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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Língua de Trapo - Capítulo 13 - Vida Nova, Com Show Todo Dia! - Por Luiz Domingues


Passada essa estreia, o próximo passo do Língua de Trapo foi cumprir uma micro temporada no palco do teatro do MASP (Museu de Arte de São Paulo).
Endereço elegante na cidade de São Paulo e geralmente destinado à música erudita ou o jazz instrumental, estava a abrigar-nos, e eu fico admirado como os tempos mudaram para pior nesse aspecto, pois hoje em dia (2015), é impensável uma banda apresentar um show em um bom teatro em plena terça-feira, e na sexta-feira subsequente iniciar uma micro temporada em outro, igualmente renomado e com a lotação esgotada! Realmente, isso foi a perder-se e a "geração balada" tomou conta, onde os shows são mero item da noitada das casas noturnas.  
 
Mas de volta ao assunto, os shows foram realizados nos dias 18, 19 e 20 de novembro de 1983, com uma desenvoltura muito maior. Acredito que já no segundo show no Teatro do MASP, estávamos bem mais seguros e o público apreciou do primeiro ao último minuto. O público pagante foi excelente, com 450, 550 e 600 pessoas, respectivamente, para os três shows.

 
Parece utópico hoje em dia, mas após estrearmos no TUCA, e dias depois termos realizado uma mini temporada no MASP,  não passou nem poucos dias e estávamos em um outro teatro (Teatro da GV/Fundação Getúlio Vargas), para realizarmos mais uma boa temporada! 
 
E nesse curto ínterim, com apenas quatro dias, outras oportunidades aconteceram, a demonstrar que o Língua de Trapo tinha uma agenda incrível naquela época. Por exemplo, fizemos o último show no MASP, dia 20 de novembro de 1983, um domingo, mas na terça subsequente, dia 22 de novembro de 1983, estávamos no palco do Teatro Sesc Pompeia para participarmos da gravação do programa: "A Fábrica do Som". 
 
Eu já havia apresentado-me três vezes com a minha outra banda, A Chave do Sol, nesse programa e assim, foi inevitável que ao chegar perto do palco, alguns gritos da plateia a clamar pela, A Chave do Sol, ecoassem, e mais uma vez, tal manifestação popular criasse um clima desagradável entre eu e os demais membros do Língua de Trapo. 
 
Nesse dia, tocamos "Xingu Disco"; "Concheta" e "Je Suis Brésillien", esta última, uma canção nova, do show recém estreado. Foi ao ar no dia 26 de novembro de 1983, mas não assistimos a performance quando foi ao ar, pela TV, simplesmente por que estávamos no palco da GV a fazer o soundcheck para o show dessa noite. Eu nunca vi uma cópia dessa apresentação, infelizmente. Se surgir alguma novidade nesse sentido, prontamente acrescento ao material disponibilizado neste Blog.
Três dias depois, 23 de novembro de 1983, quarta-feira, estávamos a noite no Teatro do Centro Cultural São Paulo. O Língua de Trapo participou de uma homenagem ao compositor, Adoniran Barbosa. Foram vários artistas presentes a participar desse espetáculo, e cada um interpretou uma canção do velho mestre. Através de um sorteio prévio, coube ao Língua de Trapo interpretar a canção: "As Mariposa" (sic). O Laert propôs que fizéssemos uma apresentação singela, ao entrarmos no palco para cantá-la "a capella". Dessa forma, como tínhamos mesmo pouco tempo para ensaiar, foi providencial manter esse arranjo simples, apenas vocal.
Lembro-me em dividirmos o camarim com artistas proeminentes tais como: Tom Zé, Renato Teixeira, Celso Viáfora, Os Demônios da Garoa, Anna de Holanda (sim, a ex-ministra da cultura), Eduardo Gudin, e outros. Ficou marcante para a minha memória, a presença de Anna, pois ela teve um problema pessoal ali, mas que passou para ela a tempo, e não prejudicou sua apresentação, ainda bem. 
 
