo ponto: tocaríamos músicas autorais e certamente desconhecidas daquela plateia. E não deu outra, foi um choque térmico, de fato, mas curiosamente sem notarmos hostilidade da parte do público, ainda bem.

Realizamos o nosso show normal, sem nenhuma adaptação especial para agradar uma plateia não preparada para a nossa música. O tal saxofonista convidado tocou conosco ao estabelecer a sua participação especial e foi bem na sua atuação. 

O show foi concluído dentro de sua normalidade e saímos dali com a sensação do dever cumprido. 

O problema, contudo, esteve com uma crise instaurada entre a banda, e o sócio/motorista & sua comitiva. Ao alegar que nós estávamos "a tratá-los com desdém", estes recusaram-se a usar as dependências da chácara onde hospedáramo-nos, e ao rebelarem-se contra a banda, decidiram dormir em um hotel, no centro da cidade, separados da nossa comitiva

Ocorria que as instalações da chácara eram amplas e super confortáveis, prontas para abrigar a todos com total tranquilidade, todavia contaminados por uma percepção totalmente descabida e vinda sabe-se lá de onde, ele achavam que nós os desprezávamos, e não queriam portanto prosseguirem conosco, por sentirem-se ofendidos. 

Ora, ninguém a representar a nossa banda, em momento algum, os destratou. O que ocorreu, e se tratou de algo natural, foi que durante a viagem, a comitiva do motorista concentrou-se na parte da frente do carro, junto ao banco do condutor e ali nesse compartimento do carro, conversaram entre si o tempo todo e a banda (mais o roadie, Samuel Wagner), ficou instalada na parte do meio para trás, mas isso foi encarado por nós como uma divisão natural, meramente ocasional das circunstâncias da viagem. 

A contradizer tal percepção errônea da parte deles, por exemplo, nas paradas em meio à viagem, nós havíamos interagido normalmente com todos, ao nos sentarmos todos juntos na mesa para efetuarmos as refeições etc. Portanto, muito nos surpreendeu tal "rebelião" causada pelo motorista, pois não contivera nenhum cabimento tal argumentação dele e de seus pares.

A nossa argumentação de que não haveria motivo algum para tal reclamação, não surtiu efeito. Exaltado, ele manteve o seu discurso equivocado ao afirmar estar "ofendido" com a nossa postura e que estava a avaliar a sua posição para continuar na turnê, ou seja, ameaçou voltar para São Paulo, imediatamente, para deixar-nos sem transporte doravante, com o equipamento na estrada.

Claro que foi um absurdo tudo isso, mas houve o elemento político por trás dessa ameaça. Com tal atitude, ele desejou na verdade nos deixar acuados e talvez assim a se sentir apto a reivindicar mudanças na parceria, ao projetar que ficaríamos apavorados com a perspectiva de sua ameaça, vir a se concretizar. 

Claro que ficamos chateados com tal situação, mas fomos dormir tranquilos na chácara, após o show, a pensarmos que no dia seguinte, que seria marcado pelo descanso para a banda, a situação resolver-se-ia, quando o ânimo estivesse menos acirrado. 

O show na casa Boulevard ocorreu no dia 18 de janeiro de 2002, com cerca de quinhentas pessoas presentes no estabelecimento. O dia seguinte rendeu história, apesar de ser teoricamente um dia livre para a banda em meio à continuidade da turnê.

 

O dia de descanso que tivemos na chácara da família do Evandro Demari, foi um verdadeiro "spa" regenerativo para nós. Apesar do clima tenso orquestrado pelo motorista e apoiado por sua comitiva particular, nos colocamos alheios às suas bravatas, e sabíamos que ele pronunciar-se-ia a qualquer momento para resolver o impasse. 

Enquanto aguardávamos a manifestação do rapaz, descansávamos e aproveitávamos a estrutura da chácara. Lembro-me de ter sido promovido uma partida de futebol animada no campo bem estruturado que ali havia disponível, o uso da piscina, muita uva colhida in natura, na enorme videira da propriedade, muita música etc.

Por volta das 17:00 horas, nós recebemos o telefonema do motorista, ao comunicar-nos que havia tomado a decisão de voltar imediatamente para São Paulo e que passaria na chácara apenas para deixar o nosso equipamento ali e partir. 

Então ele chegou e certamente surpreendeu-se, pois a nossa postura foi a de continuar a jogar bola no campo, com outros da comitiva a aproveitaram a piscina e com ninguém ali entre os nossos a demonstrar estar preocupado com a sua bravata descabida. 

Assim, mediante uma conversa franca, onde a ponderação de bom senso prevaleceu de nossa parte, ele felizmente permaneceu quieto ao nos ouvir sem tentar a contra-argumentação e assim nós o destituímos da falsa impressão de que haveria um suposto desdém de nossa parte por ele, sua família e pelo carrier, que era o seu fiel escudeiro. 

Mostramos para eles que não houve nenhum cabimento para que pensassem em contrário e que estes deveriam usufruir da estrutura da chácara, e não segregarem-se em um hotel e ainda por cima a gastar dinheiro do bolso.

Enfim, a contragosto, ele aceitou nossa argumentação, mas com o semblante fechado, como se o seu orgulho fosse maior que a razão. Nesse caso, o que poderíamos fazer? 

Bem, nessa altura o seu filho que devia ter algo por volta de quatro ou cinco anos de idade na época, já estava a se divertir na piscina, a brincar com uma bola e assim a interagir conosco, o que provara que o clima era fraterno e só ele, o motorista no alto da sua errônea interpretação dos fatos, houvera detectado o suposto "desdém" de nossa parte, e daí ter contaminado a sua esposa e o carrier. A sabedoria da criança, através de sua ingenuidade, falou mais alto. 

O resto do dia foi aproveitado em torno da recuperação da relação azeda, mas a verdade foi que nunca mais acertamo-nos e não só por conta desse episódio, mas por uma série de acontecimentos somados, a nossa insatisfação para com ele, inviabilizou a parceria doravante.

O sujeito tentou criar esse clima para estabelecer um certo domínio da situação e nós não poderíamos ficarmos em suas mãos, sob coação, ao aceitarmos tal procedimento. Então, a "luz amarela" acendeu nesse dia, mas a verdade foi que a relação já vinha a azedar desde algum tempo. 

Daí em diante, nós começamos a cogitar a hipótese de comprar a sua parte na sociedade e assumirmos o veículo só para nós. Claro que acarretar-nos-ia muita dor de cabeça inerente com tal responsabilidade, mas a perspectiva de não ficarmos à mercê de chantagens baratas como a que enfrentamos, foi bastante animadora por outro lado.

                             A bela Bento Gonçalves-RS

Bem, com o dia livre em curso ainda, todo mundo quis passear por Bento Gonçalves, após o jantar. De fato, trata-se de uma cidade muito boa, com uma infraestrutura excelente e forte identidade cultural regional, como acontece em todo o estado do Rio Grande do Sul. 

Somente eu mesmo, não quis sair a noite, ao preferir ficar no conforto da chácara. No dia seguinte, domingo, acordamos tarde e partimos na hora do almoço para a segunda cidade da turnê. 

A distância entre Bento Gonçalves-RS e São Leopoldo-RS é bem pequena e dessa forma, não houve a necessidade de sairmos cedo, mesmo por que, o soundcheck na casa onde apresentar-nos-íamos, nessa segunda cidade citada estava marcado somente para o final da tarde do domingo, portanto, teríamos tempo de sobra. 

Deu para pararmos na estrada, para uma exótica sessão de fotos sob uma carcaça de avião que servia de enfeite para um posto de gasolina, nas proximidades de Caxias do Sul-RS. Temos até uma filmagem de bastidores com essa parada, e um dia será disponibilizada, em DVD, ou direto no YouTube.

Chegamos em São Leopoldo-RS por volta das 15:00 horas e logo o nosso contato na cidade, apareceu. Tal rapaz chamado, Luciano Reis, era um fã da banda e músico também, sendo que a sua banda faria o show de abertura, naquela noite. 

Ele se desdobrou para nos proporcionar as melhores condições possíveis, e tornar-se-ia um grande amigo da banda, doravante, não só por essa atividade, mas como em diversas outras ocasiões em que fomos ao sul. 

Esse show seria o oposto do espetáculo que fizéramos na sexta-feira anterior, em Bento Gonçalves-RS, pelo bem e pelo mal. Pelo aspecto do bem, apresentes naquela casa noturna, nós teríamos um público Rocker, quentíssimo em São Leopoldo-RS. Pelo mal, a casa em que tocaríamos se mostrava muito simples, e a infraestrutura para nos proporcionar condições para trabalharmos, muito precária.

Luciano Reis, o nosso valoroso anfitrião e produtor local improvisado, era bem jovem e de fato, assim que apresentou-se, eu lhe perguntei se ele seria o produtor local do show e ele riu, ao dizer-me não ser um produtor profissional, mas apenas um fã e músico, e que ocasionalmente ajudara na operação logística por conhecer bem a cena da cidade. 

Apesar de jovem e ao enfatizar que não era um produtor profissional, o fato é que na base da boa vontade e intuição, o Luciano não mediu esforços para proporcionar-nos as melhores condições possíveis e nesse caso, tudo lembrou-me a produção do show que fizéramos em São Carlos, no interior de São Paulo, meses antes, quando a estrutura da casa onde tocamos fora precária, e graças ao improviso dos Rockers locais, tudo viabilizou-se, ainda que sob uma forma muito inadequada. 

Fazia um calor inacreditável quando chegamos a São Leopoldo-RS.

Cheguei a brincar com o Luciano, ao lhe perguntar se ali seria mesmo o Rio Grande do Sul, ou tratava-se do Mato Grosso, Goiás ou outros estados onde o calor era (é) normalmente tórrido? 

Apesar do sul deter invernos muito rigorosos ao padrão europeu, com até ocorrências de nevascas, eu sabia que o verão gaúcho era igualmente rigoroso, e comparável aos estados setentrionais que eu citei, acima. A casa onde apresentar-nos-íamos, chamava-se: "BR-3".

Deve ter sido, ao menos na minha percepção inicial, uma clara alusão à música do Toni Tornado que fez sucesso no ano de 1970. 

Tratava-se de um pequeno bar com ares de salão de Rock, muito rústico, simples mesmo. O equipamento de PA existente no local, era precaríssimo. Para alimentar o som mecânico ambiente, dava para o gasto, mas para produzir um show de Rock, não havia nenhuma possibilidade. Nesses termos, o Luciano e com o devido apoio da sua rede de amigos Rockers, locais, mobilizou-se e assim se reforçou o equipamento com várias peças avulsas, ao transformá-lo em um autêntico PA ao estilo de um autêntico "Frankenstein".

Porém, se ainda foi tudo precário, ao menos nós garantimos as condições mínimas para poder tocar. O tamanho do palco seria um outro problema e tanto a ser equacionado. Absolutamente minúsculo e bem alto, deu-nos uma sensação de insegurança bem grande para nós. 

O Rolando Castello Junior, por exemplo, montou a sua bateria em um espaço enviesado para ganhar espaço e dessa forma, o seu banquinho da bateria ficava a milímetros de um vão entre o palco e uma porta de emergência que dava acesso à rua. Estranha porta de emergência, por sinal, pois ao se colocar obstruída pelo palco de madeira, na hipótese de um tumulto, o Júnior teria em tese um meio escape para a rua, sem dúvida...

O dono do bar era um hippie da velha guarda, um sujeito gentil, mas completamente "spaced". Era uma figura folclórica em suma e todo mundo na cidade o considerava como um personagem local, pelo que percebemos. 

Esse rapaz era conhecido pelo apelido de: "Biba", mas no sul tal apelido não pareceu conter conotação com a homossexualidade como ocorre em outras regiões do país, pois ninguém tecia brincadeiras maliciosas óbvias quando o citava. 

Além de mostrar-se prolixo, esse rapaz fazia colocações absurdas, ao contar "causos" mirabolantes e no decorrer das poucas horas em que convivemos, emitiu várias sugestões bizarras para a Patrulha do Espaço empreender como aparato em nossos shows, em termos de cenários e efeitos, e claro que provocou muitas risadas da parte de todos. 

Aos trancos e barrancos, conseguimos nos ajeitarmos no palco. Desconheço fotos desse show, mas sei que existem filmagens dos bastidores e trechos do show, que um dia serão disponibilizadas na Internet. Gostaria de rever tais imagens para constatar como conseguimos montar o palco com tão pouco espaço. 

O som ficou "setado" (do inglês, "set up"), no melhor padrão possível diante das circunstâncias de uma infraestrutura precária e por volta das 18:00 horas, nós fomos para a casa do Luciano, onde passamos momentos agradáveis sob a sua hospitalidade sensacional, quando desfrutamos da audição de discos de vinil, muito agradável, proveniente de sua vasta coleção. 

Ouvimos com prazer, entre outros discos, o som do "Mandrill", que beleza!

Se o leitor não conhece, recomendo que ouça o som do "Mandrill", cuja capa de um de seus LP's, está acima 

Ele era também luthier e nos mostrou a sua pequena oficina, onde costumava trabalhar no ofício ao restaurar instrumentos de corda etc. Ele fez questão de checar a regulagem de oitavas das guitarras do Marcello e Rodrigo, além dos meus baixos, também. 

E cometeu uma loucura diante de nossos olhos, que nos surpreendeu: eis que ele apanhou uma de suas guitarras (acho que era uma Ibanez), e pediu para o Rolando Castello Junior deixar uma assinatura em seu corpo. Daí, em cima da assinatura feita com caneta, ele fez uso de uma ferramenta de marcenaria e tratou de esculpi-la a talhos no corpo da guitarra! A sua banda abriria o evento e tratava-se de um Black Sabbath Cover, chamada: "Sabbra Cadabbra".

Exatamente como estávamos a pressentir que aconteceria, o show ferveu! Ora, como foi bom tocar para uma plateia que sabia exatamente quem você era, e ansiava por aquelas canções!

Como no melhor das tradições de um show de Rock a moda antiga, o público vibrou só por nos ver a subirmos ao palco para tomarmos posicionamento ao apanharmos os instrumentos. 

Foi outrossim, uma plateia antenada, Rocker e Freak, na melhor acepção do termo. Assim que os primeiros acordes da canção: "Não Tenha Medo", foram tocados pela guitarra do Marcello, o público incendiou-se, e na primeira virada do Junior, antes mesmo de iniciarmos o vocal, urros foram emitidos e aliás, esse sempre foi um termômetro que tivemos em nossos shows, pois quando nesse começo de show, ouvíamos urros de regozijo nessa virada da bateria, sabíamos que estávamos diante de uma plateia Rocker genuína, que entendia o que estava a ocorrer ali no palco, perfeitamente, visto que uma plateia leiga, não valorizava uma virada de bateria milhas acima da média, vinda de bateristas comuns. 

Só por esse detalhe velado, percebíamos que haviam Rockers no público e quanto maior o urro de satisfação, mais animávamo-nos, visto que a sinergia seria total, durante o decorrer do show inteiro.

E mais uma vez na turnê, constatávamos uma espécie de azar, eu diria, por que em shows realizados em casas de melhor infraestrutura, geralmente encontrávamos uma plateia "não iniciada" nas tradições do Rock, e que pior que isso, mal sabia quem éramos e que a nossa banda possuía uma longa história dentro do Rock brasileiro, vinda de uma árvore genealógica nobre.

Em contrapartida, mostrara-se curioso que geralmente em casas com estrutura modesta, ou mesmo ruim, deparávamos com plateias quentes, a saber exatamente quem éramos, sobre a nossa história e a respeito da nossa linhagem dentro do Rock nacional. 

A lamentar-se apenas que sob tal equação, tal realidade prejudicava indevidamente a nossa performance, ao tocarmos com o suporte de um PA inadequado e ausência de uma iluminação decente, justamente para quem merecia assistir-nos & ouvir-nos, com as melhores condições técnicas, possíveis. 

Bem, promovido o desabafo em ritmo de constatação ou vice-versa, relato que o show foi sensacional, do começo ao final, com vários picos de euforia. É muito gratificante para qualquer artista, olhar nos semblantes das pessoas alojadas na plateia e verificar que estão emocionadas e foi exatamente isso que eu vi na maioria das faces que mirava, no calor da nossa mise en scène. 

A euforia foi tanta, que arriscamo-nos a realizar um improviso de última hora, ao tocarmos um pedaço da música: "Sociedade Alternativa", do Raul Seixas, quando estabelecemos uma brincadeira com o proprietário da casa, o tal "Biba". Cantamos no refrão: "Viva, viva, viva o Biba e a sua cabeça alternativa"...

Quando surpreendemos o público com o riff de "In a Gadda da Vida", do Iron Butterfly, a casa ruiu, com gente a pular de alegria, como se comemorasse um gol, no estádio de futebol. Os temas mais progressivos fizeram o público vibrar, também. 

A cada demonstração de ecletismo dos nossos guitarristas, ao trocarem de instrumentos o tempo todo, igualmente, e esse seria um trunfo que somente plateias Rockers, poderiam mesmo valorizar. 

Em suma, esse show em São Leopoldo-RS, foi um dos melhores que havíamos feito até então, desde o início dessa formação em 1999, com uma sinergia incrível. 

Quando encerrou-se o espetáculo, o assédio foi total, pois naquelas dependências muito simples, com ausência de camarim, foi realmente inevitável a aglomeração, mas não me queixo e pelo contrário, guardo com bastante carinho essa lembrança das pessoas a nos cercar para pedir autógrafos em discos, ou em pedaços de papel, com muita simpatia.

Demorou para a adrenalina abaixar e o calor no recinto foi imenso. Aconteceu com cerca de duzentas pessoas confinadas em um espaço que era adequado para cinquenta, talvez setenta, no máximo. A nossa sorte foi que estávamos descansados, pois o dia anterior fora gasto sob lazer total na cidade de Bento Gonçalves, conforme eu já relatei anteriormente. 

Descansamos e nos programamos para sairmos cedo, no dia seguinte para Porto Alegre, aonde faríamos o terceiro show no Rio Grande do Sul, pois teríamos compromissos em órgãos de imprensa, pré-agendados para cumprirmos. 

Visitaríamos a cidade de São Leopoldo-RS, outras vezes e gostamos tanto de tocar lá, que incluímos o seu nome em uma letra de música composta posteriormente, quando lançamos em 2004, o CD "Missão na Área 13". 

Na música: "Rock com Roll", citamos "São Leo" (São Leopoldo-RS) e "Sanca" (São Carlos-SP), duas cidades que sempre receberam-nos com um calor Rocker acentuado. Chapecó-SC e São José do Rio Preto-SP, também seriam citadas na letra dessa canção. 

Foi o dia 20 de janeiro de 2002 e haviam cerca de duzentas pessoas presentes no minúsculo Bar BR-3. Dali em diante nós pudemos afirmar: "vou para Porto Alegre, tchau"...

Acordamos bem cedo, pois apesar de São Leopoldo ser uma cidade satélite de Porto Alegre, teríamos que enfrentar um razoável percurso sob tráfego pesado, ao passar por outras cidades muito próximas da capital gaúcha, como Viamão e Canoas por exemplo, e o trânsito ali, em um dia útil, costumava ganhar o contorno dos engarrafamentos monstruosos, no sentido de Porto Alegre. 

Estávamos muito satisfeitos com a performance da noite anterior, mas arrebentados fisicamente, pois as condições com as quais atuamos no palco minúsculo Bar Br-3, foram difíceis em todos os aspectos, e tal dificuldade subtraíra-nos bastante energia. 

Já no caminho para Porto Alegre, de fato, enfrentamos um trânsito considerável e fomos direto para a casa noturna onde apresentar-nos-íamos, ao cumprirmos o nosso planejamento a seguir, para descarregar o equipamento ainda na parte da manhã, e o produtor do show ali encontrar-nos-ia para conduzir-nos em duas entrevistas que faríamos: uma na TV Bandeirantes e a outra na emissora de rádio, Ipanema FM. 

O guitarrista e produtor do show em São Leopoldo-RS, Luciano Reis, viajou conosco a fim de nos auxiliar em Porto Alegre, como um apoiador e nesse sentido, a sua presença no ônibus foi fundamental como guia, para nos conduzir com precisão até a porta da casa, onde tocaríamos.