O Língua de Trapo entrou a cantar a partir da coxia, e já no palco, sentamo-nos em torno de uma mesa e a batucar nela, ao simularmos estar de forma despojada em um botequim, a cantar a música do Adoniran. Funcionou, pois o público gostou dessa encenação a evocar uma suposta malandragem boêmia.

 No dia seguinte, 24 de novembro, quinta-feira, estávamos em outra gravação para um programa de TV. Foi um programa da TV Manchete, onde chegamos a tocar cinco ou seis músicas ao vivo. 
Foi gravado no pátio da faculdade de música, Santa Marcelina, no bairro da Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Lembro-me que nesta tarde de gravações, esteve presente também o grupo "Rumo", de Luiz Tatit e Ná Ozetti. Desconheço que essa participação nossa tenha sido gravado por algum abnegado colecionador , via videocassete. Se alguém gravou, certamente não disponibilizou no You Tube, pois eu nunca vi tal material postado.
Um raro recorte de jornal que possuo em meu portfólio, dessa segunda passagem minha pela banda. Neste caso, a falar sobre o show novo, estreia no Tuca e continuação da turnê, pelo Masp. De novembro de 1983. Na imagem, eu sou o sexto, da esquerda para a direita, entre o tecladista, João Lucas, e o percussionista, Fernando Marconi.
Da estreia no TUCA, em diante, a minha vida entrou em um ritmo frenético. E claro que eu adorei isso! Não ter nem um dia de folga, foi tudo o que eu sempre desejei na vida, a viver uma carreira artística. 
 
E nos mínimos espaços livres dos quais dispunha, eu dava um jeito para ensaiar com, A Chave do Sol, pois nessa altura, tal segunda banda minha estava praticamente acertada com o selo Baratos Afins, e dessa forma, agendou-se a gravação do primeiro disco para janeiro. 
 
E vou confessar ao leitor: mesmo que não fosse uma banda de Rock, Pop ou coisa do gênero, o Língua de Trapo detinha um assédio de fãs, também. Claro que isso mexia um pouco com o aspecto psicológico de todos, inevitavelmente, e evidentemente, eu tinha vinte e três anos de idade nessa época, portanto, enquanto bem jovem, estava sujeito às tentações da estrada. 
 
O próximo passo da nossa banda foi uma nova mini temporada em teatro, mais uma ocorrida na mesma cidade, em um espaço ínfimo entre uma e outra, e em três teatros de renome. Inacreditável pensar em uma resolução dessas hoje em dia (e sei que já expressei esse sentimento anteriormente nesta narrativa), mas fico mesmo estupefato como essa realidade mudou para pior nos dias atuais.
Nota na Revista "Veja" sobre a temporada Tuca/Masp/ GV em 1983. Infelizmente, não tenho a parte do serviço escrito. Encostados no muro do cemitério São Paulo (da face da Rua Cardeal Arcoverde, no bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo), da esquerda para a direita: Nahame "Naminha" Casseb, Fernando Marconi, Laert Sarrumor, João Lucas, Lizoel Costa, Sergio Gama, Luiz Domingues e Pituco Freitas. Acervo e cortesia de Julio Revoredo

E assim, lá fomos nós para o teatro da fundação Getúlio Vargas, o popular teatro da GV. Era localizado na Avenida 9 de julho, próximo à saída do famoso túnel de mesmo nome, no sentido bairro/centro. O teatro da GV era um espaço tradicionalíssimo na cidade, com um histórico de shows memoráveis da MPB e do Rock.
Confesso que fiquei um pouco emocionado por pisar naquele palco, onde eu assistira diversos shows nos anos setenta. Então, a temporada do Língua de Trapo ocorreu entre os dias 24 e 27 de novembro de 1983.
Fotos promocionais publicadas no Jornal Folha de São Paulo, a promover a turnê: "Sem Indiretas" do Língua de Trapo, pelo Tuca/Masp/GV em 1983, onde usamos figurinos de diversas partes do show para compor a pose para o repórter fotográfico do jornal. Eu e o baterista Nahame Casseb, usamos os chapéus de "cowboy"... acervo e cortesia de Julio Revoredo

No dia 24, uma quinta-feira, arregimentamos um público pequeno para os padrões do Língua de Trapo: apenas quarenta pessoas. Na sexta, 25, mais que dobrou, com noventa. Dia 26, sábado, quatrocentas e trinta pessoas passaram pela catraca, e no domingo, dia 27, movimentamos duzentas e cinquenta pessoas presentes no auditório. 
 