Fachada da casa de espetáculos, "Manara", em Porto Alegre

A primeira impressão que tive ao entrar na casa de shows "Manara", foi muito boa. A estrutura mostrava-se no padrão de uma casa de shows do médio porte e lembrou-me muito o ambiente de casas de shows semelhantes que existiram em São Paulo entre os anos oitenta e noventa, como "Woodstock" e "Aeroanta". 

Ou seja, casas sob médio porte, com estrutura de palco, equipamento de som, iluminação e retaguarda com camarins muito acima da média de bares que tem a pretensão de serem casas de shows, mas não conseguem. 

No caso do Manara, realmente esta assemelhava-se às casas paulistanas que citei. Tinha um palco um pouco menor, mas muito digno para um artista autoral apresentar-se com desenvoltura. Um bom PA e boa iluminação de um teatro, ao estilo de um cabaré.

As instalações da casa apresentavam-se sob ótimo nível e a decoração, mostrava-se moderna, talvez não muito agradável para o meu gosto pessoal, pois remetia a motivos caribenhos que insinuavam o reggae jamaicano, mas tudo bem, isso foi mera questão de gosto pessoal. 

Logo que os roadies começaram a descarregar o ônibus, o produtor local do show chegou e muito educado, levou-nos para os compromissos de mídia e posteriormente conduziu-nos a um charmoso restaurante vegetariano, com ótima frequência, relativamente próximo ao Manara. Na Ipanema FM, concedemos entrevista ao vivo.

Fico a dever o nome do locutor que nos recebeu, mas lembro que esse profissional tratou-nos com muita simpatia e respeito pela banda. Infelizmente, situações assim eram tão raras ao tratar-se do padrão da mídia nos anos 2000, que até estranhávamos quando éramos tratados com o devido respeito e reverência que o nome da nossa banda merecia pela sua história. 

Particularmente, eu estava muito feliz por estar ali e até comentei com o rapaz, em um momento em particular fora do ar, que eu mantinha um sentimento de simpatia e dívida de gratidão com aquela emissora gaúcha, pois a minha banda nos anos oitenta, A Chave do Sol, fora muito executada ali, em sua programação regular, a ajudar-nos a formar mos um grande público gaúcho para a nossa banda. 

Infelizmente, nunca tivemos a oportunidade de nos apresentarmos em solo gaúcho, apesar de termos a consciência de que tínhamos naquele estado, um grande número de fãs formados pelas nossas apresentações no programa, "A Fábrica do Som", da TV Cultura de São Paulo, que era retransmitido pela TVE de Porto Alegre para todo o estado do Rio Grande do Sul, e muito em função da maciça execução radiofônica que tivéramos por conta da Ipanema FM, de Porto Alegre. 

Portanto, eu fiquei realmente feliz por estar ali naquele estúdio, embora a usar uma outra camisa naquele instante, a da Patrulha do Espaço. 

Foi uma conversa muito proveitosa, quando promovemos o show que faríamos no Manara, naquela noite e durante a conversa, tocou-se duas músicas do CD "Chronophagia". 

Dalí, fomos rapidamente para o estúdio da TV Bandeirantes, a apreciar a bonita visão do Rio Guaíba e o estádio Beira Rio, do S.C. Internacional. Naquela época tal construção já era bem vistosa, imagino agora com a reforma para adequar-se ao "padrão Fifa", da Copa do Mundo de 2014.

Na TV Bandeirantes, a inserção foi um encaixe muito rápido através do seu jornalismo local. Praticamente só o Junior falou, mas nós tocamos ao vivo, sim. Executamos: "Céu Elétrico" e "O Pote de Pokst", com o Rodrigo, Marcello e eu mesmo ao pilotarmos violões, e o Junior na percussão leve de uma singela pandeirola. Claro que o Marcello também tocou flauta em "Céu Elétrico". 

Mas estávamos contentes, com duas ações efetuadas dentro da mídia de massa, a reforçar o show. Fomos então almoçar no restaurante que citei, nas proximidades do histórico auditório, Araújo Viana, local onde eu fiz questão de conhecer pelo menos a sua fachada, mediante uma caminhada que empreendi isoladamente, após o almoço. Ali, shows históricos do Rock brasileiro foram realizados, a incluir-se a própria, Patrulha do Espaço, muitos anos antes. 

Com razoável tempo de sobra, fizemos o soundcheck no Manara, a seguir.

Sob um arranjo bem fraternal, economizamos uma boa quantia que gastaríamos com hotel, ao hospedarmo-nos no amplo apartamento do baterista da banda, "Os Arnaldos", que faria a abertura do show da Patrulha do Espaço. 

Solícito ao extremo, ele foi um anfitrião muitíssimo hospitaleiro, para nos deixar muito a vontade. O produtor do show, inclusive, foi o vocalista dessa mesma banda. 

O ponto aonde esse rapaz morava, ficava muito perto de uma casa de shows underground, mas bem falada da cena gaúcha, na qual diversas bandas fora do patamar mainstream costumavam apresentar-se ("Garagem Hermética"). 

Na porta de tal estabelecimento, vimos dois freaks, que estavam vestidos como se estivessem na "Swinging London" dos anos sessenta. Achamos incrível avistarmos figuras assim e melhor ainda foi que eles nos reconheceram e abordaram com bastante simpatia.

Foram dois membros da banda, "Cachorro Grande", que naquela ocasião ainda não detinham nem 10 % da fama que conseguiram construir no futuro próximo. Naquele instante, eram ainda artistas alojados no patamar do espectro underground, mas eu reconheci o baterista, porque lembrei-me dele em fotos da banda, Júpiter Maçã, onde ele atuara anteriormente, ao final dos anos noventa. 

O outro rapaz era o vocalista, e que já usava o seu famoso boné, estilo sessentista, que se tornou a sua marca registrada. Simpáticos, ficaram contentes por nos verem a circular por ali em seu bairro, e claro que os convidamos para o show da noite e eles realmente foram, inclusive a levarem consigo os outros membros da sua banda. 

Eu e Júnior fomos caminhar na Avenida Independência, a seguir, e achamos uma loja de instrumentos, interessante. Entramos e ficamos felizes por verificar que havia um cartaz de nosso show, em exibição no quadro de avisos. O dono recebeu-nos com bastante empolgação, e ainda fomos abordados por um casal de paranaenses que reconheceu-nos por terem lido a enorme matéria de página inteira que havia sido publicada nos dois jornais da cidade de Londrina, por ocasião de nosso show em tal município paranaense, bem no início daquele mesmo mês.

Rockers gostam de fazer ligações "mágicas" nessas horas, e claro que brincamos entre nós que foram muitos sinais positivos a acontecerem para um dia, apenas. 

Ao final da tarde, nós tivemos mais um compromisso televisivo. Se tratou de uma rápida inserção ao vivo, em um programa de variedades da TVE gaúcha. Eu, no entanto, sucumbi ao cansaço, e dessa forma, fiquei no apartamento onde hospedáramo-nos. 

Os demais foram para o compromisso e realizaram uma inserção acústica, ao terem tocado: "Céu Elétrico". 

A banda de abertura, "Os Arnaldos", continha uma particularidade exótica: tratava-se de uma banda cover, exclusiva dos trabalhos do Arnaldo Baptista! Os músicos adoravam o trabalho do Arnaldo e por conta disso, montaram o seu repertório, com músicas de todas as fases da sua carreira, o que foi bastante salutar, apesar do caráter "cover" de tal empreitada.

Um dos músicos dessa banda, foi o tecladista, conhecido como "Astronauta Pinguim", que era bem equipado com teclados vintage e se tratava de um ótimo músico. Anos depois ele mudar-se-ia para São Paulo e hoje em dia (2015) é bem famoso na cena da música eletrônica e Indie-Rock, inclusive a protagonizar reportagens em jornais e revistas de mídia mainstream, além de ter estado em aparições na TV etc. 

Chegara o momento do show, com a noite a avançar...

Chegamos ao Manara para o show, por volta das 21:00 horas e estávamos acompanhados do baterista dos "Arnaldos", que afinal de contas, foi o nosso anfitrião. 

Tivemos a boa surpresa de encontrarmos na casa, os músicos e amigos, Renê Seabra e Fares Junior, que estavam em Porto Alegre a fazerem um trabalho de workshop. Renê Seabra foi baixista da Patrulha do Espaço em duas fases, e gravara o LP "Primus Inter Pares", de 1992.

Havia um bom público na casa e até a hora do nosso show, aumentou tal contingente, ao perfazer um bom quórum. Mas com a ressalva de que a casa comportava bem mais gente em suas dependências, portanto, as duzentas e cinquenta pessoas que ali compareceram, não lotaram a casa, mas, sob uma segunda ressalva, é preciso ressalvar-se que tratara-se de uma segunda-feira, então por isso, consideramos um número muito bom de pessoas, ali presentes.

O show d'Os Arnaldos foi divertido, pois os rapazes tocaram várias canções do LP "Loki", com qualidade. E antes de tocar, eles nos abordaram no camarim para pedir-nos autorização para tocarem: "Sexy Sua", uma música do primeiro disco da Patrulha do Espaço ("Elo Perdido"), que sabiam que constava do nosso repertório, também para aquela noite. 

Talvez eles temessem que nós vetássemos que eles a tocassem, para privilegiar a nossa performance, mas muito pelo contrário, gostamos da ideia de que eles a tocassem e em seguida nós também a executássemos, assim o público teria a oportunidade de aproveitar a canção do Arnaldo, sob duas versões. Se bem que na prática, não houve diferença radical entre as versões, visto que eles tocavam o arranjo contido na versão oficial do disco da Patrulha do Espaço e nós, também.

Chegou enfim a nossa vez para subirmos ao palco. Estávamos ainda com a vibração de São Leopoldo-RS, na memória e projetávamos uma recepção semelhante, ou ainda maior em Porto Alegre, visto ser uma cidade grande e possuir uma enorme tradição Rocker. 

Mas infelizmente, não foi o que aconteceu. Música após música, recebíamos em troca, apenas aplausos educados e quase burocráticos, muito longe da comoção que causáramos em São Leopoldo, na noite anterior. 

O pessoal do "Cachorro Grande" apareceu em peso e os rapazes foram simpáticos conosco no camarim do pós-show, mas sinceramente acho que não apreciaram o nosso som, pois não demonstraram nenhum entusiasmo a mais do que a educação simpática. 

Achei estranho, pois os rapazes eram muito comprometidos com a estética retrô no Rock, portanto haveriam de identificar-se com todos os signos vintage, inerentes em nossa proposta, mas não foi o que aconteceu, de forma enigmática para a minha expectativa. Paciência.

Nenhuma canção pareceu mudar tal panorama, nem mesmo os pontos chave do show, onde estávamos acostumados a despertar reações sempre parecidas, independente de onde estivéssemos, com exceção de ambientes inóspitos, onde foi óbvio que defrontávamo-nos com pessoas que ignoravam retumbantemente a nossa cultura Rocker. 

O som e a iluminação estiveram bons, a nossa performance, idem, pois estávamos muito bem ensaiados e o público ali presente era bem informado sobre a matéria, portanto, esse show no Manara entrou para a história da banda como um enigmático exemplo no qual o cenário apontava para um sucesso retumbante, mas no cômputo geral, não houve comunhão alguma entre artista e plateia. 

É a tal da sinergia que todo artista que apresenta-se ao vivo, ressalta que precisa existir para tudo funcionar bem. Tanto artistas musicais, quanto teatrais, sabem que o palco tem essa particularidade. E muitas vezes é absolutamente inusitado o motivo pelo qual não funciona tal predisposição, pois não houve nenhum motivo sequer, para não dar certo. 

Bem, como um último detalhe que recordo-me, houve uma participação especial de última hora, quando chamamos ao palco, o ótimo guitarrista gaúcho, Bebeco Garcia, que era famoso na cena oitentista sulista, por ter feito parte da banda: "Garotos da Rua", que chegou a emplacar um sucesso radiofônico no âmbito do movimento BR-Rock, daquela década. 

                    Bebeco Garcia em uma foto dos anos oitenta

Sujeito de muita boa índole, boas influências e muito bom guitarrista, ele entrou em cena para tocar conosco, mas infelizmente estava bastante alterado, digamos assim e mesmo ao executar um solo Rock'n' Roll, muito bom no início da sua participação, eis que tratou por estender a sua permanência e a causar uma estranheza ao público. 

Não queríamos cortá-lo bruscamente, é claro, mas ele não demonstrava vontade para encerrar, e a cada segundo a mais que estendíamos o tema, percebíamos uma insatisfação do público, mesmo que o Bebeco, fosse querido por todos. 

A sua expressão facial fora marcada pela catatonia a nos fazer lembrar-nos do guitarrista do Pink Floyd, Syd Barrett, não pela genialidade e estranheza psicodélica de sua arte avantgarde, mas pela patologia, propriamente dita. 

Chegamos a ficar assustados ao vê-lo a solar ad infinitum, sem demonstrar estar inserido no contexto da nossa banda, entretanto, a parecer estar em um mundo particular, a tocar sozinho. Com os olhos esbugalhados, ele fitava as paredes do Manara, ao denotar estar em outro lugar. E certamente que estava. 

Bem, missão cumprida, foi assim o show em Porto Alegre, com aplausos educados e nada mais. Foi no dia 21 de janeiro de 2002, com duzentas e cinquenta pessoas presentes na plateia. E eu ainda tenho alguns fatos para comentar sobre essa turnê pelo Rio Grande do Sul.

Voltamos ao apartamento de nosso anfitrião e apesar do show não ter despertado a mesma reação que o de São Leopoldo, na noite anterior, na capital gaúcha tivemos uma boa exposição midiática mediante dois programas de TV e um de rádio. 

Além do mais, o show não foi um desastre, pois nós tocamos bem, todavia foi morno, pela fria recepção advinda da plateia. 

No dia seguinte, acordamos e fomos ao Manara buscar o nosso equipamento que dormira lá no camarim dessa casa. E não houve outra alternativa, pois tememos deixá-lo no ônibus que também passara o dia estacionado ao léu, na rua. 

O clima que azedara com o motorista e a sua "entourage", se amenizara com sua permanência no sábado, em Bento Gonçalves-RS, mas nunca mais foi o mesmo e de fato ficara bem esquisito, na base da tolerância estabelecida ao limite. 

Reservadamente o nosso roadie, Samuel Wagner, revelou-me que ouvira uma conversa do motorista com seu fiel escudeiro, o carrier, a dar conta de que deliberadamente transformaria a nossa viagem de volta, "em um inferno" e que pretendia sabotar o nosso plano para estarmos em São Paulo até quarta feira, pois na quinta-feira nós tínhamos um ensaio marcado para passarmos três músicas com o guitarrista, Andreas Kisser, do "Sepultura", que seria o nosso convidado de honra para um show que faríamos no Sesc Pompeia, em meio às festividades do aniversário da nossa cidade.

O seu rancor pareceu ser muito grande, e eu não duvidaria que seu plano de sabotagem lograsse êxito. Despedimo-nos do nosso amigo, Luciano Reis, que acompanhou-nos em tal etapa dessa jornada, desde o domingo e o deixamos próximo de uma estação de trens, de onde partiu para São Leopoldo-RS.

Decidimos voltar pela estrada BR-101 que margeia o litoral dos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, até a divisa com o Paraná, quando bifurca-se com a tradicional BR-116, que vai para São Paulo. 

O clima estava amargo e tenso entre nós e o motorista, mas nada indicara o tal boicote que ele supostamente havia planejado. Eu resolvi guardar essa informação em segredo, para não preocupar ninguém e só a revelaria se houvesse um indício dessa concretização na prática e a guerra fosse declarada, de fato. 

No entanto, houve um fator decisivo nesse processo e no fundo, foi o que o conteve: estávamos em cinco em nossa divisão de comitiva e ele contava apenas com o seu amigo carrier. Logicamente que não poderia contar com a esposa e o filho pequeno se o tempo fechasse pelas vias de fato. E claro que não colocaria a sua família sob uma situação de perigo e constrangimento. Mesmo assim, ficamos em alerta, eu e Samuel, a observarmos os movimentos de ambos. 

Paramos nas proximidades de Criciúma, em Santa Catarina, para um descanso, quando já anoitecia e ele revelou estar fatigado na condução do veículo. Nesses termos, foi mais prudente acatarmos a sua solicitação e dormirmos. Muito cedo, no dia seguinte (6:00 horas da manhã), fomos para dentro do veículo e partimos para a segunda etapa da viagem de volta, sempre atentos aos movimentos da dupla dinâmica, enquanto os nossos amigos riam, tocavam instrumentos ou simplesmente dormiam em meio a longos trechos percorridos. 

Então, algo inusitado ocorreu quando alguém lembrou-se das uvas que ganháramos de nosso amigo, Evandro Demari, de Bento Gonçalves-RS. Naquele calor, foi uma boa pedida lembrar-se disso e todo mundo aceitou pegar alguns cachos para refrescar um pouco a garganta. Foi quando o Samuel emitiu um berro a ecoar desde o compartimento de carga do veículo! As uvas estavam perdidas por uma questão de sabotagem! E apesar da animosidade que eu estava a comentar até aquele ponto, não fora, aparentemente obra do motorista e do carrier.

Ao ligar os fatos, o Samuel havia recordado-se que vira dois membros de uma banda de Porto Alegre que haviam ido nos assistir no show de Porto Alegre e que no meio do show, ele os vira saíram de nosso camarim, às gargalhadas, sem motivo aparente, enquanto nós tocávamos. 

Não revelarei as suas identidades publicamente, por que não quero fazer de minha autobiografia um muro das lamentações, mas o fato é que esses dois artistas nos desrespeitaram, ao urinarem na enorme caixa de isopor que continha uma quantidade absurda de cachos de uvas, que ganháramos da família de Evandro Demari, em Bento Gonçalves-RS. 

Ficara explicado o motivo das risadas e o motivo pelo qual colocamos o isopor no camarim foi óbvio: no ônibus, a sofrer com o calor escaldante do dia ensolarado, elas estragariam. Ficamos muito indignados, pois tratamos bem esses rapazes e eles foram dissimulados ao nos tratar com a falsa simpatia de ocasião etc. e tal, apenas a aguardar uma oportunidade para aprontarem uma sabotagem deselegante, nesse padrão infantojuvenil.

Pode ser que eu seja ingênuo, mas nunca na minha vida tive esse comportamento de querer fazer brincadeiras de mau gosto com as pessoas e dessa forma, fiquei muito chateado. Esses "guris" devem ter lido muitas biografias de bandas de Rock clássicas, a citar sobre traquinagens ocorridas nos bastidores das bandas de Rock e talvez desejassem ardentemente viver tais experiências em sua vida, como uma espécie de autoafirmação Rocker, ou coisa que o valha. 

Eu jamais fui ou serei assim e não conformo-me com tal procedimento, que considero algo sob baixo nível, e sou tão Rocker quanto eles pensam que o são. Enfim, naquele momento ficamos muito indignados e claro, no tocante aos cachos de uvas, tivemos que jogar tudo fora. 

Apesar desses dissabores perpetrados pelo sócio-motorista, a viagem findou-se normalmente e ao recordar-me hoje em dia, acho que o fator foi mesmo o da estratégia à cata da conquista do poder na relação da sociedade, pois ao menor sinal de que estivesse a boicotar-nos, o clima arruinar-se-ia para ele, e apesar de ser um sujeito rude e que certamente partiria sem pudores para as vias de fato em outras circunstâncias, ali a desvantagem seria enorme para ele. 

Mas naturalmente que ele percebeu que o Samuel sabia, e dali em diante, o clima acirrou-se entre os dois e em um futuro muito próximo, eles quase chegariam ao embate pelas vias de fato. Conto sobre isso, no momento oportuno. 

Chegamos em São Paulo extenuados e no limite para atravessar a cidade em tempo de escapar do rodízio de veículos imposto pela prefeitura paulistana, quase às cinco da tarde da quarta-feira. Descarregamos o equipamento e no dia seguinte, o compromisso seria ensaiarmos com Andreas Kisser. 

A pré-produção desse show no Sesc e o show em si, rendeu muitas histórias! E vou relatá-las a seguir.


Bastante tempo antes de termos ido ao Rio Grande do Sul, já sabíamos que tocaríamos no Sesc Pompeia ao final de janeiro de 2002, como parte das festividades de aniversário da nossa cidade.
Tocaríamos em um projeto denominado: "São Paulistas", uma alusão a São Paulo, em forma de trocadilho.

Seria mais um projeto idealizado pela produtora, Sarah Reichdan e o formato seria o de um show duplo, com duas bandas de Rock setentistas e significativas do Rock paulistano, Patrulha do Espaço e Tutti-Frutti, além da presença de três convidados especiais: o trombonista superb, Bocato, o guitarrista do "Sepultura", Andreas Kisser e Clemente Nascimento, o guitarrista e vocalista da banda Punk, "Os Inocentes". 

A ideia seria que o Tutti-Frutti e a Patrulha do Espaço fizessem os seus respectivos shows, ao inserirem os convidados em seu decorrer, e ao final, todos os músicos, incluso os convidados, tocassem juntos, no palco, um número final.

Em torno disso, digo em primeira instância que a ideia de um show conjunto foi boa e a presença de convidados especiais, idem. Sob o ponto de vista artístico, isso é válido, eu aceito essa ideia de uma forma tranquila. 

Ainda a falar sobre o Sesc, enquanto instituição, não me canso em afirmar que se trata de uma organização impecável e que cumpre a sua função sociocultural de uma forma importante, ao manter as suas atividades sob um padrão de primeiro mundo, subsidiar tudo e entregar ao público, atrações e atividades gratuitas, ou cobradas em patamares simbólicos. 

No esquema do Sesc, tudo funciona de forma exemplar, tanto para o público, quanto para os artistas e equipe técnica & produção. As instalações são impecáveis, o equipamento de som e iluminação é sempre de primeira linha, a cenotécnica é bem planejada, o camarim é super asseado, confortável e um lanche farto municiado com boa comidas, bebidas e frutas, é disponibilizado, os funcionários são atenciosos e cordiais. Os cachês são pagos regiamente e sob valores dignos, que respeita a dignidade dos artistas.

O Sesc, ao meu ver, cumpre com galhardia o que o governo deveria fazer e não faz no campo social, como fomento à cultura, esportes, educação e até na área da saúde e cuidados com os membros da terceira idade. E claro que eu sei que existem subsídios oficias nessa construção, via "sistema S". Todavia, permito-me fazer duas críticas construtivas, absolutamente bem-intencionadas, para deixar bem claro:

1) Há um excesso de rigor burocrático quando os shows são marcados. Tal exagero pode aos olhos da instituição, denotar a extrema preocupação para se estabelecer a lisura no trato contábil, fiscal & jurídico, mas na verdade, menos da metade da papelada exigida para os artistas, é realmente necessária. Portanto, para tocar no Sesc, é preciso ter um agente cadastrado na instituição e com estrutura comercial toda montada e sem rusgas, para poder transitar e negociar.


2) Sob o ponto de vista artístico, parece que o Sesc caiu em uma armadilha criada por algum formador de opinião há muitos anos atrás, que certamente criou um paradigma. Pois nesses termos, é quase impossível apresentar-se lá, se não for inserido sob um "projeto". 

O fato de um artista qualquer manter uma carreira sólida com discografia & história, não parece ser suficiente para convencer um programador de Sesc, a contratar-lhe e anunciar o seu show, simplesmente. O artista só participa se houver um "mote", e invariavelmente apresentar "um convidado". 

Com isso, infelizmente, o Sesc dá a entender que não acredita no artista por sua força própria, mas pelo contrário, só os considera viável, se fizer parte de um contexto especialmente criado. Não há como deixar de se observar que há um elemento egóico nisso, pois alguém, dentro do Sesc, ou quem conduz o pacote de tais "projetos", deve se achar "genial" por tê-lo idealizado. Nesses termos, reitero que acho tal predisposição como um maneirismo desagradável, mas que não pode de forma alguma diminuir o bem que a instituição faz ao país em linhas gerais.

Da esquerda para a direita, a bandeira estadual paulista, e a direita, a bandeira paulistana, baluarte da capital de São Paulo

Dentro dessa dinâmica em torno de um "projeto", a Sarah criou esse pacote para se comemorar o aniversário de São Paulo e claro que ficamos honrados e felizes para participarmos. Um ensaio foi marcado, portanto, para ajustarmo-nos aos convidados tão somente, pois cada banda deveria responsabilizar-se por seu próprio show, naturalmente. 

Já estava definido há semanas que o Tutti-Frutti tocaria com o Bocato e Clemente e nós, com o Andreas Kisser. A sala de ensaio que a Sarah alugou para nós, foi o estúdio do tecladista, Luiz De Boni, ex-membro d'O Terço nos anos noventa. Tratava-se de um belo estúdio, com várias salas, incluso de gravação e muito bem localizado na avenida Indianópolis, no elegante bairro do Planalto Paulista, zona sul de São Paulo.

Eu detinha uma história pregressa com aquele estúdio, pois fora ali que gravara a primeira fita-demo do Língua de Trapo, no longínquo ano de 1980 ("Sutil Como Um Cassetete"). Claro que nessa época, o estúdio era bem mais simples, com característica de uma sala de ensaio, pertencente à banda de bailes, "Cia. ILtda.", na qual o Luiz De Boni fora tecladista. 

Nesse ensaio com Andreas Kisser, eu tive uma agradável surpresa, da parte dele mesmo!

Chegamos ao estúdio por volta das 16:00 horas de uma quinta-feira, sob um clima bastante amistoso e com a produtora, Sarah Reichdan, a nos recepcionar. 

Estávamos descansados e bem-dispostos, após uma extenuante viagem ao Rio Grande do Sul. Isso por que no dia anterior, por ter sido sem atividades, nos deu a possibilidade de recuperação e convenhamos, após um dia de descanso, banho & uma bela pizza, tudo melhora. 

Foi quando chegou ao estúdio o guitarrista, Andreas Kisser, super simpático e entusiasmado com a oportunidade surgida em tocar conosco, ao demonstrar um grau de respeito e a conter uma postura de humildade, que cativou-nos de pronto. Mas não foi só por essa atitude que ele nos impressionou. Enquanto arrumávamos os instrumentos para começarmos a ensaiar, Andreas surpreendeu-me de uma forma comovente, eu diria.

Pois então, eis que ele passou-me a contar que eu tivera uma importância muito grande na sua vida, como um fator de exemplo que o incentivara a que ele viesse a se tornar um músico de Rock, no seu caso, a abraçar a estética do Heavy-Metal. 

Fiquei bastante desconcertado com tal afirmativa da parte dele e antes que eu lhe perguntasse, ele prosseguiu a contar-me: antes da metade dos anos oitenta, ele ainda nem tocava no então incipiente "Sepultura", quando comparecera de uma forma bastante fortuita, a um ensaio de uma banda de Rock emergente, formada por músicos mais velhos do que ele, chamada: A Chave do Sol... Como assim?

Sim, ele contou-me que fora amigo de um amigo da irmã do guitarrista Rubens Gióia, Rosana Gióia, e dessa forma, surgira a oportunidade para assistir um ensaio da minha banda naquela década, visto que Rosana Gióia formalizara o convite e de fato, era nosso costume receber pessoas em nossa sala de ensaios, desde o início de nossas atividades, em 1982. Então, ao encerrar o seu belo depoimento, Andreas falou-nos que ficara encantado com a nossa dinâmica de ensaio, e que ali, sedimentou a sua vontade para se tornar um músico profissional, de fato. Fiquei bastante comovido com tal depoimento e em seu semblante, ficara nítida a sua sinceridade desconcertante, eu diria. Foi bastante inusitada a situação por alguns aspectos:
 

1) Eu, que tenho uma memória sob longo alcance e bastante ativa, simplesmente não lembrava-me desse fato. Lembro-me de muitas visitas ocorridas na sala de ensaios d'A Chave do Sol e algumas delas foram absolutamente insólitas, ao merecerem serem mencionadas e assim eu as relatei no capítulo d'A Chave do Sol, mas nem imaginava que um artista que tornar-se-ia internacionalmente famoso, caso de Andreas Kisser, ainda adolescente e imberbe, pudesse ter ido assistir-nos a ensaiar. Tenho a atenuante de que ele era um garoto apenas, e não havia nenhum indício na ocasião, de que tornar-se-ia mundialmente famoso, no futuro.
 

2) Conheci os rapazes do Sepultura por volta de 1987, na redação da revista Rock Brigade. Eles já estavam estourados no métier do Rock pesado/Heavy-Metal, e eram verdadeiros "darlings" dos membros da redação daquela publicação que privilegiava o mundo do Heavy-Metal como mote primordial da sua publicação. 

E nessa altura, tal banda já cometia um estardalhaço internacional, mas faria muito mais, sob um curto/médio prazo. Os seus membros eram todos cordiais comigo, mas o jovem Andreas, nada falou-me na ocasião sobre ter ido ao ensaio d'A Chave do Sol, poucos anos antes. 

Dali em diante, entre 1988 e 1989, encontramo-nos várias vezes em bastidores de shows. Lembro-me até do baixista, Paulo Jr. aparecer em um show que realizamos em conjunto com o Golpe de Estado, na casa de shows Dama Xoc, em 1988, (já por outra banda na verdade, A Chave/The Key), quando ele até brincou comigo, ao dizer-me que ele gostava da minha banda, mas eu não gostava da dele...

Em 1991, eu estava a ciceronear o meu amigo, Ricardo Aszmann, que é do Rio de Janeiro, e ao perambularmos pelo bairro das Perdizes, de São Paulo, resolvi levá-lo para conhecer o estúdio Quorum, cuja propriedade era dos irmãos Molina (Jeff & Jacques) e Ney Haddad. Surpresa total, assim que adentramos estúdio, o Sepultura estava a ensaiar em uma sala ampla e que estava repleta por garotas, a denotar que viviam a experiência do estrelato consolidado e nessa fase, já eram de fato, estrelas mundiais. Tal banda estava ali a ensaiar para o show que faria no Festival Rock in Rio, de 1991. 

Eu não sou hipócrita. Claro que é público e notório e nesta autobiografia, estou a reafirmar isso sistematicamente em vários capítulos diferentes até, que não gosto, nem nunca gostei de Heavy-Metal e Punk-Rock. Se não gosto do "Iron Maiden", como muita gente achava/acha que eu gostava/gosto, imagine o metal extremo do Sepultura. 

Contudo, além do respeito e da ética, eu tenho uma admiração pelo Sepultura, não pela sua obra e estética, mas pela sua dignidade artística e status adquirido com muita labuta. Ao ir além, acho extraordinário no caso do Sepultura, que os seus membros tenham feito sucesso internacional sem apelações. A despeito do álbum que gravaram com intervenções indígenas, no Xingu (mas bem depois de solidificados mundialmente), o seu sucesso estrondoso foi construído sem que usassem de artifícios folclóricos, para impor-se como um fenômeno internacional. 

Digo e repito, o Sepultura construiu a sua fama sem usar cestos de frutas na cabeça, como sempre o mundo lá fora espera que os brasileiros usem como artífício barato. E faço a ressalva, mesmo sendo a ironia cabível como institucional, que eu isento a grande Carmem Miranda como pessoa e artista, pois gosto dela e a considero sensacional, artisticamente a falar. 

Neste caso, infelizmente, o exotismo com o qual Carmem se tornou famosa, se estigmatizou como uma espécie de sina para qualquer artista brasileiro, doravante. Salvo Tom Jobim (ainda que no caso dele hajam ressalvas, não por ele, pessoalmente), creio que a cesta de frutas na cabeça tornou-se uma condição sine qua non para artistas brasileiros serem aceitos no exterior. Mas o Sepultura venceu no mundo do Heavy-Metal e a realizar o seu som sem subterfúgios, sob a ausência de elementos folclóricos como apelação para chamar a atenção pelo exotismo (repito: sei que existe aquele trabalho a envolver índios do Xingu, em um determinado álbum da banda, mas isso ocorreu em um momento posterior na carreira, que já estava consolidada, naquela altura). E isso, em minha opinião, tem um valor fantástico.
 

3) Foi para se enaltecer também, a extrema humildade do Andreas, que mesmo ao ser uma estrela internacional, mostrara-se um rapaz simples, educado e muito agradável no convívio.
 

Ensaiamos com muita tranquilidade, sob um clima muito amistoso e ficou acertado que ele tocaria conosco as músicas: "Robot" e "Olho Animal", que são peças oriundas do álbum: "Patrulha'85". Essas canções não faziam parte do nosso set list até então, mas eram pedidas pelos fãs, vide o que relatei sobre o show em Jales-SP, alguns parágrafos atrás. 

Ele também tocaria na música final, que em decisão tomada na hora, junto ao pessoal do Tutti-Frutti, e também com a anuência dos demais convidados, ficou acertada para ser: "While My Guitar Gently Weeps", dos Beatles, em homenagem a George Harrison, com a sua morte recentemente ocorrida naquela época. 

Terminado o ensaio, agora falarei sobre o show em si.

O dia do show começou tenso, pois o sócio/motorista não sabotara a nossa volta para São Paulo como comentara que o faria com seu amigo carrier, em uma conversa interceptada pelo Samuel Wagner, mas estava bem mal-humorado nesses dias. A sua relação conosco estava bastante desgastada e caminhava para o seu final. Mas falo sobre isso detidamente, mais tarde. 

Mesmo sob um clima estranho, ele nos auxiliou com a sua van, pois como não precisávamos usar o nosso backline inteiro, não havia a necessidade premente de usarmos o ônibus.

Claro, ele teria e teve uma compensação financeira e justa, mas até poucos momentos antes de concretizar a sua vinda, mantivemos o "plano B" para irmos ao Sesc com o equipamento alojado em nossos carros particulares como uma possibilidade quase certa. 

Enfim, fomos com os nossos carros, de qualquer forma, porque a van dele era de carga, sem bancos para passageiros. Chegamos ao Sesc Pompeia no horário combinado para o soundcheck. 

O show aconteceria nas dependências da Chopperia, local onde dois meses antes, nós realizamos aquele show acústico 100%, à luz de velas, que eu já comentei anteriormente no capítulo anterior.

Desta feita, contudo, seria completamente diferente, com um show elétrico e portanto, muito mais confortável para nós. 

O soundcheck foi bastante tranquilo com as duas bandas e os seus respectivos convidados, a se mostrarem bastante relaxados e satisfeitos com o som no palco. Rumores deram conta de que um público significativo formado por fãs do Sepultura estariam presentes para ver Andreas em ação. 

Para nós, seria ótimo que o prestígio pessoal dele tivesse esse poder de um chamariz adicional para engrandecer o evento. Todavia, claro que o público típico do Sepultura não pagaria para ver a Patrulha do Espaço, muito menos o Tutti-Frutti, em circunstâncias normais.

Quando subimos ao palco, a casa não estava lotada, mas houve um bom contingente do público presente. Aos poucos, em meio ao nosso show, eu percebi que chegavam mais pessoas e de fato, isso foi uma tendência. Não seria a apresentação do nosso show tradicional e completo, mas não posso afirmar que tenha sido um show de choque. Digamos que foi um meio termo entre os dois, com um show quase normal, levemente reduzido.

Andreas Kisser, o nosso convidado, eu (Luiz Domingues) e Rodrigo Hid em ação. Patrulha do Espaço no Sesc Pompeia de São Paulo, em janeiro de 2002
 
Quando o Andreas foi chamado ao palco, houve uma reação forte de seus fãs. De fato, houveram muitos deles presentes em meio ao público. A sua performance foi empreendida com energia, mas a respeitar inteiramente a nossa vocação infinitamente mais leve em comparação à sua banda. 

O Marcello foi tocar teclados, para deixar o Rodrigo como guitarrista da banda a poder interagir com Andreas, na outra guitarra. E de fato, houveram momentos muito bons na troca de solos entre ambos, a improvisarem livremente no arranjo adaptado das músicas: "Olho Animal" e "Robot".

Andreas Kisser conosco no Sesc Pompeia, não tenho certeza, mas desconfio que tais clicks sejam da autoria da fotógrafa, Ana Fuccia

Claro que ambas as canções que tocamos, tiveram o ranço Heavy-Metal que tanto lutamos para extrairmos da alma da Patrulha do Espaço em nossa fase, mas os acontecimentos que nos impulsionaram nos últimos meses, quase que nos impeliram-nos para elas, infelizmente.

Outra foto do mesmo show: "Sãopaulistas", com a presença de Andreas Kisser como nosso convidado. Da esquerda para a direita, o nosso convidado: Andreas Kisser, eu (Luiz Domingues) e Marcello Schevano. Não tenho o crédito oficial da foto, que achei na Internet e é do acervo de Ray Castello, filho do Rolando Castello Junior. Desconfio ser um click de Ana Fuccia

"Robot" até que seria palatável e continha um mote na temática da letra, interessante, mas "Olho Animal" era difícil para nós, Marcello, Rodrigo e eu, que a considerávamos fraca, harmônica e melodicamente, e o pior de tudo, com uma letra bastante destoante da nossa proposta. Mas não teve jeito... dali em diante, ambas voltaram ao set list de shows, sob a alegação de que principalmente fora de São Paulo, seriam canções solicitadas pelo público que mais reconhecia a Patrulha do Espaço por esses trabalhos oitentistas, do que a fase com Arnaldo Baptista e/ou da fase áurea do trio clássico: Junior, Serginho & Dudu. 

Passada a participação de Andreas, que causou muita comoção entre os fãs do Sepultura, encerramos o show com mais duas ou três músicas, e sem a presença dele, no palco.

Saímos de cena bastante aplaudidos e entregamos ao Tutti-Frutti, um público já bem aquecido e ansioso por mais Rock. Lembro-me de assistir grande parte do show de Carlini & Cia pela coxia. Foi bastante energético, com a banda a tocar os seus maiores sucessos da época em que contavam com Rita Lee em suas fileiras. 

Para encerrar, fomos chamados novamente ao palco para o número final. Foram dois backlines ligados ao mesmo tempo, pois cada banda ficou "setada" ao mesmo tempo, a usar só a metade do palco. Isso foi bastante prático sob o ponto de vista do áudio e o set up arrumado para cada um realmente facilitou a troca de bandas, mas cenicamente a falar, foi muito estranho, pois cada banda tocou como se estivesse em um lado de uma gangorra, espremida em um canto. 

Já no ensaio no estúdio do Luiz De Boni, sabíamos que seria uma grande confusão tocarmos com duas baterias, dois baixos, quatro guitarras, um trombone e dois teclados. Por mais parcimônia que se fizesse no quesito da dinâmica, é claro que uma maçaroca sonora seria produzida. 

Combinamos entre nós fazermos uma dinâmica máxima e no sinal visual, combinarmos no calor do show o revezamento de solos entre os guitarristas, tecladistas e o trombonista, Bocato, na música final a ser executada por todos reunidos no palco. 

Nas duas cozinhas, o combinado foi o mesmo, ou seja, os dois bateristas acertaram revezamento nas viradas e assim, eu, e o saudoso baixista do Tutti-Frutti, Rufino Lomba, também combinamos de um ficar na região aguda e o outro no grave, e evitar frases complexas e mudanças na divisão rítmica que derrubassem os demais. 

Começamos a tocar a canção dos Beatles, e no início parecia estar a dar tudo certo, com todo esse cuidado a ser observado. Mas claro que sob a adrenalina do show e com o público a responder bem, o trem da prudência descarrilou... e quando encerramos, estava muito alto e com vários músicos a exagerarem em suas respectivas performances pessoais. Mas, claro que houveram momentos bons, com bastante emoção nos solos inspirados, e no peso que aquilo ganhou, com duas bandas e mais três convidados, a tocarem juntos. 

Lembro-me do Bocato estar bem ao meu lado e ter feito um solo com o seu trombone, que arrancou suspiros do público e de nós também. Senti-me a tocar no "Mothers of Invention", do Frank Zappa, em seus melhores momentos nesse instante...

Foi um ótimo show, não só nosso e do Tutti-Frutti, mas como espetáculo inteiro, para o público. Mesmo assim, ainda sustento a minha opinião de que o Sesc deveria rever essa mentalidade de montar a sua programação somente baseada em projetos, pois isso diminui os artistas, ainda que eu deduza que tal perspectiva nem passe na cabeça dos programadores como uma maldade deliberada de sua parte. 

Na saída do Sesc, eu estava perto da van, ao supervisionar o seu carregamento, quando uma discussão muito ríspida entre o nosso roadie, Samuel Wagner e o motorista, irrompeu. O clima esquentou e por um triz, eles não foram às vias de fato. Seguranças do Sesc agiram rápido e os apartaram para evitar a pancadaria propriamente dita. 