Lembro-me, também, que nessa mini temporada, equipes de reportagem de TV apareceram para cobrir o nosso espetáculo com entrevistas prévias, e assim exibir tais matérias gravadas em seus telejornais. Aliás, isso foi uma constante com o Língua de Trapo, que detinha uma visibilidade muito boa na mídia.
Rara foto do Língua de Trapo no teatro da GV, em 1983. Com Pituco Freitas em destaque na performance, eu estou na linha de trás com Naminha à bateria e Serginho Gama ao seu lado. Acervo e cortesia de Pituco Freitas

Foram bons shows, embora o teatro estivesse sob um clima um tanto quanto decadente. De fato, não passou muito tempo, e a fundação Getúlio Vargas parou de usá-lo como espaço cultural público, e ele tornar-se-ia apenas um auditório para as atividades acadêmicas da faculdade. Não havia nem um camarim estruturado mais, nessa época. Para abrigar os artistas, a produção da GV improvisou uma sala de aulas, muito ampla, é verdade, mas sem a estrutura de um camarim profissional. 
 
Uma história engraçada ocorrida nessa temporada, foi protagonizada por dois membros da banda, cujos nomes não citarei, para evitar constrangimentos. Foi assim: da janela desse camarim improvisado, víamos o movimento na Avenida 9 de julho. Em um dado momento de espera entre o soundcheck, e o início do show (não lembro-me exatamente qual foi o dia em específico, mas desconfio ter sido na sexta-feira), os colegas espantaram o tédio de uma forma inusitada.
A aproveitar-se do fato da janela ser enorme, eles chamavam a atenção de transeuntes na calçada mediante gritos, para em seguida abaixar as calças e mostrar as suas nádegas despidas e "coladas" ao vidro da janela para gerar o efeito disforme de seus respectivos glúteos. As reações foram as mais diversas, e isso provocava um ataque histérico de risos, neles, e nos demais, no camarim. Só resolveram parar quando um funcionário da GV apareceu, ao alegar que um senhor idoso estava a reclamar na portaria, que fora ultrajado etc. e tal. Claro que os meus colegas negaram a autoria disso, e não aconteceu nada, mas foi o sinal para cessar com a galhofa...

Essa temporada na GV foi com duas semanas, mas nesse ínterim, tivemos um show avulso na terça-feira, dia 29 de novembro de 1983, em uma faculdade em Guarulhos, município da Grande São Paulo. O Língua de Trapo tinha como base o público universitário e sendo assim, eram muito comuns os shows realizados nesse circuito, geralmente contratados por diretórios acadêmicos. Nesse dia, tocamos para um público eufórico, com cerca de novecentos alunos que aglomerou-se no auditório, e foi um ótimo show, a não ser por um fato inusitado ocorrido no meio do espetáculo e que acarretaria um desdobramento dramático no camarim, e posteriormente no interior do ônibus que levou-nos dali.
Eu estava recém reintegrado na banda, e não havia percebido nada hostil entre o Laert e o percussionista, Fernando Marconi. O clima parecia bom nos ensaios e nos shows, aliás, em todos que havíamos cumprido até então. Mas nesse show, quando estávamos a executar o "Samba-Enredo da XXX", vi que o Laert aproximou-se dele, que estava a tocar o "surdão" de samba, e falou-lhe alguma coisa no ouvido, fora do microfone. 
 