O clima entre ambos estava estragado há algum tempo e isso só piorou mediante o convívio mais acentuado ao longo das viagens da turnê. De fato, não havia mais condição para manter essa parceria e dessa forma, logo nós teríamos que tomar uma atitude, pois novos shows fora de São Paulo estavam marcados e a turnê não poderia parar. 

O nosso próximo compromisso nesse sentido seria apenas ao final de fevereiro, mas antes disso, além de enfrentar esse problema para dissolver a parceria com o motorista e decidirmos ficarmos ou não com o ônibus, uma oportunidade fortuita nos foi oferecida e estes dois shows em questão, renderam muitas histórias. 

O show do Sesc Pompeia ocorreu no dia 25 de janeiro de 2002, aniversário de São Paulo, com cerca de trezentas pessoas presentes no ambiente.

Criada a indisposição com o sócio/motorista, a relação entre nós já estava estremecida há tempos, essa foi a verdade. Basta o leitor recordar de vários pontos negativos que eu citei, desde que estabelecemos a parceria, em meados de setembro de 2001. 

Nesse ponto de 2002, a situação chegara ao ponto insustentável, e ele queria vender o veículo pura e simplesmente, e assim usar o dinheiro para zerar a dívida ainda pendente e referente à sua aquisição e dividir um eventual pequeno lucro que viria desse montante. 

Na teoria, se tratou de uma solução boa, mas na prática, mesmo que aceitássemos a ideia, a questão fora diferente, pois quem disse, que tencionávamos vender o ônibus de uma forma rápida e com direito a uma margem de lucro? 

Pelo contrário, nós compramos um carro velho, mas com o seu aspecto de ônibus de excursão em relativa ordem, e agora, graças às nossas necessidades enquanto banda a carregar um enorme equipamento em meio às necessidades de uma turnê, o transformáramos em um carro alternativo, com pouco espaço para alojar pessoas, e mais a se parecer com um trem cargueiro. 

Portanto, o valor dele diminuíra ao meu ver, em termos de liquidez de mercado, pois fechara-se para um pequeno grupo de interessados. Tais eventuais postulantes seriam ou bandas como nós, ou pessoas que compram carros assim, para promover excursão de pesca, conforme descobrimos posteriormente, ao adentrarmos o "universo" dos entendidos em ônibus velhos.

Por outro lado, toda a logística da banda estava baseada nele naquele instante. As excursões que estávamos a realizar, baseavam-se no fato de que tínhamos transporte próprio e isso facilitava a logística da turnê, de uma forma absurda. 

Sem o carro, teríamos um retrocesso, sem dúvida alguma, ao gastarmos fortunas para alugar micro ônibus ou a viajarmos sob um desconforto incrível, mediante o uso de vans e a abdicar de transportarmos o nosso backline completo, portanto a prejudicar a performance sonora da banda durante os shows. 

Portanto, a nossa predisposição foi a de ficar com o carro, ao prejudicar a nossa contabilidade para pagar a parte do rapaz na sociedade que se desfazia, ainda a assumir o restante da dívida contraída pela sua aquisição e pior ainda, ao assumirmos a sua manutenção, local de estacionamento e a precisar contratar um outro motorista.

Foi uma perspectiva com prós e contras, portanto, mas um aspecto mostrara-se certo, precisávamos manter o carro naquele instante e após uma boa reflexão interna, resolvemos propor a compra da parte do sócio e ficarmos com o veículo em nossa posse, mesmo ao sabermos que os argumentos contra seriam bem penosos, na prática. 

Ele, o sócio, surpreendeu-se quando lhe propusemos essa solução final para o caso. Ao denotar que muito de sua atitude continha uma intenção política e velada para visar se impor pelo terror via coação estratégica, ao calcular nos deixar à mercê de seu domínio. 

Com essa atitude de nossa parte, ele se assustou com a nossa intenção de nos livrarmos dele e assim ficarmos com o carro. Em princípio, ele aceitou, mas no decorrer dos dias posteriores, pôs-se a dificultar a negociação, ao assumir uma clara postura de que desejava tumultuar o trâmite ao máximo, por denotar que não seria o dinheiro que interessava-lhe, apenas, mas que infelizmente, havia acumulado rancores. 

Postura profundamente lamentável, mas só reforçara a ideia de que não fora uma pessoa adequada para nos associarmos, e nós já tínhamos problemas demais para administrar, portanto ter que lidar com uma pessoa temperamental na equipe, seria um transtorno a mais. 

Curiosamente, no meio dessa negociação penosa, um convite surgiu repentinamente para que realizássemos dois shows e ainda tivemos que contar com ele. O plano seria assumirmos o carro e já havia uma planificação mediante shows marcados para o final de fevereiro no interior de São Paulo e portanto, o tempo urgia para se resolver logo esse impasse, e a seguir contratarmos um motorista novo e arrumarmos uma garagem para o nosso carro. Independente desse imbróglio todo, os dois shows inesperados em questão, rendeu-nos histórias e em alguns aspectos, são hilárias.

Em meio a essa confusão toda por conta do destino do ônibus, um convite inesperado surgiu da parte do diretório acadêmico de uma faculdade localizada em uma cidade da região do ABC. 

Tais contratantes queriam que nós tocássemos na festa de recepção dos calouros de 2002 dessa instituição. Em princípio, foi uma oportunidade boa para se cumprir um show em uma data em que não tínhamos nada fechado, muito em função do fato de que o imbróglio por conta do ônibus, freara a logística da banda e assim, houve um hiato na marcação de shows para fora de São Paulo por conta de tal impasse da questão logística, a depender de podermos contar ou não com o ônibus próprio. 

A ideia seria tocarmos no ginásio de esportes da Universidade IMES, uma instituição pertencente à municipalidade de São Caetano do Sul-SP. Feito o convite, os dirigentes do diretório acadêmico nos ofereceram um cachê bem razoável, mas por serem bastante inexperientes no ramo, não tinham noção alguma sobre a produção de um show de Rock. 

No máximo, estavam acostumados a promover festas com bandas amadoras de estudantes e com estas a tocarem sob condições inóspitas. No entanto, para nós, haveria de ser muito mais complicada a situação e nem vou perder tempo para explicar o óbvio ululante.

Como seria uma situação pouco comum essa de se lidar com produtores amadores, por uma questão de prudência, eu e Rodrigo fomos alguns dias antes do evento ao local para checarmos as condições do palco e o PA disponibilizado. 

Claro que por ser um ginásio de esportes, mesmo que se contratasse o serviço de uma empresa de sonorização experiente no mercado, já seria complicado, por conta da acústica completamente inadequada para espetáculos musicais, ainda mais show de Rock. Contudo, sem um equipamento condizente, pior ainda. 

E não deu outra, pois o equipamento que os rapazes nos mostraram era insuficiente e caracterizado pelo total improviso, ao parecer um "Frankenstein", com muitas peças misturadas para se compor um maquinário capaz de operar um show. 

Não havia um número adequado de microfones e pedestais, multicabo, os paramétricos essenciais etc. Ou seja, se tratou de um mini PA, suficiente apenas para sonorizar uma sala de ensaios. 

Então, na base da boa vontade e improviso, bem ao estilo do esforço sob mutirão, os estudantes prontificaram-se a tentar melhorar um pouco as condições sonoras, no dia do show. O comprometimento dos estudantes foi salutar, devo admitir e isso compensou em muito a sua total falta de noção sobre o assunto. 

Eles nada sabiam sobre os meandros da produção profissional de um show de Rock, mas não fugiram do desafio e mediante as nossas instruções, se esforçaram para viabilizar o espetáculo ao tomarem as providências mínimas necessárias para minimizar as dificuldades. 

Dessa forma, eles não tinham verba para contratar uma empresa profissional, mas foram buscar reforço para tal equipamento, na base dos empréstimos de peças avulsas entre amigos etc. 

Porém, um fator se mostrou inevitável e causou-nos espécie: o horário da apresentação se revelara insalubre! Queriam que estivéssemos no palco a executar o primeiro acorde, às 8:00 horas da manhã! Ou seja, para que isso acontecesse, a que horas deveríamos chegar lá para montar o palco?


Nesses termos, não houve meio para negociar um horário mais digno, pois a despeito da insalubridade total dessa meta que estabeleceram, para eles, contratantes, seria imprescindível que estivéssemos a tocar, às 8:00 horas da manhã, para receber os novos alunos na quadra do ginásio de esportes, daquela instituição educacional. 

Portanto, aceitamos a insalubridade, mesmo por que, o cachê oferecido viera a calhar naquele momento em que enfrentávamos a dissolução da nossa parceria com o sócio/motorista e assumiríamos a posse do ônibus, sozinhos doravante. 

E assim, no dia marcado, lá fomos nós para São Caetano do Sul-SP ao final da madrugada, para chegarmos na Universidade, antes das 6:00 horas da manhã, ainda com a escuridão reinante. Com apoio da garotada do diretório acadêmico da instituição, fomos a montar rapidamente o nosso backline, e vimos que eles haviam cumprido a promessa para melhorar as condições do PA. De fato, haviam algumas caixas a mais ali instaladas, mais potências para alimentar o sistema e um multicabo com uma extensão razoável para se poder operar a mesa de mixagem.

Na base da pressa, montamos e passamos muito apressadamente o som, e sabíamos de antemão que não dava para tocar sob um volume normal de show de Rock, pois a possibilidade de não nos ouvirmos bem, seria enorme. 

Enquanto terminávamos os preparativos finais, vimos que os portões foram liberados e os estudantes, calouros e veteranos, começaram a lotar a quadra poliesportiva, mas estranhamente, ignoravam o palco, nem mesmo a se motivarem pela mera curiosidade para fitar a movimentação, os equipamentos, e aquele bando de cabeludos ali a trabalharem, o que em pleno curso dos anos 2000, fora algo que poderia ser considerado "normal", talvez, diferentemente como havia sido nos anos setenta. 

Então, quando a quadra já estava bastante lotada, os membros do diretório acadêmico deram-nos o sinal para iniciarmos o show...


Pois foi incrível que ninguém, absolutamente ninguém olhava para nós e a quadra estava repleta por estudantes. Já havíamos enfrentado situações adversas, anteriormente, portanto aquela reação não estremecer-nos-ia de forma alguma, mas foi algo totalmente bizarro para uma banda autoral, com a tradição e história que a Patrulha do Espaço ostentava. 

E tanto não nos abalou, que estávamos a rir da situação, ao emendarmos uma piada atrás da outra, o que me fez lembrar até dos tempos do Pitbulls on Crack, quando de fato, aquela fora uma banda formada por piadistas por excelência, como eu já contei em seu capítulo específico. 

Começamos a tocar a nossa primeira música e sob um patamar de volume que não permitiria que fôssemos ignorados, e mesmo assim, ninguém olhou-nos, o que provocou ainda mais risos de nossa parte. 

Foi uma situação tão inusitada que nem cogitamos haver caracterizado algum tipo de desdém ensaiado da parte daqueles jovens, tampouco uma espécie de bullying coletivo e premeditado (e naquela época ainda não existia o conceito do "Flash Mob", de internet).

Foi simplesmente uma reação espontânea, na forma de um profundo desinteresse coletivo e digo que foi profundo, porque nem os incomodávamos, apesar do volume e da nossa pegada, Rocker. 

Foi uma das reações mais estranhas que eu constatei em toda a minha carreira. Inexplicável a grosso modo, jamais esquecer-me-ei desse dia, justamente por ter sido algo intrigante e inusitado. E ainda houve um requinte nessa história. 

O verdadeiro clímax ocorreu poucos minutos depois, quando ainda estávamos nas primeiras músicas do show, pois um alarme soou no pátio e um aluno veterano, com um megafone em mãos, anunciou que começariam os "trotes", e quem desejasse se submeter a tal prática, deveria ir imediatamente para a outra ala da universidade. 

Como se fosse um grupo de escotismo obediente, todos saíram a correr atrás desse idiota, como cordeiros obedientes. Acho que eu nunca houvera presenciado uma demonstração de subserviência bovina tão grande da parte de uma coletividade, acho que nem mesmo através do comportamento de torcidas uniformizadas em estádios de futebol. 

Enfim, foi muito curioso ver a quadra esvaziar-se completamente, para nos deixar a sós, em meio a um show de Rock, em pleno curso. Atônitos, mas de forma alguma a nos sentirmos ofendidos com tal reação, nós sinalizamos aos contratantes do diretório acadêmico se deveríamos encerrar imediatamente a performance, diante de tal quadro. 

Pelo contrário, eles nos disseram para prosseguirmos até o final, normalmente e ficaram a nos assistir a tocarmos, a se configurarem como meia dúzia de jovens contratantes a testemunharem a nossa performance. 

Entre nós, as únicas reclamações ficaram por conta do equipamento todo improvisado do PA e sobretudo a respeito do horário insalubre. 

No mais, estávamos a sermos pagos para ensaiar e de uma certa maneira, o sacrifício valeu a pena para manter a banda em forma, visto que voltaríamos a excursionar pelo interior de São Paulo, em breve. 

Dessa forma, fomos em frente e solertes até o fim do show, com toda a dignidade e ao encerrarmos, tivemos uma surpresa ainda mais inesperada, mas eu não posso afirmar que fosse algo desagradável.


Achávamos pelo ocorrido, que os contratantes iriam nos pagar e que ficaríamos só com essa história exótica para contar à posteridade, mas fomos surpreendidos pelo teor do que nos disseram. 

Em primeiro lugar, os rapazes nos disseram que estavam profundamente constrangidos pelo comportamento exótico da parte dos estudantes, ao tomarem a postura automática de nos ignorarem sumariamente. Pediram desculpas pelo acontecido, mas claro que esses rapazes não tiveram culpa alguma sobre o ocorrido!

Justificaram, portanto, tal atitude daquela massa de estudantes, exatamente como nós havíamos deduzido que ocorrera, ou seja, a se tratar de uma manifestação de subserviência automática, ao imitar o comportamento bovino.

Enfim, não nos sentimos ofendidos de forma alguma. Fora apenas uma triste constatação de que nos anos 2000, o Rock não fazia sentido para a juventude, vide a reação que tivemos ao fazer um show de Rock, sob o manto da invisibilidade. 

Contudo, considerações a parte, os rapazes surpreenderam-nos na verdade, quando nos formularam um pedido que não esperávamos receber de forma alguma, ainda mais pelas circunstâncias vividas minutos antes, quando nos convidaram a fazermos uma segunda apresentação, durante o período noturno, sob as mesmas condições, ou seja, a recepcionar a turma de calouros desse outro período.

Entreolhamo-nos estupefatos, pois a experiência matutina houvera sido no mínimo, exótica, portanto pareceu-nos uma loucura constatar que desejavam nos pagar um cachê a mais para uma outra apresentação nas mesmas circunstâncias, contudo, foi isso mesmo o que nos propuseram. 

Ora, a pagar bem, por que não? Não é essa a máxima popular? 

Nessa altura dos acontecimentos, a perspectiva de passarmos pela mesma experiência do descaso, não teria como nos incomodar e o cachê dobrado muito ajudar-nos-ia naquele momento conturbado que enfrentávamos, por conta da dissolução da nossa sociedade com o sócio/motorista. 

E assim, aceitamos cumprir a segunda sessão e desta feita, seria ao menos sob um horário mais digno para um show de Rock acontecer. Ficou combinado, portanto, para iniciarmos a apresentação às 19:00 horas.


Trato feito, voltamos para São Paulo, para recompormo-nos.
Deixamos os nossos roadies a vigiarem o equipamento e instrumentos e retornamos ao final da tarde, prontos para o novo combate. 

Não seria um show de Rock tradicional da Patrulha do Espaço, mas praticamente um ensaio aberto e remunerado. Nesses termos, chegamos preparados psicologicamente para enfrentarmos a situação adversa de uma forma ainda mais tranquila, no sentido de que o fator surpresa e/ou gerado pela estupefação pela reação exótica dos estudantes, não surpreender-nos-ia novamente.

Entretanto, não fugiríamos do fator surpresa em 100%, pois ao contrariar as nossas previsões, nessa segunda apresentação, muitos alunos prestaram atenção no show e apesar de ser um evento fechado, o rumor que a Patrulha do Espaço estava na cidade, correu por São Caetano do Sul e cidades vizinhas do ABC e dessa maneira, alguns fãs da banda apareceram e a direção da universidade foi simpática ao liberar a sua entrada nas dependências da instituição. 

Enfim, foi uma apresentação bem mais animada, sob a quase normalidade de um show tradicional da nossa banda.

Dessa forma, poderíamos até comemorar o fato de que fizéramos dois ensaios abertos e remunerados no mesmo dia, em uma oportunidade que surgira inesperadamente e a quebrar um hiato de shows que estávamos a viver por conta do fato de estarmos a tentar resolver o impasse sobre o futuro do ônibus. 

Por falar nisso, havíamos decidido não usar o ônibus nesse compromisso da universidade. Levamos o nosso backline em nossos carros particulares e tal operação houvera sido um tremendo incômodo, devo registrar.

Além de estarmos a viver um clima ruim com o motorista, nesse show em específico, estacionar o veículo seria muito complicado, por conta da ausência de um estacionamento adequado no complexo físico da instituição e dessa maneira, havíamos abortado essa possibilidade. 

Todavia, não contávamos com a hipótese de um segundo show no mesmo dia e quando isso foi acertado, resolvemos pedir apoio do motorista. Sendo justo, ele era temperamental e turrão, havia ameaçado nos boicotar em algumas ocasiões em sinal de retaliação, mas na prática, nunca nos deixara abandonados, apesar do clima desagradável que se criara entre nós. 

Então, lhe convocamos para nos auxiliar nessa tarefa noturna e ele foi solícito, ao sair de uma cidade do outro lado da região metropolitana de São Paulo, no caso, o município de Taboão da Serra, para deslocar-se para São Caetano do Sul, na região do ABC, portanto, a atravessar também a cidade de São Paulo, para chegar a São Caetano do Sul, ou a trocar em miúdos, acredito que a percorrer cerca de setenta Km, cento e quarenta com a volta. Mas ele apoiou-nos com sua van e só pediu-nos uma ajuda para ressarcir o seu combustível ao se mostrar cortês. 

Após a conclusão desse show, o desafio foi resolver a dissolução da parceria com o referido motorista e tomar as providências para assumirmos o veículo sozinhos, e entre outras providências a serem adotadas, contratarmos um novo motorista. 

O tempo urgia e shows já estavam marcados em cidades interioranas paulistas em fevereiro.

A negociação para decretar a dissolução da parceria entre a banda e o sócio/motorista não foi fácil, pois ele endureceu na sua pretensão, ao misturar as questões, no sentido de que não seria apenas o dinheiro que lhe interessava. 

Realmente na sua concepção, nós o havíamos "ofendido" por atitudes em torno da "falta de companheirismo" em sua ótica e turrão, se fechou nessa falsa compreensão dos fatos, ao levar, portanto, tal disputa para o lado pessoal. 

Aqui cabe destacar que ao não distorcer de forma alguma os fatos, mas para ser absolutamente realista, de fato, nada ocorreu da nossa parte para justificar essa interpretação errônea da parte dele e a relação se estragou sem uma razão concreta para tal.

Todavia, por ter chegado nesse ponto, tornou-se irreversível pela incompatibilidade total entre as partes e assim, não coube uma boa conversa de reconciliação e lavagem de roupa suja, mas o melhor a ser feito para todos, seria desfazer a sociedade e cada um tocar a vida, longe do outro. 

De nossa parte, o ônibus fora um mal necessário, pois não obstante ser um poço de problemas permanente, por conta de sua dispendiosa manutenção e a contrastar com a nossa total inexperiência para lidarmos com isso, foi também o fator facilitador para fazermos turnês constantes, um luxo para uma banda que a despeito de sua dignidade histórica, estava inserida no underground da música. 

Por conta disso, com a posse do veículo nós poderíamos seguir na estratégia das turnês, ao minimizarmos custos, estratégia anteriormente impossível de se obter, pelo fato de termos que incluir o preço altíssimo do aluguel de vans ou micro-ônibus no cachê, e assim a afugentar contratantes, como consequência. 

Nas primeiras rondas de negociação, quando percebeu que queríamos o carro a todo custo, o ex-sócio endureceu e fez de tudo para nos atrapalhar. Ele pediu logo de início um preço absurdo, mais para sabotar a negociação do que para tentar obter um lucro real nessa história. Mas nós insistimos e culminamos por fecharmos o negócio, mesmo com ele a se mostrar contrariado.

No dia em que selamos o negócio, ele ameaçou cancelar tudo, quando exigimos que a entrega dos cheques de nossa parte, fosse realizada em um cartório de notas, com ele a transferir o documento de posse, de forma oficial para nós. 

Ele irritou-se, ao alegar que só um louco faria isso, pois o correto seria quitar o último centavo, para depois efetuar a transferência. Isso não foi um conceito errado da parte dele, sob o ponto de vista da legalidade de um negócio. Ao se considerar que vivemos em um mundo dominado por golpistas e velhacos por todos os lados e que ninguém confia em ninguém, ele teve razão em se sentir inseguro com a nossa exigência. 

Contudo, a nossa intenção fora honesta e claro que os cheques seriam (e foram) honrados. Nem passava pela nossa cabeça qualquer outro tipo de atitude do que a da lisura no compromisso, mas ao enxergar pelo nosso lado, não foi que desconfiássemos dele, embora também tivéssemos o direito de desconfiar, ao seguir o mesmo raciocínio moral. 

Contudo, a nossa real necessidade foi a de que precisávamos do ônibus com documentação legalizada em nosso nome, urgentemente, para podermos viajar com tranquilidade e não corrermos riscos em eventuais blitz a ocorrerem nas estradas, com o documento registrado no nome de uma pessoa que não fazia parte de nossa comitiva e a se gerar todo problema inerente que tal situação poderia gerar e nos atrapalhar, muito. 

Foi um clima e tanto, em um cartório localizado no bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Ele chegou a gesticular e se exaltar, mas não de forma hostil, todavia, apenas a demonstrar o seu inconformismo com a nossa posição. 

Após alguns minutos e ao verificar que eu e Marcello estávamos irredutíveis na condução da negociação, finalmente ele se sentou na mesa do tabelião e assinou a documentação, apanhou os seus cheques e assim, selamos a dissolução da nossa parceria.

Estávamos felizes pelo desfecho dessa etapa e aliviados por termos assegurado o ônibus como um patrimônio exclusivo da banda, mas sobretudo, como alavanca importante de nossa possibilidade para excursionar.

Livrarmo-nos do ex-sócio também foi um alívio e aqui cabe dizer que meu objetivo não é "demonizá-lo" de forma alguma, mas deixo claro que não fora a pessoa ideal para termos como parceiro e certamente ele devia achar o mesmo em relação a nós. 

O primeiro desafio logo a seguir, se mostrou premente. Ele viera com o ônibus para a entrega oficial do carro e por ter sido assim, assim, após assegurar as suas folhas com cheques, deixou-nos os documentos e a chave do carro e foi embora, naturalmente.

Nenhum de nós aventurava-se a pilotar o carro, ainda que no meu caso, eu tivesse a licença classe "D", que permitia-me dirigir ônibus, mas eu nunca me interessei em fazer isso. Não tenho experiência alguma com ônibus e caminhões, só conduzo carros de passeio. 

Dessa forma, arrumamos um estacionamento adequado, próximo à residência do Rolando Castello Junior, no bairro da Aclimação, localidade onde eu e o Rodrigo também morávamos e nesse dia da resolução cartorial do imbróglio, um motorista profissional da empresa do pai do Marcello, fez o favor de conduzir o nosso carro para lá. 

Mas isso fora um arranjo meramente emergencial. Não poderíamos contar com esse motorista, mesmo com ele a demonstrar haver se interessado pessoalmente, conforme confidenciou-nos, mas impedido pelas suas funções na empresa, não poderia viajar conosco em hipótese alguma. 

Arrumamos um lugar para estacionar o carro, mas precisávamos urgentemente contratar um motorista e providenciarmos uma revisão no veículo, que agora estava por nossa conta...

Os nossos problemas, ao nos tornarmos donos de um ônibus, estavam apenas a começar, pois os donos do estacionamento que arrumáramos para guardar o carro, nos avisaram previamente que não poderiam nos aceitar como mensalistas doravante, pois o terreno já estava comprometido com a sua venda para uma incorporadora, e em breve, eles teriam que fechar as portas para o trator começar a demolir os muros e assim, novas torres residenciais serem construídas, dentro daquele espírito avassalador da especulação imobiliária. 

Já a ter que enfrentar um novo problema logo de imediato, arrumamos um outro estacionamento, um pouco mais longe de casa, mas ainda localizado no mesmo bairro, entretanto, azar máximo, tal estacionamento também já estava vendido para uma incorporadora, e foi quando nos demos conta que não houvera sido um mero golpe fortuito em relação ao primeiro estacionamento que arrumáramos, mas tratava-se de uma tendência cruel que estava a minar os grandes espaços no bairro e nessas circunstâncias, começamos a nos preocuparmos com a questão de um estacionamento disponível e seguro, que ficasse situado no bairro, perto de nós.

Fachada de uma das várias torres de apartamentos que foram construídas no segundo estacionamento, onde guardamos o nosso ônibus, na esquina da Rua do Paraíso, com a Rua Vergueiro

Do primeiro para o segundo estacionamento, quem dirigiu o carro foi o próprio pai do Marcello que possuía habilitação para tal e um pouco de experiência na condução de caminhões. Contudo, ele sofreu um pouco, pois o segundo estacionamento que arrumamos, ficava localizado no alto da ladeira da Rua do Paraíso e para quem conhece tal rua, sabe bem que se trata de uma ladeira muito íngreme. 

E o drama prosseguira, pois no segundo estacionamento já haviam avisado-nos que fechariam as portas em breve para que uma outra incorporadora começasse a operar as obras de um complexo de torres comerciais que construiriam.

Para quem conhece o local, hoje em dia, ali estão presentes aqueles prédios, cuja aparência arquitetônica remontam aos "Legos", ao lado da saída da Catedral Ortodoxa Grega, na estação Paraíso do Metrô. 

E assim, em um curto espaço de tempo, precisávamos encontrar um terceiro estacionamento, porém mais urgente ainda, a missão foi contratar um motorista e empreender uma revisão no carro, pois tínhamos viagem marcada para três cidades no interior de São Paulo, em muito breve!

 

Por não reunir outra alternativa, tivemos que usar muito a imaginação, para tentar achar tais soluções que mencionei nos últimos parágrafos. 

O terceiro estacionamento que encontramos, ficava localizado no bairro vizinho, da Liberdade, mas o seu acesso era fácil e a distância, pequena, devido ao fato de ser localizado bem na divisa entre os bairros da Liberdade e da Aclimação. 

Ali, aparentemente teríamos um período com estabilidade maior, devido ao fato de ninguém haver nos alertado sobre o fim das atividades do estacionamento, por tal terreno ter sido vendido para uma incorporadora e assim a se levantar as suas torres "maledettas"... mas isso mudaria em breve, como eu narrarei, logo mais. 

Estávamos sem perspectivas para contratar um novo motorista, até que um golpe de pura sorte nos ocorreu!

Ao passarmos por uma rua próxima da residência do Rolando Castello Junior, ele próprio e o Marcello Schevano avistaram um ônibus particular estacionado e com o seu motorista ali a conversar com os comerciantes locais. 

Ambos resolveram parar e perguntar-lhe se conhecia algum colega seu motorista particular com habilitação para conduzir tais veículos, e que interessasse-se em nos conduzir ao interior. O tal senhor não se fez de rogado e lhes disse que ele mesmo aceitaria a missão, imediatamente!

A conversa evoluiu de uma forma muito rápida e o senhor demonstrou real interesse pela oportunidade que lhe caíra do céu, pois tratava-se de um homem simples, que conduzia aquele ônibus de frete, sob uma forma irregular, ao realizar viagens urbanas não autorizadas, no sentido de conduzir passageiros do bairro do Cambuci até São Mateus, no extremo da zona leste de São Paulo, pelo preço de uma passagem urbana normal. 

A desvantagem desses passageiros seria o perigo iminente do carro ser parado em blitz policiais de trânsito e terem a viagem interrompida, com o veículo a ser confiscado e o seu proprietário a se complicar todo com uma multa pesada, além de amargar ficar sem o ônibus, até regularizar tudo. 

Ele nos disse ter sido um motorista de companhias de viagens interestaduais de linha, no passado, além de caminhoneiro, e que detinha experiência na estrada, além de ser mecânico com especialização, para lidar com caminhões e ônibus.

Sem grandes perspectivas no momento e só a possuir aquele meio de trabalho proscrito para sobreviver, ou seja, a passar medo, diariamente, pelo caráter clandestino de seu transporte irregular, o senhor em questão se mostrou muito interessado para conhecer a nossa proposta, e claro que nos animamos, mesmo que ele fosse em tese, um completo desconhecido que conhecêramos a esmo na rua.

De nossa parte, tínhamos um prazo curto para contratar um motorista e a perspectiva dele ser mecânico, mostrou-se convidativa, pois fora com essa perspectiva que compramos o ônibus, meses antes, ao termos confiado na palavra do nosso ex-sócio, visto que no acordo inicial, ele responsabilizar-se-ia pela manutenção do ônibus. 

Independente desse senhor estar a falar a verdade e ser de fato um bom motorista e mecânico, se o fosse, estaríamos no lucro, pois o ex-sócio não era mecânico, mas apenas um curioso, sem muitos conhecimentos. Portanto, viajar com alguém que tivesse esse atributo, seria uma facilidade para nós. 

Ao se mostrar realmente interessado, ele quis conhecer o nosso ônibus e assim que chegou ao estacionamento, se dispôs a fazer uma inspeção inicial nos pontos mais críticos do carro. 

Foi quando descobrimos um fator chocante e completamente incautos que éramos em relação a manutenção de um ônibus, nem havíamos nos dado conta de tal detalhe. Há muitos parágrafos atrás, eu deixei um anúncio enigmático, que tenho certeza de que o leitor, mesmo o mais atento, já não deve se lembrar mais, dado o volume grande de histórias que eu arrolei posteriormente. 

Mas refresco-lhe a memória, amigo leitor: na primeira grande turnê contínua que fizemos, com cinco shows em cinco cidades diferentes, em dezembro de 2001, o nosso ex-sócio resolvera trocar o óleo do veículo em São Carlos-SP, a se tratar do segundo destino daquela etapa da turnê. 

Para tanto, ele comprou dois baldes de plástico, com o objetivo de não emporcalhar o estacionamento local. Bem, quando o nosso novo motorista/mecânico abriu a tampa do motor para checar o óleo...

O "seu" Wagner, o nosso virtual novo mecânico e motorista chamou-nos a atenção para uma pequena monstruosidade que visualizara no motor. Um dos baldes que o ex-sócio havia usado em dezembro de 2001, estava ali, todo disforme e derretido. 

Tratava-se de uma massa plástica em formato fractal, mas ao contrário do que se imagina sob tais formações da natureza, esta mostrava-se horrenda, a se parecer com o "Retrato de Dorian Gray", se me permite o leitor que eu faça uma citação literária & cinematográfica...

E o que significava aquela representação grotesca? Bem, o nosso ex-motorista esquecera o balde dentro do motor e assim, nós rodamos por milhares de kilometros, desde então, com o triste balde a se transformar em uma matéria plástica, disforme. 

Mas o grande problema não foi a perda de um balde vagabundo, com valor irrisório, mas o perigo incrível que corremos com aquele objeto a derreter dentro do motor e a nos submeter à iminência de um incêndio e sabe-se lá em que circunstância, portanto a poder até se alastrar rapidamente e a nos colocar sob o risco de morte, ou na melhor das hipóteses, a nos causar um grande prejuízo material. 

E a constatação evidente foi: o ex-motorista nunca mais se dignou a checar o nível de óleo e água do veículo, o que segundo o "seu" Wagner, seria a praxe diária de qualquer motorista profissional, minimamente consciente.

Boquiaberto, ele nos alertou que aquilo foi um absurdo e claro que houve a nossa "mea culpa" nessa história também (pois como donos do veículo, mesmo por sermos leigos e no trato que tínhamos, a responsabilidade da manutenção ser do ex-sócio), nenhum de nós quatro, membros da banda, interessou-se em lhe perguntar, que fosse, se o óleo e a água estariam em dia e esses seriam apenas dois dos itens mais básicos das necessidades do veículo. 

De minha parte, eu confesso que tenho horror a manutenção de autos. Sei o básico do básico sobre o assunto, como usuário, e irrita-me profundamente tal assunto. O que dizer então sobre a manutenção de um ônibus? 

Bem, feita essa constatação toda, escapamos de um incêndio e após o balde ali ter se alojado em dezembro de 2001, nós continuamos a viajar pelo interior, voltamos para São Paulo, fomos de novo ao interior e voltamos, viajamos ao Rio Grande do Sul e voltamos... ou seja, foram pelo menos cinco mil kilometros, sob uma conta grosseira, sem detalhar muito. 

Então, o "seu" Wagner se prontificou a trocar o óleo e alguns filtros, gratuitamente, já a agir como se fosse o nosso mecânico e só a pedir para comprarmos o material. E assim ele o fez, mas sem deixar nenhum balde em seu interior, desta feita. 

Acertamos um valor, e ele conduzir-nos-ia para o interior de São Paulo, a demarcar a sua primeira viagem, portanto, no comando da nossa "nave ave". 

Já entrosado conosco, ele nos pediu para o chamarmos pelo apelido que possuía: "Alemão". Viajaríamos no final de semana para Ribeirão Preto, São Carlos, e Mirassol, três cidades interioranas paulistas e a demarcar a ocorrência de três shows.


Apesar desse suposto golpe de sorte em "acharmos" um motorista que também fosse mecânico a salvar-nos, a figura do "seu" Wagner ou "Alemão", como queria ser chamado, fora uma incógnita em primeira instância. 

De fato, ele era habilitado para dirigir ônibus e nós sabíamos que ele ganhava a vida a pilotar um ônibus clandestino no transporte público urbano de São Paulo e não obstante tais constatações, mostrou-se solícito e eficaz ao trocar o óleo e alguns filtros do carro, além de realizar algumas outras verificações na suspensão, freios e parte elétrica do veículo.

Mas a verdade foi que o contratáramos sem referência alguma e enfrentaríamos uma viagem para três cidades interioranas e entre ida e volta, seriam cerca de mil kms para rodarmos. Será que ele era realmente bom como motorista para assumir tal responsabilidade? Sem meios para checar e sem outras opções disponíveis, nós só fomos conhecer os seus atributos profissionais, em plena estrada...

Em Ribeirão Preto-SP, o primeiro destino, seria um show a ser realizado em uma casa noturna, marcado para a sexta-feira. No sábado, tocaríamos no Sesc de São Carlos-SP, e no domingo, tocaríamos em outra casa noturna, na cidade de Mirassol-SP. 

No dia da viagem, eu recebi uma comunicado a pedir-me para ir buscar o "seu" Wagner em sua residência, por que ele alegara que se viesse mediante o uso de condução para o nosso bairro, atrasaria muito o início de nossa viagem, isso por que supostamente estaria a ocorrer uma greve de motoristas de ônibus urbanos na zona leste da cidade e dessa forma, por morar em um bairro longínquo e sem estações do metrô por perto, ele não possuía meios para locomover-se à zona sul, porque a sua única alternativa seria ir a pé, até a estação de metrô mais próxima e isso significava muitos kilometros de distância. 

Claro que não se configurava como uma situação correta. O empregador não tem obrigação alguma de ir buscar o seu empregado em domicílio, isso é óbvio. Todavia, diante de um fator excepcional que é sempre o transtorno de uma greve no setor de transportes, para o povo mais humilde que não tem outra alternativa, claro que imbuí-me com o espírito de grupo e assim entrei no meu carro e mediante o auxílio de um mapa desses que vendem em bancas (antes do Google Map e sobretudo do GPS popularizar-se, todo mundo mantinha uma "Mapograf" ou um "Guia Quatro Rodas" no porta luvas do carro e confesso que ainda tenho esse costume), lá fui eu ao distante bairro de São Mateus, no extremo da zona leste de São Paulo, no intuito de  minimizar atrasos para a nossa viagem.

O "Seu" Wagner era um homem simples, mas dentro das características de sua personalidade prosaica, era brincalhão, muito emotivo e quando me avistou a aproximar-me na porta da sua casa, praticamente marejou os olhos e agradeceu-me efusivamente pela minha atitude de ter ido buscá-lo. 

Na sua ética particular, tal gesto da minha parte equivaleu a um sinal de respeito e humildade, do qual ele certamente não estava acostumado em ser tratado por parte de pessoas de classes sociais mais abastadas. No meu caso, foi algo normal, na medida em que trato qualquer pessoa com respeito, pois faz parte de minha educação básica desde o berço, não discriminar ninguém, mas aos olhos desse homem humilde, fora algo excepcional.

Bem, dali em diante, essa admiração pela minha pessoa trouxe o lado ruim e pegajoso, pois automaticamente ele passou a me enxergar como um "protetor" seu, em diversas circunstâncias e assim, muitas vezes no futuro, aborreceu-me a sua insistência para que eu sempre interviesse a seu favor, quando conflitos surgiram. Entretanto, isso fica para ser relatado mais para a frente, pois não vou atropelar a narrativa. 

Ali naquele momento, ele mostrou-se agradecido e muito falante, e assim se portou durante todo o percurso até a zona sul, a contar-me sobre histórias vividas na estrada como motorista de ônibus de linha e caminhoneiro. 

Mais que querer impressionar-me, deu para sentir que ele realmente tinha essa experiência que dizia possuir, mas convenci-me mesmo de sua sinceridade quando percebi que demonstrara ter paixão pela profissão, e no meio da conversa, deixara escapar que sentia saudade da estrada e que há muito tempo não tinha essa oportunidade para dirigir nela, longe da loucura da cidade e a fugir de blitz policiais urbanas, visto que o seu ônibus era clandestino. 

Isso tranquilizou-me parcialmente, pois mesmo ao constituir-se em uma aposta no escuro, pareceu-me que ele realmente seria do ramo, e que levar-nos-ia para essa excursão, em segurança, com bastante profissionalismo ao volante.

Chegamos ao nosso destino e ele assumiu o ônibus no estacionamento em que estava alojado, fez os seus ajustes de praxe e dali nós fomos para a minha residência, onde estava armazenado todo o equipamento da banda. 
 
Carregamos o carro e a contarmos com um roadie improvisado, visto que não contaríamos mais com o carrier que era amigo do ex-sócio e de fato, aquele rapaz era desqualificado para a função. Mas sem providenciarmos alguém do ramo, o próprio, Samuel Wagner, nosso roadie oficial, tratou por indicar-nos o Marcelo Fortunato, baterista da banda, "Montanha", de Santo André-SP, que aceitou auxiliar-nos nessa etapa da turnê. 
 
Abastecemos o carro e fomos para a estrada. Inicialmente fomos para Ribeirão Preto-SP, sem nenhum incidente, com absoluta tranquilidade e com o "seu" Wagner a entrosar-se rapidamente com toda a banda, ao criar brincadeiras, rir conosco, mas ao mesmo tempo, demonstrar uma direção absolutamente segura e profissional. 
 
Chegamos em Ribeirão Preto ao final da tarde e fomos direto ao local onde tocaríamos, para montar o palco e estabelecer o soundcheck. Nem passava pela nossa imaginação que aquele início de uma nova etapa da turnê, tranquila e sem percalços, seria na verdade, mudada radicalmente, pois essa etapa da turnê ficou marcada posteriormente, por ter sido uma das mais dramáticas que tivemos, e eu vou narrar tudo, certamente.

O local em questão, chamava-se: Paulistânia Rock Bar, uma casa que normalmente promovia shows com bandas cover, mas também abria as portas para bandas com trabalhos autorais, louvável atitude, portanto. 

Ficava localizada próxima ao viaduto que dá acesso à Avenida Independência, para quem conhece Ribeirão Preto, meu caso em particular, visto ser a cidade natal de minha mãe e onde eu sempre tive tios e primos a morarem.

Fachada da casa de espetáculos, "Paulistânia Rock Bar", em Ribeirão Preto-SP
 
Tratava-se de uma casa rústica sem grandes recursos e pelo contrário, continha as suas limitações, aliás precariedades, para ser bem sincero. O PA disponibilizado fora bastante inadequado e na base da camaradagem, o pessoal da banda, "Homem com Asas", de São Carlos-SP, além da vocalista da banda, "Senhor X", de Ribeirão Preto (Carla Viana), foram fundamentais no apoio, ao ajudar-nos com o empréstimo de equipamentos suplementares, para encorpar o fraco equipamento da casa. 