Sob uma fração de segundos, o Fernando mudou o seu semblante de uma forma violenta e através de um ato de loucura, atirou a sua baqueta na plateia e saiu furioso do palco. Não sei, nem nunca soube o que aconteceu, pois as informações foram desencontradas da parte de ambos. O show prosseguiu, e eu tenho certeza de que o público não percebeu nada, pois se alguém notou esse detalhe, naturalmente imaginou ser uma encenação a mais, entre tantas que aquela música proporcionava para todos os membros da banda, incluso o ator, Paulo Elias.
No camarim, contudo, acalorou-se a discussão e a "turma do deixa disso" tratou de acalmar os ânimos. No ônibus, uma nova rusga aconteceu e o Fernando, furioso e aos berros, comunicou que estava a sair da banda. Eu apenas sei que dali em diante seguimos como um sexteto, pois nenhum percussionista novo foi colocado em seu lugar e assim, tivemos que readaptar alguns arranjos, pois o Fernando contribuía bastante com a banda, sendo um excelente músico. 
 
A seguir, voltamos para completar a temporada na GV.
E diante daquela agenda frenética, não houve nem tempo para absorver uma perda desse porte, como tivéramos com o Fernando. 
Dois dias depois, já estávamos de novo no palco do teatro da GV, a reiniciar a temporada de duas semanas naquele espaço. Foi no dia 1° de dezembro de 1983, uma quinta-feira. O público mostrou-se diminuto, mas nem abalamo-nos, pois sabíamos que nos dias subsequentes, aumentaria tal contingente, de forma natural. Apenas cinquenta pessoas compareceram.
 
Fernando Marconi na primeira foto e Paulo Elias Zaidan, na segunda, ambos em fotos bem mais atuais

E como resolução de rearranjo do show, o Paulo Elias acumulou algumas funções do Fernando, como ator também, pois além de músico, o Fernando tinha um lado performático importante nas encenações. 
 
Já no dia seguinte, cento e vinte pessoas pagaram ingresso para assistir-nos em uma sexta-feira, a comprovar a nossa expectativa de aumento progressivo, e convenhamos, em pouco mais de quinze dias, havíamos feito dezessete shows, uma performance que somente artistas popularescos, como as duplas sertanejas fazem hoje em dia, e talvez nem eles.
No sábado, tivemos um evento extra no período da tarde. Tratou-se de um show ao vivo em uma praça pública, localizada na Vila Califórnia, zona leste de São Paulo. Para quem não conhece a cidade de São Paulo, explico que tal bairro fica próximo à Vila Alpina, Parque São Lucas, e Vila Ema, bairros tradicionais que cercam-na. 
 
Nesse show, produção da prefeitura de São Paulo, tivemos um bom apoio logístico, com equipamento digno e esse contato gratuito (o cachê foi pago pela prefeitura, logicamente) com um tipo de público não acostumado a acompanhar-nos em teatros, foi muito gratificante.
Lembro-me que foi a primeira vez que ouvi a expressão: "show de choque", que servia exatamente para designar um tipo de apresentação daquele porte, onde não haveria condições para se preparar adequadamente mediante a realização de um soundcheck, e o tempo de atuação, propriamente dito foi bem limitado. 
 
Com isso, em shows dessa natureza, o artista toca um repertório curto, e de preferência com músicas mais agitadas, para causar uma impressão impactante, a aproveitar o pouco espaço que tem para mostrar o trabalho. Dessa forma, ao buscar um resultado rápido e contundente, estimula o público que mal o conhece, a desejar  conhecê-lo, e talvez assim, angariar possíveis novos fãs que o seguirão em shows completos pelos teatros. 
 
Fora isso, o prazer de tocar para um público carente de opções culturais, foi muito gratificante. Mesmo ao não conhecer o seu trabalho, foi nítido verificar no semblante das pessoas, o deslumbramento por esse contato impensável normalmente para eles, que ficam excluídos da cultura cara que vendia-se (vende-se), neste país, por diversos motivos, mas não desviarei o foco da narrativa para falar disso neste instante. 
 