A iluminação também deixara a desejar e o palco mostrava-se sob uma pequena dimensão, ao deixar a banda sem muita possibilidade de mobilidade cênica, aliás, nenhuma. Mas como já havíamos tocado em palcos ainda menores (em São Leopoldo-RS, poucos dias antes, e no Tom Tom Clube de São Paulo, em 2001, por exemplo), aquele não seria o nosso maior desafio.

A vocalista da banda "Senhor X", Carla Viana, que é muito boa cantora/performancer, além de ser uma pessoa gentil, ao extremo

A banda, "Homem com Asas" de São Carlos, faria o show de abertura e no dia seguinte, o "Senhor X" de Ribeirão Preto, abrir-nos-ia, em São Carlos, com tal inversão a significar uma oportunidade para cada banda tocar em cidades diferentes, a expandir os seus próprios horizontes. 

Fizemos o soundcheck e na medida do possível, acertamos o melhor som naquelas condições de equipamento. Fãs da Patrulha do Espaço nos abordaram na porta do estabelecimento, na hora em que estávamos a sair do estabelecimento para o hotel, e estes afirmaram que administravam um fanzine e queriam nos entrevistar. 

Cansados e com vontade de nos recolhermos para um banho, descanso e jantar, naturalmente que não seria um momento adequado para conceder uma entrevista. Mas eu prontifiquei-me a ficar, pois sempre tive em mente que o fã tem que receber atenção, pois é em tese, o elo que sustenta toda a carreira do artista, sem dúvida. 

Não quero dizer com isso que os meus companheiros não pensassem assim também, mas naquela circunstância, com o tempo escasso, realmente o correto teria sido nos despedirmos amigavelmente dos rapazes, e da moça que compunham essa pequena comitiva e deixar a entrevistada solicitada para um outro momento, no pós-show, de preferência, no entanto, eles alegaram que não poderiam ficar, pois não eram de Ribeirão Preto, mas de outra cidade da região e assim, no momento do pós-show teriam que sair apressadamente para não perderem a condução de volta à sua cidade. 

Dessa forma, o meu "coração mole" agiu e por conta disso, eu me voluntariei para atender os jovens em questão.

Paguei um preço por isso, pois quando cheguei no hotel, todos já descansavam, já estavam banhados e o jantar havia sido servido.

Para piorar a situação, eis que eu descobri ao entrar no meu quarto, que as minhas malas não haviam sido retiradas do ônibus e tal situação teria que ser resolvida, imediatamente. Infelizmente, esse imbróglio gerou um pequeno momento de nervosismo e após uma peregrinação de quarto em quarto, para saber com quem estava a chave do carro, tive enfim a oportunidade para reaver as minhas malas. Em suma, cenas de uma banda em turnê e sem contar com um "road manager" profissional para cuidar dessas trapalhadas, que sempre acontecem. 

Fomos para o show, enfim e quando chegamos ao Paulistânia Rock Bar, o "Homem com Asas" já estava a se apresentar. Já os conhecíamos desde que abriram nosso show em São Carlos, no ano de 2001 e sabíamos muito bem da sua qualidade técnica e bom gosto para escolher um set list baseado em Classic Rock, mas a privilegiar o lado B, selecionado só para Rockers absolutamente escolados na matéria, poderem reconhecer tais pérolas. Claro que para nós, foi uma delícia ouvir tal material e tão bem tocado, mas sinceramente, houveram dois aspectos a deporem contra nessa predisposição que eles mantinham:

1) Para o lado prático deles, ao tocarem tantas músicas "não conhecidas", tais escolhas não poderia lhes dar muitas oportunidades para se apresentarem no circuito cover das cidades interioranas, se continuassem a pensar dessa forma.

2 ) Eu ficava frustrado em ver uma banda tão boa daquela categoria e por não investir em um trabalho autoral, condição que tinham tudo para empreender com alta qualidade. Mas claro, isso não era da minha alçada.

Enfim, constatações a parte, fora apenas um lamento de minha parte e neste caso, a direção artística de uma outra banda da qual eu não era componente, não seria da minha competência, naturalmente. 

A casa estava abarrotada, apesar da precariedade de suas condições técnicas com som e iluminação e o show prometia pela grande audiência presente. Contudo, observador que eu sempre fui, percebi que a despeito de haver no ambiente um bom contingente com Rockers e nitidamente com alguns fãs da Patrulha do Espaço mediante discos de vinil em mãos para a posterior abordagem e pedido de autógrafos, o clima reinante no ambiente pareceu-me um pouco blasé. 

O "Homem com Asas" tocava sons incríveis que só ouvidos Rockers mais refinados conseguiriam identificar e isso denotou, por conseguinte, que a maioria ali presente no ambiente não detinha esse refinamento, por se considerar estarem alheios à ótima performance da banda. 

Foi um indício, portanto, de que não seria mesmo o público mais adequado para uma banda autoral, com as nossas características. Quando começamos o nosso show, de fato, tirante os Rockers mais preparados e os fãs confessos da Patrulha do Espaço, ali presentes, o clima foi blasé, na maior parte do nosso set.

A despeito disso, nós cumprimos a missão com a galhardia de sempre e quem apreciava a nossa banda saiu desse local, muito satisfeito, e isso foi o que nos importou ao final das contas. 

Foi a noite do dia 22 de fevereiro de 2002, uma sexta-feira muito quente de verão, potencializada pela característica natural daquela cidade interiorana, tradicionalmente, muito quente, durante o ano inteiro. 

Saímos do palco extenuados, a suarmos em píncaros. Atendemos aos fãs, ali, sem uma estrutura adequada com camarins, como seria o ideal, com a possibilidade para nos recompormos etc. 

Ficou combinado então que todo o nosso equipamento ficaria resguardado na casa, e no dia seguinte, após o almoço, nós passaríamos lá para resgatá-lo e seguirmos viagem para São Carlos-SP, aonde apresentar-nos-íamos no sábado. 

A nossa programação teve tudo para ser muito tranquila, pois a distância entre as duas referidas cidades é de apenas oitenta Km, portanto, um percurso curto que permitir-nos-ia descansarmos, almoçarmos e partirmos ao início da tarde, para chegar ao nosso destino antes do horário combinado para a realização do soundcheck. 

Entretanto, não poderíamos imaginar que o momento ameno dessa etapa da turnê estivesse por finalizar-se ali, com o final do show em Ribeirão Preto, pois uma incrível sucessão de fatos desagradáveis estaria por acontecer. 

Cerca de trezentas e cinquenta pessoas estiveram presentes nesse show. Tranquilos até então, dispersamos entre nós, ao iniciarmos um período de reclusão, onde cada um da comitiva foi gastar as suas horas livres como desejou. A maioria resolveu ir para o hotel, a buscar o sono reparador. Outros foram dar uma volta com companhias femininas recém adquiridas etc.

Um membro de nossa comitiva, o roadie, Samuel Wagner, foi dar uma volta na Avenida Junqueira, ali próxima do hotel onde estávamos e voltou rápido, pois o clima que encontrara fora de uma verdadeira "cracolândia", e ao sentir a iminência de um assalto, com marginais a rondá-lo, ele não quis arriscar. 

De fato, a Ribeirão Preto pacata que eu conhecera em minha infância em visitas que ali empreendi através de períodos de férias escolares ou feridos prolongados, não existia mais. Andar pelas ruas do centro da cidade durante a madrugada, não foi nada recomendável. 

Eu resolvi esperar acordado pelo café da manhã, que já estava para ser servido pelo serviço do hotel. Fiquei ali no saguão vazio, meditativo por alguns minutos, quando o Samuel chegou, a contar-me sobre o perigo que passara na rua, e logo depois chegou o Rodrigo, acompanhado de uma garota que conhecera naquela noite. 

O saguão onde se servia o café matutino, abriu-se e pela janela, eu notei que se iniciara uma chuva leve, nada que assustasse, mas que comemorei por representar uma boa chance para amenizar o forte calor típico da cidade. 

Terminado o café, fui para o quarto dormir e eram quase sete da manhã quando eu percebi que a chuva começara a apertar. -"bom para dormir", eu pensei ...

Adormeci, mas não tive o repouso que esperava, pois logo eu acordei sob gritos que ecoavam pelos corredores do hotel. A chuva estava a cair sob um patamar torrencial, mas muito pior que a chuva em si, foi o fato de que as pessoas pareciam estar em desesperadas. 

Diante de tal reação coletiva sob histeria, claro que saltei da cama e fui verificar o que ocorria. O pânico estava instaurado, pois a chuva havia causado uma inundação monstruosa já em pleno curso na rua. O andar térreo do hotel estava com um metro e meio de água dentro, com todos os móveis submersos e alguns a flutuarem. Foi desolador ver cadeiras e outros móveis e objetos a boiarem descontroladamente.

Houve um clima de desespero generalizado, pois muitos hóspedes tinham horário para prosseguir viagem e com tal impedimento, ficaram ilhados no hotel. Muitas preocupavam-se com a situação de seus automóveis, também. 

Encontrei-me com o Rodrigo Hid, no corredor dos nossos quartos e ele falou-me que havia um terraço no primeiro andar, onde a visão da rua se mostrava impressionante. Fui lá e vi que muitos hóspedes estavam estarrecidos a olharem para os estragos perpetrados pela chuva. 

A avenida estava completamente inundada e sob uma altura impressionante. Para se ter uma ideia, os "orelhões" a conterem os telefônicos públicos, estavam submersos. Carros e motos boiavam, literalmente! Mas haviam também outros objetos a passarem, como por exemplo, sacos de lixo e dejetos em geral, mas vimos também algo muito mais dramático: vários animais domésticos carregados pela enxurrada! 

Naturalmente que muitos desses pobres animais estavam na rua, mas muitos foram levados também oriundos de quintais residenciais, pois vimos muitas tartarugas a serem arrastadas, por exemplo. A enxurrada continha uma força impressionante, a passar como um verdadeiro, Tsunami.

Nessa altura, já sabíamos que o nosso ônibus havia sido salvo por um triz, pois assim que começara a enxurrada, o "seu" Wagner saiu apressadamente de seu quarto e a nado, literalmente, foi até ao estacionamento onde o nosso carro estava guardado na mesma avenida e o posicionara sob uma elevação, através de uma rampa, a evitar assim que a água inundasse o escapamento e o motor do veículo. 

Independente disso, com aquela inundação impressionante, começamos a nos preocuparmos muito com a perspectiva sombria de que a água demorasse a escoar e assim, a nossa viagem a São Carlos sofreria um considerável atraso. 

E em São Carlos seria justamente o melhor show da excursão, teoricamente, pois tratar-se-ia de uma apresentação a ser feita no Sesc, com a melhor estrutura possível em termos de som, iluminação, infraestrutura do camarim, perspectiva de grande público e um cachê sob valor alto, fixo e pago imediatamente graças a um acordo com a produtora que intermediara o nosso acerto a se evitar a morosa burocracia da instituição. Enfim, ficamos a partir dessa catástrofe, muito apreensivos sobre a nossa ida à São Carlos e não foi para menos. 

As horas passaram e ali naquele terraço, víamos o lento escoamento da água, já sem a proeminência da chuva, que encerrara-se. 

Comemoramos o fato visível de que água estava a abaixar de fato, mas concomitantemente, estávamos atônitos ao constatar que o estrago houvera sido brutal. O asfalto, a partir do momento em que ficara visível, estava todo destruído, com buracos que mostravam-se como verdadeiras crateras lunares e também a apresentar enormes chapas disformes, ao parecer instalações de arte moderna, compostas por asfalto em forma bruta, que impossibilitava completamente o tráfico de veículos. 

As pessoas começaram a saírem à rua para ver de perto os estragos e nesse momento, vimos cenas dramáticas, para cortar o coração. Lojistas desesperados a abrirem os seus estabelecimentos e a verificarem o estrago completo de suas instalações e mercadorias, por exemplo. 

Particularmente, eu vi uma cena horrível. A dona de uma boutique, assim que abriu a sua loja, desmaiou ante a visão do prejuízo certo, graças aos estragos causados pela inundação, sendo amparada por outras pessoas. Que choque deve ter sentido ao ver o seu estabelecimento destruído, e sabe-se lá como poderia superar tal revés, se é que tenha sido possível.

Uma outra loja destruída que vimos, foi uma concessionária de motocicletas. Foi desolador ver as motos empilhadas e certamente bastante avariadas, senão inutilizadas por completo. 

O barro formado também fora um elemento subterrâneo e umedecido a ser considerado. Diante da força da enxurrada, tal matéria bruta tratou por enlamear tudo com uma força inacreditável. Já passava das quatro da tarde quando chegáramos em um horário limite para tomar o rumo para São Carlos, se não saíssemos imediatamente daquele hotel.

Resolvemos tomar essa providência urgentemente e para tanto, o "seu" Wagner falou para nós caminharmos com as nossas bagagens pessoais até o estacionamento, pois não haveria condição de parar o nosso carro na frente do hotel. 

Ora, esse foi o menor de nossos problemas naquele instante e claro que fomos a caminhar com as nossas malas. Mas até esse detalhe, facilmente contornável, foi difícil para se cumprir, com as calçadas e o rolamento da rua, completamente destruídos. 

Quando chegamos ao ônibus, comemoramos o ato heroico do "seu" Wagner, pois acaso ele não tivesse nadado, literalmente, até o estacionamento e mudado a posição do veículo no pavimento, ele teria sido inutilizado, ao deixar-nos sob uma situação dramática. 

Mas ao mesmo tempo em que se preservou o motor e o escapamento do carro, a sua dianteira ficou bastante comprometida, e muito barro adentrou e sujou completamente a nossa área de passageiros e claro, a cabine do motorista. 

"Seu" Wagner estava muito preocupado, ao realizar testes básicos na parte elétrica do carro, enquanto arrumávamos as nossas malas, mas de pronto, disse-nos que o carro estava a funcionar, mas ele estava muito preocupado com o nível do óleo, também com o possível comprometimento dos filtros e o pior de tudo, o sistema de freios. 

O carro rodou e no pequeno percurso até o bar, onde tocáramos na noite anterior, deu para sentir que ele estava engasgado. Paramos na porta do Paulistânia, e enquanto os roadies carregavam rapidamente, com a nossa ajuda para acelerar o processo, "Seu" Wagner continuava a estabelecer verificações e a se mostrar muito preocupado. 

Chegamos na estrada vicinal que liga Ribeirão Preto a São Carlos e a despeito da nossa dramática pressa pelo avançado do horário, o nosso novo motorista foi taxativo e sugeriu que parássemos em um posto e realizássemos a troca de óleo e filtros, sem a qual, haveria o risco grande de pararmos na estrada com uma pane. 

E assim, na altura da cidade de Cravinhos-SP, localizada a apenas quatorze km distante de Ribeirão Preto, paramos em um posto.

O tempo estava contra nós. O atraso que tínhamos adquirido por conta do dilúvio, inundação e estragos nas vias públicas de Ribeirão Preto, a dificultar a nossa saída, foi enorme. Sem alternativa, resolvemos parar para efetuar a troca de óleo e filtros. Essa seria uma operação demorada para um carro de passeio, quiçá para um ônibus. 

Mas seria melhor perder quarenta valiosos e escassos minutos, a ter uma pane na estrada e perder o show. O clima pesou entre nós. Ninguém teve culpa por esse revés, sob nenhum aspecto, logicamente, entretanto, os nervos estavam a flor da pele, e dessa forma, o melhor foi permanecer o máximo do tempo, calado para evitar mais atritos.

O "Seu" Wagner havia perdido roupas, por conta de ter nadado na água podre da enxurrada. Ao dizer-nos estar com bastante enjoo, ele passou a ingerir leite para tentar neutralizar o mal-estar que sentia por ter ingerido aquela água fétida, e mesmo assim, não tivemos nenhum elemento plausível para afirmar que a simples ingestão de leite, seria suficiente, e nem mesmo adequada para coibir um dor estomacal e promover uma limpeza gastrointestinal.  

Com dor e tudo, ele trabalhou com afinco para efetuar a troca de óleo, o mais rápido possível. E se aquela fora a sua primeira viagem e estava em experiência conosco, já estava aprovado, não só pela condução segura, mas principalmente pela atuação no momento crítico da tragédia aquática, ao salvar o nosso carro do colapso. 

A parte social do carro estava um nojo, pois o barro tratou de torná-la um chiqueiro, literalmente. Já começava o crepúsculo, quando o "seu" Wagner anunciou que estávamos prontos para partir. O tempo urgia, pois já estava ultrapassado o horário previsto para o soundcheck tranquilo que achávamos que faríamos, um dia antes, quando nenhuma gota de chuva ainda havia caído.  

O gasto monetário com uma inesperada nova troca de óleo e filtros, visto que havíamos tomado essa providência anteriormente em São Paulo, não foi o pior a se lamentar, naquele momento, mas claro que somou na conta do aborrecimento geral. 

Para amenizar, o visual da estrada ao crepúsculo, estava lindíssimo. Rajadas de sol poente trespassavam as árvores e o silêncio dentro do carro nos deixou um pouco mais relaxados, quase com a certeza de que o pior passara. Atrasar-nos-íamos, sem dúvida, mas daria certo em nossa ótica, mesmo sem a possibilidade de um soundcheck tranquilo. Talvez nem desse tempo para um soundcheck, superficial, em realidade. 

Chegamos na entrada de São Carlos-SP, enfim, e após uma certa apreensão para acharmos o endereço do Sesc, nós chegamos na porta de entrada da instituição e ao menos tivemos uma bela visão: uma multidão aguardava em fila que o momento para que portão principal da instalação se abrisse. 

Fora a visão de uma massa a denotar ser um tipo de público jovem, enorme em sua profusão e que estava ali para nos ver com ansiedade. Por alguns segundos, ao olhar a fila pela janelinha do ônibus, eu me lembrei dos anos setenta e daquele clima maravilhoso de porta de teatros e ginásios esportivos, com os "freaks" a aguardarem o momento para adentrar o recinto para um grandioso concerto de Rock! 

Pois nesse breve instante, eu me senti feliz por estar ali e a realizar o meu sonho adolescente, forjado no longínquo ano de 1976. Sim, eu estava em 2002, a tocar em uma grande banda de Rock, com história e árvore genealógica nobre na história do Rock brasileiro e aquela multidão ansiava pela minha banda subir ao palco. Nessa breve divagação pessoal, todo o drama vivido pelo atraso descomunal, houvera sido obscurecido. O Rock falara mais alto, a missão tinha que ser cumprida e ponto final. Todavia, novos dissabores nos aguardavam...  

 

Após uma rápida confusão com alguns funcionários do Sesc, finalmente alguém nos indicou o caminho para o ônibus descarregar o equipamento, através de uma entrada de serviço. Entretanto, essa entrada era localizada na rua paralela, atrás da entrada principal da instituição e por ser uma ladeira, deixava a entrada de serviço sob uma espécie de encosta íngreme. 

Com tal dificuldade topográfica ali observada, tivemos que descer um declive acentuado sobre um gramado, visto que a tal entrada era recuada da calçada e quando nos aproximamos do portão, fomos informados pelos funcionários da instituição que o ônibus não entraria, pois logo adiante do portão, havia uma escada que já dava acesso ao ginásio poliesportivo, onde aconteceria o show. 

Dessa forma, tivemos que estacionar o ônibus na proximidade do portão e fazer o descarregamento ali, com os roadies a enfrentarem o declive e uma escada perigosa a seguir, para depois serem obrigados caminharem por toda a quadra e finalmente subirem mais uma escada, para suspender o equipamento no palco, que ostentava uma altura bem alta (acredito que media mais de dois metros do chão). 

Além desse esforço hercúleo, o tempo urgia. Tínhamos pouquíssimos minutos para arrumar o palco, tentar fazer um soundcheck muito básico, e arrumarmo-nos para o show. Os técnicos de som e iluminação contratados pelo Sesc, foram solícitos e bastante camaradas para nos auxiliarem a termos um soundcheck mínimo, ainda que o tempo estivesse estourado e os funcionários do Sesc, se mostrassem aflitos para abrir o portão principal e assim deixar o público que estava impaciente na rua, entrar. 

Contudo, mais um desastre aguardava-nos! Essa etapa da turnê não seria marcada somente pela inundação de Ribeirão Preto, infelizmente!

Isso por que ao estacionarmos o ônibus, com a dificuldade inerente de se parar aquele bólido sob uma ladeira íngreme e ao levar-se em conta o fato de que não tínhamos o "manequinho" (freio de mão de ônibus e caminhões), em ordem, o fato foi que nós usávamos nessas circunstâncias um calço muito forte e manufaturado especificamente para essa função, com formato anatômico ao pneu de n° 900 (carros de passeio geralmente usam o 175).

Foi então que de uma maneira muito imprudente, quando o "seu" Wagner solicitou que alguém colocasse o calço, com ele a segurar o carro no freio do pedal, o Marcello Schevano prontamente prontificou-se a realizar tal tarefa. 

Poderia ter sido qualquer um de nós e geralmente era o roadie, Samuel Wagner, ou eu mesmo, Luiz quem fazia isso, mas naquele dia, o Marcello antecipou-se e apanhou o calço, que ficava sempre colocado perto da poltrona do motorista. 

Eu estava dentro do ônibus, preocupado em apanhar as malas pessoais de todos, quando ouvi um grito horripilante! O ônibus descera um pouco e esmagara a mão do Marcello entre o calço e o enorme pneu! Por uma fração de segundos pensei: -"a sua mão está arruinada, que tragédia!"

Naquela fração de segundos, sem saber a real situação, pensei no pior, e o quanto aquilo poderia ter sido catastrófico para um jovem talento que desabrochava, artisticamente, caso do Marcello. Passou também pela minha imaginação, a cena tétrica a dar conta de levá-lo às pressas para um Pronto-Socorro, com a sua mão arruinada, a ceifar-lhe a sua carreira. 

Foi um horror tal sentimento durante aqueles segundos entre o grito e a constatação mais realista da situação, não tenha dúvida disso, amigo leitor. Todos correram, naturalmente para socorrê-lo, mas o quadro, ainda bem, não fora tão grave, por incrível que pareça, ainda bem!

De fato, houve o ato da prensagem da mão, mas o "seu" Wagner foi rápido, ao segurar o carro no freio de pé. A prensada foi doloridíssima, mas não quebrou-lhe nenhum osso, aparentemente.

Surgiu um hematoma feio e que produziu a inibição dos movimentos musculares normais da mão, pulso e dedos, sob um primeiro momento. Mesmo afastada a pior hipótese, que seria a da fratura, naquele momento o mais prudente teria sido cancelar o show, e a apresentação do dia seguinte estaria também seriamente propensa a ser descartada de imediato. O correto teria sido levá-lo imediatamente ao Pronto-Socorro mais próximo e depois de prestado o primeiro atendimento emergencial e quiçá os exames preliminares, voltarmos para São Paulo com o Marcello a iniciar o tratamento e repouso absoluto.

Todavia, valente e com forte espírito de grupo, o próprio, Marcello, recusou terminantemente a ideia do cancelamento e disse que faria o show, nem que fosse para cantar as músicas em que seu vocal era o principal e que nós conduzíssemos o espetáculo como um trio instrumental. 

De fato, sob uma emergência, poderíamos realizar o show somente comigo (Luiz), Junior e Rodrigo a tocarmos, mesmo que isso representasse um enorme prejuízo sonoro, e nas músicas mais imprescindíveis, onde a presença dele, Marcello fosse vital na guitarra ou nos teclados, as cortaríamos do set list, ao substituí-las por outras mais fáceis para serem tocadas, em formato de Power-Trio. 

Como estávamos aflitos para colocar o equipamento o mais rápido possível em cima do palco, nem todo mundo presenciou tal cena horrível. No entra e sai, os roadies estavam a transportar o nosso equipamento e por isso o Marcello se voluntariara para colocar o calço no ônibus, daí ao expor-se ao acidente. 

Cabe aqui uma reflexão: tal tarefa é perigosa e claro que ninguém merece se machucar dessa forma. Geralmente quem faz isso é o ajudante de caminhoneiro, que tem experiência para lidar com tal ação, embora pareça uma tarefa prosaica que qualquer pessoa possa cumprir. 

No caso de um conjunto musical, o correto é que os componentes não se arrisquem ao realizarem tarefas pelas quais possam se contundir, principalmente ao preservarem os braços, mãos & dedos, isso é óbvio. As mãos dos roadies e do motorista também não merecem se machucar, isso é evidente, mas pela função, sem um músico não há show, se não há show, não há turnê.

Eu mesmo, Luiz, que muitas vezes cumpri essa função do calço, também errei por me arriscar. Nunca aconteceu nada comigo e acreditem, eu fiz isso inúmeras vezes, muito mais que o Marcello, que foi muito azarado, nesse aspecto. 

Para corroborar tal advertência existe até uma história nos anais do Rock, a clássica passagem de que o Robert Plant, vocalista do Led Zeppelin, era constantemente advertido pelo empresário da banda, Peter Grant, por que ao contrariar as suas ordens expressas, este adorava ajudar os roadies a montarem o palco. 

Ele fazia até loucuras, como ao se pendurar em escadas altíssimas para empilhar as caixas do PA e assim auxiliar os carriers. Mas a questão seria: e se ele se machucasse? Show cancelado, não é mesmo? 

Então, passado o nosso susto, mesmo com a mão bem roxa pelo hematoma feio e a sentir dor, o Marcello bravamente se dispôs a tocar no soundcheck (que foi rápido ao extremo, mas eficaz), e garantiu-nos que tocaria normalmente e que apesar da dor, os seus movimentos não estavam comprometidos e então, poderia tocar guitarra, teclados e flauta. 

Foi uma situação preocupante, pois sem um exame médico adequado, poderia até ser agravada a sua contusão, mas ele insistiu e nós acatamos a sua decisão para realizar o show no sacrifício. 

Não havia nenhum tempo para se pensar em irmos ao hotel para tomar um banho, portanto, recorremos às instalações esportivas do próprio Sesc e tomamos banho nos vestiários dos atletas que ali treinavam e jogavam basquete, vôlei e futsal. 

Quando estávamos a terminar o banho, ouvimos claramente o público a entrar na arena aonde tocaríamos. Ao sairmos da instalação dos vestiários e nos dirigirmos para o camarim, tivemos que passar por uma área social, que foi exatamente o caminho do público e dessa forma, vimos muitas pessoas a correrem para garantir o melhor lugar possível, próximo ao palco.

Nesse momento, internamente e sem comentar com o Rodrigo e com o Marcello, que estavam a caminhar comigo, obtive uma epifania, praticamente: lembrei-me dos anos setenta e como era excitante ir a um show de Rock e por um breve instante, senti naquela correria perpetrada pelos jovens sãocarlenses, a mesma vibração setentista que eu sentia na porta de uma arena, quando dirigia-me para assistir aquelas maratonas de Rock brasileiro, ocorridas naquela década. 

Rapidamente o "Senhor X", banda de Ribeirão Preto, cuja vocalista, Carla Viana, conhecêramos na noite anterior, dera os primeiros acordes de sua apresentação de abertura.

Como de praxe, o Sesc serviu-nos um lanche caprichado no camarim, mas houve um detalhe que não levamos em consideração: apesar do Sesc ser sempre muito bem organizado, normalmente, tal camarim não ficava atrás do palco, como seria o correto, mas pelo contrário, se localizara na outra extremidade do imenso ginásio e sem conter nenhum caminho reservado para os artistas poderem deslocarem-se ao palco. 

E pior ainda, se tratara de um camarim improvisado, como uma tenda, bonita e asseada, certamente, mas não foi um recinto fechado sob alvenaria e seguro, por conseguinte. Mais uma tragédia estava para acontecer. Essa etapa da turnê estava mesmo a ser realizada sob a égide do azar!

Quando o show da banda, "Senhor X" encerrou-se, lembro-me que estávamos mais relaxados no camarim. O pior parecia já ter passado, com tudo o que vivenciamos de ruim naquele sábado, desde a tragédia em Ribeirão Preto, a angústia para chegarmos a tempo em São Carlos e o susto que tivéramos com o Marcello Schevano a se acidentar dramaticamente, conforme eu já relatei. 

O hematoma estava feio, mas ele dizia que tocaria assim mesmo, ainda que a sentir dor e claro que a sua coragem foi enorme nessa circunstância. Os membros do "Senhor X", chegaram ao camarim e eu cumprimentei a sua ótima vocalista, Carla Viana e o guitarrista da banda. Eu os incentivei a tocarem mais músicas autorais em uma eventual nova oportunidade.

A banda era (é) ótima, mas eu fiquei frustrado ao verificar que só tocou covers, ainda que tenham sido pérolas versadas pelo Classic Rock setentista internacional. Tudo foi muitíssimo bem executado, por sinal, mas uma banda boa daquelas precisava estar a abrilhantar a cena autoral do Rock, e não a tocar músicas do Black Sabbath, Jethro Tull, Led Zeppelin e outras bandas do gênero, por mais agradável que esse manancial sonoro fosse aos meus ouvidos sessentistas-setentistas. 

Chegara a nossa hora de irmos para o palco e sem uma outra maneira reservada para tal caminhada, nós fomos pela beirada do ginásio, até a escada de acesso ao palco, do outro lado. Nem eu, nem ninguém da nossa banda se incomodou por deixarmos as nossas malas de viagem no camarim, apesar dele ser aberto, improvisado como a uma tenda. Certamente que o Sesc haveria por providenciar uma segurança monitorada, etc. e tal, assim deduzimos. 

Ninguém questionou nada sobre tal possibilidade da insegurança, mas pareceu-nos implícito que teríamos apoio, com o nosso camarim a ser no mínimo, vigiado por seguranças do Sesc. 

Lembro-me que quando eu estava a um passo de subir ao palco, a vocalista, Carla Viana, estava bem perto e desejou-me boa sorte. Ouvi o apresentador do evento falar algumas palavras com o público e anunciar-nos exatamente com um locutor de pugilismo, com aquela ênfase clichê, e de certa forma, engraçada.

Quando eu dei um passo para o palco, descobri que o cabo do meu baixo, devidamente ligado no direct box do amplificador, desconectou-se acidentalmente e quando eu fui reconectá-lo, ele pareceu ter se rompido no plug. Naquela fração de segundos, não seria possível nem mesmo avisar o roadie, e o Rolando Castello Junior já sinalizava iniciar a contagem da primeira música. 

Fui para o palco já a imaginar a banda a começar a performance e sem o som do baixo, com um tumulto a ser deflagrado para se criar assim, um anticlímax para quebrar o impacto inicial do espetáculo, que é sempre importante para um show de Rock e não seria diferente para nós. 

Mas sob um ímpeto de último impulso de minha parte, eis que eu puxei com força o cabo e assim reinseri o plug no direct box e o som apareceu. Ninguém percebeu tal momento de angústia e no tempo forte do primeiro compasso da música, "Não Tenha Medo", eu já coloquei-me lá no palco a executar a frase costumeira: "sol - la - do"...

Ninguém percebeu que quase ocorrera uma pane e seria mais um desastre a ser contabilizado para essa fase da turnê, já caracterizada pelo azar absoluto. 

O show foi energético, no entanto. Com equipamento de som e iluminação sob um padrão de qualidade, palco grande, cerca de duas mil mil pessoas na plateia e performance tranquila da nossa parte, nós demos o recado da Patrulha do Espaço como se deve e naqueles noventa minutos, nada de errado mais aconteceu, ao dar-nos a falsa impressão de que a onda de azar havia cessado. 

Até o nosso maior temor, que seria o Marcello não conseguir tocar adequadamente, não se confirmou. Ele sentira dores, é claro, mas tocou com o seu brilhantismo habitual. Entretanto, infelizmente, desastres ainda aconteceriam!

Terminamos o show em grande estilo, com uma forte ovação da plateia e volta ao palco para um bis. Tudo pareceu ter voltado ao normal, enfim. Saímos do palco e a lateral estava lotada com fãs a desejarem autógrafos e a pleitearem fotos. 

Nesse momento, geralmente tendemos a nos distrair ao atendermos os fãs, portanto, eu apenas observei que o Rodrigo estava próximo da minha presença, também a atender os fãs, quando então eu ouvi a voz do Junior, a usar o PA. Ele estava aos prantos, a parecer muito nervoso e chamava pela ajuda dos responsáveis pelo Sesc e pela imediata presença da Polícia Militar! Seus berros nervosos, estavam confusos na formulação do que realmente desejou exprimir e claro que o meu coração saltou da boca nesse instante. Dessa forma, eu pedi licença às pessoas que atendia e fui imediatamente ao camarim para ver o que estava a ocorrer e aí...

Quando cheguei ao camarim, havia um tumulto generalizado ali instaurado. Junior, Marcello e Samuel estavam muito nervosos e vários fãs estavam atônitos ao expressar vontade de nos ajudar ou a nos consolar, mas nada poderia ser feito naquele momento. 

Entretanto, o que acontecera, afinal? 

Como desgraça pouca é bobagem, tivemos mais uma tragédia a ser contabilizada: havíamos sido furtados! O camarim estava todo revirado, bolsas e malas abertas, roupas pessoais espalhadas e toda a comida e bebida que havia sido servida, fora roubada, ao sobrar apenas os farelos e algumas latas de refrigerantes, vazias...

Como seria possível isso acontecer dentro de uma unidade do Sesc, onde a organização primava pelo extremo profissionalismo?

Mas aconteceu a fatalidade e segundo apuramos em cobrança feita aos funcionários do Sesc, a vigilância não fora ostensiva, mas circular, ou seja, algo nada razoável e para piorar, ao usarem da mais esfarrapada das desculpas possíveis, disseram-nos que fora a primeira ocorrência registrada. 

Certo, como sempre no Brasil, nada é providenciado antes que algo ruim aconteça, portanto previsibilidade é palavra desconhecida no dicionário do imprudente povo brasileiro. 

Fãs da cidade se desculparam conosco, envergonhados por estarmos a passar por tal situação em sua cidade, mas claro que não fora um problema de São Carlos. A cidade era (é) maravilhosa e sempre recebeu-nos bem. Tanto que voltaríamos lá outras vezes, sem dúvida. 

Tratou-se na verdade de um vacilo nosso ao não dimensionarmos que esse paradigma ultrapassado de que a violência e o crime não existiam em cidades interioranas, já se tornara uma pura balela, há tempos. Esse discurso ficara lá atrás, nos anos quarenta ou cinquenta do século passado e assim, não houve mais nenhum cabimento para vacilarmos respaldado por tal premissa. 

O Sesc poderia ter designado um ou dois funcionários para ficar na entrada do camarim? Claro que sim, mas acredito também que o vacilo foi nosso. Ao vermos aquela estrutura improvisada e devassada, deveríamos ter guardado tudo no nosso ônibus e ponto final.

Ao fazermos uma avaliação mais detalhada do ocorrido, constatamos que o prejuízo foi pequeno, com exceção do Marcello, que teve a carteira subtraída e perdera algumas peças de roupas. Além dele, mexeram na mala do Rolando Castello Junior, que perdeu uma toalha, apenas. 

Não roubaram nada da minha bagagem, tampouco do Rodrigo e ficamos perplexos pelo fato de não terem roubado tudo, principalmente carteiras, relógios, celulares e as melhores roupas e calçados em detrimento de uma toalha e poucas peças de roupas do cotidiano do Marcello. 

Talvez os meliantes não tenham tido tempo para escolher com calma os objetos mais valiosos. Optaram rapidamente pela primeira carteira que acharam e priorizaram as bebidas e lanches servidos na mesa. 

Bem, foi mais um golpe para minar o nosso ânimo que já estava bem baleado e destruiu completamente o bom astral com o qual fizéramos o show e pela interação com o público. Cansados e bem chateados, resolvemos partir para o hotel, jantar e tentar esquecer tantos problemas. 

Os roadies carregaram o nosso equipamento, desta feita sob um ritmo mais lento e não foi fácil para eles subirem a escadaria que dava acesso ao gramado recuado da calçada, onde o ônibus estava estacionado. 

Por solidarizar-me com o Marcello, combinei com ele em acompanhá-lo à delegacia na manhã seguinte, para lavrar o Boletim de Ocorrência. Nessa altura, ele já havia ligado para o banco e também para a companhia de cartão de crédito, para cancelar os cartões surrupiados. 

Mas a fase do azar estava longe de se findar! Quando o ônibus estava carregado e com todos a bordo para irmos ao hotel, o "seu" Wagner deu a partida na ignição e aí...

Foi inacreditável diante de tudo o que havia nos acontecido desde a manhã tumultuada em Ribeirão Preto, mas de certa forma, foi previsível que alguma pane ocorreria no ônibus, após tantas ocorrências traumáticas. Portanto, o fato da bateria do ônibus se apresentar arreada, não foi o pior que acontecera-nos e não seria a pior ocorrência, pois mais acontecimentos nefastos aguardavam-nos.

Diante de tal impasse, já era tarde da noite, quando recorremos aos nossos contatos mais próximos para que algum socorro fosse providenciado naquele momento em que a madrugada já estava iniciada e todo o nosso equipamento estava no ônibus, com a unidade do Sesc a fechar as suas dependências, portanto, não seria possível irmos ao hotel para dormirmos tranquilamente e deixarmos o carro ali, com o nosso equipamento a bordo.

Contudo, extenuados e tensos por tantos acontecimentos negativos somados, todos precisavam muito de uma boa noite de sono, contudo, eu me voluntariei para tentar uma solução imediata. 

Eu fui até um posto de gasolina próximo e abordei os frentistas em busca de alguma orientação sobre onde arrumar um socorro naquela hora. No entanto, ninguém passou-me uma informação animadora. Pelo que apurei, dificilmente eu encontraria ajuda na madrugada e se tivesse sorte, isso ocorreria no domingo pela manhã, apenas. 

Uma boa alma prontificou-se a nos ajudar, enfim. Foi um caminhoneiro que se solidarizou e foi com o seu carro até o local onde o ônibus estava estacionado.

No entanto, mediante uma tentativa para recarregar a nossa bateria, não logramos êxito. Esse senhor se mostrou solidário ao "Seu" Wagner e ali eu percebi que o tal companheirismo entre caminhoneiros funcionava, pela conversa que tiveram, ao contar-nos "causos" da estrada etc. e tal. Agradecemos a sua ajuda, mas particularmente, eu achei que o rapaz não voltaria, pois ele não tinha nenhum comprometimento, a não ser a ajuda de ocasião. 

Desanimado, voltei ao ônibus e apenas o Rodrigo ainda permaneceu ali, mas ele também estava cansado ao extremo e dessa forma, eu me antecipei e falei para ele ir para o hotel, que eu me prontifiquei a permanecer no ônibus, a fazer companhia ao "seu" Wagner. Confesso, mais que representar a banda nesse momento, eu estava muito preocupado com a segurança do carro e sobretudo, com o nosso equipamento ali à mercê do perigo. 

Antes o tivéssemos deixado dentro do Sesc para que permanecesse ali dentro das instalações dessa instituição. O "seu" Wagner disse-nos que garantiria a segurança do ônibus, mediante a providência de uma barra de ferro que possuía, mas convenhamos, sob uma situação real de ameaça, o que ele faria de fato?

Claro que a minha presença também não seria a garantia de nada nesses termos, mas pelo menos haveria um homem a mais para ficar atento aos perigos iminentes.

A madrugada estava quente e eu muito cansado e aborrecido com os acontecimentos somados, portanto, apesar de fatigado, não consegui dormir de forma alguma. A cada pequeno ruído sentido no entorno do carro, me deixava ressabiado, ao fazer-me correr às janelas do veículo para checar os seus flancos. 

Mas eu fui vencido pelo cansaço, enfim, e adormeci, apesar de já estar a amanhecer, naquele momento. Porém, não passou muito tempo e já se marcavam sete horas da manhã aproximadamente, quando eu acordei mediante o ruído com batidas fortes na lataria do carro. 

Com o susto, eu pulei fora da poltrona onde dormia, bastante mal acomodado por sinal, mas logo me tranquilizei, pois verifiquei que o "seu" Wagner conversava animadamente com o caminhoneiro que tentara nos atender algumas horas antes, durante a madrugada. 

Munido de uma outra bateria, ocorreu então o procedimento de recarga, quando... voilà! O nosso ônibus enfim deu a partida. Fiquei feliz como uma criança diante de alguma conquista prosaica, só por ouvir aquele ronco do motor e pareceu que tudo houvera sido resolvido. 