Esse show ocorreu na tarde de 3 de dezembro de 1983, na Praça da Paz, perante um público com quinhentas pessoas, aproximadamente. Foi um sucesso e o público respondeu com entusiasmo excessivo até, pois foi difícil sair do palco e voltarmos ao ônibus que a prefeitura viabilizou-nos para o nosso transporte, pois os seguranças tiveram um trabalho extra para ajudar-nos nesse deslocamento do palco até o veículo. 
 
Dentro do ônibus, o Pituco e o Laert fizeram uma brincadeira com os fãs que cercavam-nos a caçar autógrafos, ao deixá-los confusos, pois estes não perceberam tratar-se de uma brincadeira improvisada da parte de ambos, e diante do semblante atônito deles, nós da banda ficamos sob uma crise de riso que durou muito tempo, e ainda rendeu muita risada no camarim da GV, na mesma noite. 
 
E sim, fizemos o show noturno no teatro, normalmente, com a presença de um bom público pagante, mediante quatrocentas e cinquenta pessoas, e no dia seguinte, domingo, encerramos a temporada na GV, com cerca de quatrocentos pagantes presentes no auditório. Aliás, como o Laert falava constantemente nos shows: -"não vendemos ingressos! Trocamos os ingressos do show por dinheiro, o que é bem diferente"...
Finalmente tivemos uma pausa, pois os próximos shows só foram acontecer daí a doze dias. Mas não foi exatamente férias para o Língua de Trapo, pois tivemos várias reuniões nesse período, e alguns compromissos a cumprir na TV, Rádio e imprensa escrita.
E entre essas reuniões, duas foram muito importantes. A primeira foi motivada pelo rompimento com o triunvirato de empresários que representava-nos. Eu estava recém reingresso no grupo, mas os tripulantes antigos estavam fartos com o então comando gerencial e contaram-me que essa insatisfação decorria de acertos financeiros, e principalmente sobre o planejamento. Pensei comigo: -"como assim?"
 
Em 15 dias fizemos uma enxurrada de shows com sucesso, recebemos cachês significativos, tivemos boa cobertura de mídia, enfim, qual seria a insatisfação? Então, vários membros do Língua de Trapo falaram-me em conversas reservadas, que o antigo empresário que possuíam anteriormente, seria muito melhor etc. e tal. 
 
E essa conversa foi praticamente unânime, segundo apurei. Um componente chegou a dizer-me que se ele voltasse, aí sim o Língua de Trapo deslancharia, com direito à entrada da banda no elenco de uma gravadora multinacional (sonho de realização de qualquer artista naquela época, devo explicitar) etc.
 
Sendo assim, como integrante, eu tive o direito ao voto, mas nem que eu fosse contra, conseguiria mudar a decisão da maioria esmagadora e assim, foi resolvido a não renovação de contrato com o triunvirato de empresários, a deixar o caminho aberto para se convidar o antigo empresário, com quem sonhavam voltar a trabalhar. Então, em uma segunda reunião, fomos em peso à casa desse empresário, para formular o pedido para que ele voltasse a trabalhar conosco. Eu apenas confiava na percepção dos demais que já o conheciam, e nessa perspectiva, torci para dar certo, ao confiar que seria o melhor para a banda. Não sei precisar o dia exato em que essa reunião ocorreu. Foi seguramente no início de dezembro de 1983. O nome dele era: Jerome Vonk.
Jerome Vonk, o grande "Holandês Voador", empresário e "um de nós" 

Um rapaz jovem, "descolado", como se diz hoje em dia, extremamente inteligente, e apesar da pouca idade, com uma admirável bagagem pessoal adquirida no mundo da música.
Holandês de nascimento, mas criado em São Paulo, falava português sem sotaque algum, e pelo contrário, tinha (tem) sotaque de paulistano. Poliglota e cosmopolita, Jerome trabalhara com Claude Nobs, o organizador do famoso Festival de Jazz de Montreux/Suíça, principalmente como produtor/tradutor de artistas brasileiros durante a realização da noite brasileira, tradicional naquele festival. 
 