Agradecemos o caminhoneiro de uma forma enfática e quando ele partiu, o "seu" Wagner disse-me algo como:

-"Você viu? Caminhoneiro não deixa o companheiro de profissão na mão"...

Verdade, eu já tinha noção sobre a existência de uma ética própria da categoria e esperava que houvesse solidariedade, mas ele percebera que eu duvidara durante a madrugada e que nesse caso, diante das circunstâncias, isso de fato não ocorreria. 

Bem, nem preciso dizer que foi um aprendizado pessoal para a minha vivência íntima e sob um futuro próximo, eu constataria outras demonstrações desse porte, ocorridas na estrada. Feliz por ver o carro a funcionar, fomos para o hotel, enfim, quando a ideia seria estacionarmos com a segurança que não tivemos na madrugada e o "Seu" Wagner pudesse dormir, então, com um pouco de conforto, pelo menos até a hora do almoço. O "Seu" Wagner ficou com o carro ligado, por um bom tempo ainda, para garantir que a bateria se recarregasse, convenientemente.

Pelo menos todos os demais componentes da nossa comitiva estavam mais descansados, e somente eu, Luiz e o motorista ficáramos prejudicados nessa circunstância. 

Todavia, infelizmente eu não pude dormir um pouco a fazer uso de uma cama decente, pois havia combinado acompanhar o Marcello à delegacia, onde ele precisou lavrar o boletim de ocorrência, em referência ao furto pelo qual fora vítima na noite anterior. 

Tomei o café da manhã e esperei o horário combinado para acordá-lo e irmos enfim. Chegamos na delegacia por volta das 9:30 horas da manhã e naquele processo lento da burocracia policial, claro que demoramos para sermos atendidos. 

Enquanto o escrivão nos atendeu a preencher o B.O. com as informações fornecidas pelo Marcello, nós conversamos sobre música, pois o funcionário em questão era relativamente jovem e nos disse gostar de Rock, ao nos ver cabeludos e constatar que éramos músicos. 

Ele foi super simpático e gentil conosco, mas não nos animou em nada ao afirmar que aquele procedimento burocrático serviria apenas uma formalidade para o Marcello pleitear novas cópias para os seus documentos, pois jamais os seus pertences seriam devolvidos. 

Bem, nós também não tínhamos essa ingenuidade de achar que seria diferente. Voltamos para o hotel e os demais membros da nossa comitiva já estavam a almoçar em um restaurante próximo. 

Como estávamos a viver a etapa azarada da turnê, algo a mais poderia acontecer, a qualquer instante. Portanto, quando o "seu" Wagner foi fazer a sua checagem habitual do carro...


Bem, o ônibus simplesmente não deu ignição, ao dar início ao pesadelo, novamente. Nessa altura, o destino fizera com que eu estivesse novamente perto do desastre. Estavam todos a almoçar e alheios ao problema que novamente rondara-nos. 

Desta feita, o compromisso que teríamos doravante seria bem mais longe, em Mirassol-SP, e não teríamos tempo hábil para essa viagem, se não resolvêssemos essa questão, imediatamente. 

Como eu já me colocara no meio desse furacão desde o início da madrugada, abri mão do almoço e pus-me a procurar uma solução. Achar uma bateria nova para um automóvel de passeio seria uma tarefa relativamente fácil, mesmo que tenha sido um domingo em meio a uma cidade interiorana, mas uma bateria de medida, 24 (carros de passeio usam a medida, 12), para ônibus e caminhões, seria bem mais complicado para se achar tão facilmente.

Vista da Avenida São Carlos, no centro dessa simpática cidade homônima, do interior paulista
 
Fui ao ponto de táxi de uma praça bem próxima ao hotel onde hospedamo-nos e ao perguntar aos taxistas ali presentes, tive ciência que teríamos problemas, pois esses profissionais demonstraram dificuldade para me fornecerem uma resposta rápida. Eles ficaram a entreolharem-se e a conjecturar sobre possíveis lugares onde nós poderíamos comprar uma bateria nova.

Eles citaram três ou quatro nomes de estabelecimentos cujos donos moravam próximos e sob uma eventual emergência, poderiam abrir as suas respectivas lojas para se efetuar a venda e assim pareceu-me haver uma luz ao final do túnel, enfim. 

Quando os demais membros da banda tomaram ciência do ocorrido, um estado de nervosismo instaurou-se, mas não cabia fazer reclamações ao léu e sim tomar uma providência prática, fator que eu estava a tentar resolver. 

Nesse ínterim, o "seu" Wagner já estava a fazer uma tentativa de recarga mediante o apoio de um outro caminhoneiro que havia parado para nos ajudar. Naquela "conversa de boleia" que ele sabia tratar com os seus pares, estava também a tentar uma solução. 

Sem sucesso, no entanto, da parte dele, prontifiquei-me a comparecer aos tais lugares citados pelos taxistas e sem outro meio, contratei uma corrida com um deles e neste caso, a solidariedade ficara só na conversa, pois o senhor não teve compaixão da nossa situação ao baixar a "bandeira 2" do seu taxímetro, ao alegar estarmos a viver um domingo e convenhamos, ele esteve amparado pelo seu direito, dentro das normas legais etc. e tal.

Enfim, mesmo ao ver o taxímetro voar sob uma velocidade assustadora, eu não vislumbrei naquele instante, uma outra solução melhor, e assim, fui à captura de uma bateria. 
 
Rodamos por bairros periféricos da cidade e sem querer fazer mal juízo do senhor que me atendeu, na verdade pairou a dúvida sobre o caminho que ele trilhou, ao se levar em conta o fato de eu não conhecia a periferia daquela cidade, e assim não ter a certeza de que tal busca fosse realmente plausível e não uma encenação, com a possibilidade dele ter certeza de que não lograria êxito e que o seu objetivo fosse apenas garantir uma corrida com valor robusto, mediante a presença de um incauto forasteiro como eu, em pleno domingo.

O fato, é que fomos a três ou quatro lugares e realmente foram as fachadas oficinas de auto elétrico e/ou lojas de autopeças. Mediante a abordagem de residências próximas onde supostamente os seus respectivos donos de tais estabelecimentos comerciais moravam, ninguém foi achado. Nesse caso, será que ele tocava campainha em casas de conhecidos que sabia que não estavam e tudo não passara de uma manobra. Que horror pensar isso, eu sei, mas o fato foi que eu elucubrei nesses termos. 

Contudo, ali na hora eu estive mesmo bastante desconfiado da ação do taxista, porém nada poderia fazer a não ser confiar nele. Ao desistir, voltamos ao ponto da praça de onde partimos e outra caminhonete estava atracada ao nosso ônibus, a tentar fazer a recarga, e os ânimos estavam acirrados entre os membros da nossa comitiva. 

Faltava pouco tempo para extinguir-se o limite confortável para entrarmos na estrada e prosseguirmos rumo a Mirassol-SP, distante dali, cerca de duzentos e cinquenta Km. Foi quando o dono da loja de CD's "Cosmic", um simpático Rocker, amigo e entusiasta da Patrulha do Espaço, apareceu e por se comover com o nosso drama prosaico, lembrou-se de um amigo que possuía uma loja de autopeças e que mediante uma checagem rápida, tentaria nos ajudar. 

Bingo! Aquilo que eu tentara fazer sem sucesso e com a ajuda suspeita da parte de um taxista, poderia ocorrer de fato, com o rapaz a prontificar-se a abrir a sua loja em caráter excepcional e assim vender-nos uma bateria nova. 

Enfim... em questão de mais alguns minutos, eis que o rapaz já estava ali, com uma bateria selada em mãos para nos entregar.

Instalada devidamente a nova bateria, o ônibus deu a ignição esperada e feitas as despedidas e agradecimentos, fomos para a estrada já com a tarde a se findar.

Naquele horário em que partimos, havíamos planejado já estarmos em Mirassol, ante aa logística planejada para essa etapa da turnê, porém as circunstâncias não nos permitiram colocarmos em prática a planificação anteriormente traçada. 

Não foi possível acelerarmos além do limite estabelecido para a estrada, para compensar o atraso, mediante problemas com multas e/ou admoestações da polícia rodoviária e também para não forçar o carro que estava bem comprometido depois de ter enfrentado tantos problemas. 

Ligamos para a casa em que apresentar-nos-íamos em Mirassol-SP e comunicamos ao seu dirigente que atrasaríamos, a se dispensar o soundcheck anteriormente combinado. Dessa forma, se nada mais ocorresse para nos impedir, a perspectiva melhor possível seria a de chegarmos somente a tempo de montar o palco com pressa e iniciar o show sem chance para nos recompormos da viagem, jantar e nem mesmo a fazer um soundcheck decente. 

Completamente extenuado por não ter dormido como os demais e não me alimentado convenientemente, eu apaguei no fundo do carro, e só despertei com o seu movimento a estacionar na porta da casa onde tocaríamos, em Mirassol, e já se mostrara como o período da noite plenamente estabelecida, com o horário muito estourado. 

Estávamos a vivenciar a etapa do azar para essa turnê... e em Mirassol, não haveria de ser diferente, pois eis que mais problemas nos aguardavam...

Chegamos muito atrasados em Mirassol e conforme já havíamos solicitado, a banda de abertura passou o som, ao adequá-lo para o seu set up, e estava já postada para tocar. 

Apenas deixamos o nosso equipamento perto do palco (e era um espaço considerável, ainda bem, pois se a casa ostentasse um espaço reduzido como muitas em que tocáramos anteriormente, nem isso teria sido possível), e a banda, "Lier" (era com "e" mesmo, se você pensou tratar-se da palavra inglesa, "Liar"), iniciou a sua apresentação.

Estávamos muito cansados e esgotados física e psicologicamente, devido a soma de acontecimentos desagradáveis com os quais lidamos desde o sábado pela manhã. 

A banda de abertura começou a tocar e tivemos pouco tempo para nos arrumarmos nesse ínterim. Os rapazes do "Lier" eram amigos do pessoal do "Hare", de São José do Rio Preto-SP, que havia aberto o nosso show, em dezembro de 2001, ali mesmo no "Planet Beer".

O "Lier" não se colocava como uma banda acintosamente retrô como o "Hare", e seu som pendia para o Pop-Rock oitentista/noventista, mas sem grandes voos em sua concepção instrumental e vocal. 

Era formada por bons músicos e pessoas de ótima índole no trato pessoal, mas não despertou-me a atenção como o "Hare" houvera feito na ocasião anterior. Quando acabou o seu show, uma pequena força tarefa comandada pelo baterista do "Hare", Junior Muelas, iniciou-se para auxiliar os nossos roadies e dessa forma, nós ganhamos alguns minutos preciosos nesse processo de troca de set ups entre as bandas. 

Montamos a toque de caixa e baseado na equalização da banda anterior, conforme eu já expressei anteriormente, pois não pudemos fazer o soundcheck, começamos a tocar. Estávamos no início da primeira música do show, "Não Tenha Medo", quando todos os três amplificadores que usávamos para tocar o baixo e duas guitarras, pararam de funcionar, bruscamente. 

Eu fiquei com tanta raiva de passar por mais uma adversidade acumulada, que não esperei que algum roadie ou o técnico de som da casa esboçasse uma reação. Então, tirei a correia do baixo do meu ombro, coloquei o instrumento no cavalete de sustentação e fui imediatamente checar às tomadas onde estavam ligadas às réguas de "AC", para mexer em todas elas, até identificar aonde estaria a falha.

A se configurar como uma suprema precariedade de uma casa que não se preocupava em investir na infraestrutura para produzir shows musicais, tais instalações elétricas estavam frouxas e desconectavam-se a toa. Apertei-as e pedi ao Samuel Wagner para que passasse uma camada com fita adesiva por cima delas para coibir assim novos acidentes desagradáveis no decorrer do show.

O nosso show foi morno. Diferentemente da ocasião anterior em que ali atuamos, quando houve até uma euforia deflagrada entre o público, decorrente do fato da casa estar absurdamente lotada, desta feita houve a incidência de muito menos público e este pareceu apático, sem estabelecer uma sincronicidade com a banda.

Isso acontece, é um fator normal na vida de qualquer artista, inclusive para os mais famosos. Quando não existe tal sinergia, não adianta que não funciona, mesmo. 

Talvez tenha sido um reflexo da nossa energia baixa, com os ânimos muito prejudicados pela somatória de todos os aborrecimentos com os quais lidamos nesses três dias, ou para ser mais específico, no sábado e no domingo. Fomos até o final com o profissionalismo de sempre, mas estávamos com um abatimento quase indisfarçável, essa é que foi a verdade. 

Quando o show terminou, o clima entre nós foi marcado pelo cansaço absoluto e o desejo premente e generalizado foi para que voltássemos imediatamente para São Paulo, para que pudéssemos juntar os cacos e reorganizarmo-nos para seguir em frente com os próximos compromissos da turnê. 

Esse show ocorreu em 24 de fevereiro de 2002, e com cerca de duzentas pessoas na plateia. Todavia, ainda nesse domingo, haveria um último problema a ser sentido por nós. 

O dono da casa, que revelara-se um espalhafatoso anfitrião quando da nossa primeira visita ao seu estabelecimento, dois meses antes, desta feita estava bem carrancudo e nem quis tratar do acerto monetário com a banda, ao delegar tal função para a sua filha, que mal havia saído da adolescência nessa ocasião.

Até aí, tudo bem, sem preconceito pela questão da pouca idade da moça, mas quando a conversa se iniciou, houve uma reclamação por parte da casa, sobre o nosso atraso e diante disso, uma nova situação de acerto financeiro, não acordada anteriormente, estava a ser colocada pela mocinha como uma espécie de punição pelo atraso, estabelecida de uma maneira unilateral da parte da casa. 

Ora, de fato, atrasamos bastante, mas isso causara apenas a perda do soundcheck de nossa parte, pois quando estacionamos o nosso ônibus na porta do estabelecimento, a banda de abertura ainda nem estava a tocar, portanto, não seria esse o fator pela frequência ali observada como mais baixa do que a ocasião anterior, ocorrida em dezembro de 2001. 

E uma outra questão: ao falar especificamente dessa baixa frequência naquela noite, muito dessa situação foi culpa da própria casa, pois foi óbvio que não se empenhara para estabelecer uma divulgação adequada na cidade, aliás como a maioria das casas noturnas procediam, quando geralmente se limitam a deixar um cartaz a anunciar as próximas atrações sob um mural interno e talvez uma nota publicada no site do estabelecimento. 

Mas claro que foi mais uma contrariedade para nos aborrecer e nesse caso, a envolver dinheiro e com todas as despesas extras que tivemos com a manutenção do ônibus, tornara-se insuportável ouvir a argumentação pífia da parte da casa, ao tentar quebrar um acordo previamente feito, sob outros termos.

Foi óbvio que os ânimos se acirraram e nesse momento o dono do estabelecimento apareceu e instaurou uma atmosfera pesada, a deixar o clima insustentável. No auge da discussão ele nos pagou o que pleiteava com essa quebra de acordo compulsória e o clima só não partiu para as vias de fato porque ele usou de força desmesurada, e diante de tal atitude, foi melhor irmos embora com a quantia de dinheiro injusta no bolso, a ter outra desgraça para contabilizar nessa história. 

Já passara das três horas da manhã, quando paramos para um café em uma loja de conveniência de um posto de gasolina, ainda dentro daquela cidade. Estávamos calados, sem forças nem para reclamarmos sobre tudo o que ocorrera, naqueles últimos dias. 

Foi quando entramos no ônibus e o "seu" Wagner nos comunicou um aviso aparentemente reconfortante: 

-"sei que estão todos chateados e cansados, por isso, agora deixem comigo. Durmam e eu acordo vocês quando estivermos a entrar em São Paulo". 

Ninguém desejara uma outra resolução naquele momento e claro que apagamos, todos sem exceção. Mas aquela fora a etapa do azar e ainda haveria a dose final de fel, a nos amargar um pouco mais a vida...

Estávamos extenuados e abalados psicologicamente pelo fato de termos suportado tantas adversidades nesses dias, e as palavras proferidas pelo "seu Wagner", soaram como um bálsamo naquele instante. Ninguém lhe respondeu, pelo menos verbalmente, pois a resposta veio com a atitude quase ensaiada da parte de todos, ao instintivamente buscarmos nos ajeitar individualmente nas poltronas do ônibus, em silêncio profundo... porém, mais uma desgraça estava por vir!

Bem, eu acordei por volta de seis e meia da manhã, com um forte estampido, semelhante a um tiro de rifle, e claro que voei da poltrona. Naquela fração de segundos, demorei um pouco para entender o que havia ocorrido, mas a voz do "seu" Wagner esclareceu tudo, de uma forma prosaica, pausada e resignada:

 -"estourou um pneu"... 

Apesar de estar sob uma velocidade razoável, tal ocorrência assustou mais pelo som, pois o "seu" Wagner nos assegurou uma condução tranquila até o acostamento. 

Bem, estourar um pneu não é o fim do mundo para ninguém, teoricamente. Troca-se rapidamente e por prudência a praxe de qualquer motorista é procurar o borracheiro mais próximo, para se efetuar o reparo e recolocá-lo, para fazer voltar o estepe para o bagageiro. 

Mas um pneu de ônibus/caminhão não é tão fácil para consertar ou se repor na estrada, como ingenuamente achávamos, nós que nunca fomos caminhoneiros. Dessa forma, no primeiro posto aonde paramos, nós não conseguimos êxito e no segundo, o borracheiro nos informou que o pneu em questão não suportaria um conserto e pior, o estepe se encontrava nas mesmas condições. 

Sem um pneu melhor para nos vender, ficou aquele impasse insuportável para ser resolvido. O borracheiro se sensibilizou com o nosso caso e se ofereceu pessoalmente a nos levar com o seu carro particular, até a cidade de Taquaritinga-SP, cerca de oito Kilômetros de onde estávamos, e assim nos conduzir a uma concessionária, para que nós comprássemos dois pneus novos ou seminovos. 

Voluntariei-me para tal missão e junto com o "seu" Wagner, fomos juntos para cumprir a tarefa, por volta de sete horas da manhã. O cansaço e a contrariedade por estar a passar por mais essa adversidade, foi gigantesco de minha parte. 

No entanto, alguém precisava tomar a providência e lá fui eu, novamente. De fato, nesses três dias eu fui o bombeiro da maioria das ocorrências, e não foram poucas. 

Ao chegarmos em Taquaritinga-SP, ainda tivemos que esperar a loja abrir, pois era muito cedo e a minha expressão facial marcada pela insatisfação por estar ali, sob tais circunstâncias deve ter sido gritante, eu acredito.  

Bem, fizemos a compra e retornamos ao posto da estrada. Gastamos mais um bom tempo para efetuar a troca do pneu e finalmente voltamos para a estrada, com a viagem de retorno para São Paulo, a prosseguir.  

Claro que o clima ficou ainda mais pesado. Foram muitas as adversidades e para piorar tudo, tivemos gastos monetários imprevistos, mas seria melhor nos acostumarmos com essa dinâmica, ou seja: possuir um ônibus próprio, demandara gastos com manutenção, constantes.  

Chegamos em São Paulo, fatigados e chateados, mas a vida teve que prosseguir. Desde o começo das atividades da banda, essa fora, sem dúvida, a pior parte da turnê, mas não houve sentido em se perder mais tempo a lamentar, pois teríamos novos compromissos em breve, e não seria oportuno abaixar a guarda.  

Independente de tudo o que ocorrera nesses três dias, o "seu" Wagner estava aprovadíssimo como motorista/mecânico, e por conta de tudo o quie ocorreu, ficamos felizes por ele ter minimizado a situação, pois nas mãos do motorista anterior, teria sido muito pior, visto que ele não tinha os mesmos atributos e o traquejo de estrada do "seu" Wagner.

O próximo show seria em Osasco-SP, cidade situada na Grande São Paulo, portanto sem a necessidade do uso do ônibus, mas uma nova investida ao interior de São Paulo, já estava marcada para a semana subsequente. 

E assim, encerrou-se a fase do azar dessa turnê, com os três shows cumpridos nas cidades de Ribeirão Preto-SP, São Carlos-SP e Mirassol-SP, cumpridos em 22, 23 e 24 de fevereiro de 2002, respectivamente. 

Continua...

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