Então, para a alegria generalizada, ele aceitou voltar a trabalhar com o Língua de Trapo, apesar de ter feito uma pedida de porcentagem maior do que cobrara em sua primeira passagem, entretanto, foi algo aceitável e dentro dos padrões normais do meio artístico. Todos comemoraram essa volta dele, e pelo que eu percebi, realmente tratavam-no como um membro da banda, tamanha a camaradagem que tinham para com ele. Pois eu também tornei-me rapidamente seu amigo, e relatarei doravante, histórias boas sobre a sua passagem pela banda. E falo dele, também nos capítulos de outras bandas onde toquei. Há histórias com o Jerome Vonk nos capítulos sobre a minha história com A Chave do Sol, Pitbulls on Crack e Patrulha do Espaço. 
O primeiro cartão de visitas que todos receberam de Jerome, para manter sempre no bolso, quando fôssemos abordados por pessoas interessadas em estabelecer contato para shows ou outras questões

E com a batuta nas mãos do Jerome, deu para notar inicialmente que os companheiros que antes estavam bem incomodados com o triunvirato anterior, superaram a sensação de mal-estar com esse rumo gerencial da banda. Doravante, ficaram muito mais aliviados e motivados, naturalmente a repercutir em maior rendimento ao trabalho.
          O produtor, Claude Nobs, do Festival de Montreux

O Jerome era (é) um rapaz com cultura sofisticada. Poliglota, com gosto refinado para Classic Rock, Blues e Jazz, principalmente, detinha essa experiência adquirida por ter trabalhado com Claude Nobs, no Festival de Montreaux. Por falar português fluente e sem sotaque, era o homem de confiança de Claude Nobs, para lidar com os artistas brasileiros. E segundo o Jerome, os brasileiros eram os que tradicionalmente davam mais trabalho no Festival, por falta de profissionalismo, e até de educação básica nos fatores extra musicais. Dessa forma, Nobs tinha confiança em Jerome, pois mais que falar português fluente, o Jerome conhecia bem a mentalidade dos brasileiros e as suas malandragens inerentes em termos de "jeitinho", apreço pelas "gambiarras"...
A seguir, sob nova direção empresarial, estreamos em uma nova micro temporada no palco do Teatro Elis Regina, em São Bernardo do Campo-SP, no dia 16 de dezembro de 1983, com um público apenas razoável formado por cento e oitenta pessoas. No dia seguinte, 18 de dezembro, as coisas melhoraram, com duzentas e sessenta pessoas a passar pela bilheteria, e no domingo, dia 19 de dezembro de 1983, a bilheteria foi robusta, com quatrocentas pagantes. 
 
Nesses shows, lembro-me em ter tido contato direto com o dinamismo que foi estar com o Língua de Trapo, pois a notícia da semana fora o falecimento do cantor popular, Altemar Dutra. 
Rápido no gatilho, eis que criou-se um texto, e o Marcelo Moraes com aquele vozeirão de locutor, gravou uma vinheta de áudio, que foi inserida especialmente no show, para essa ocasião.
Ao usar a música: "Happy Christmas" (The War is Over), do John Lennon, como "BG", a locução falava em tom melancólico, sobre um artista que "partira" no mês de dezembro, e que sonhava com a paz, o amor etc. Aquilo ia paulatinamente a envolver e induzir as pessoas a pensar na persona do John Lennon, mas ao final o Marcelo, falava algo como: -"Adeus Altemar"... e o Teatro desabava pela surpresa inusitada. Nada contra o Altemar Dutra (perdão pela galhofa, inclusive), mas que a surpresa foi hilariante, sem dúvida que foi...
Nessa altura dos acontecimentos, com um mês tão intenso, o show estava ajeitado e decorado. Foi a prova cabal de que na base da prática, realmente se consegue fazer qualquer coisa que sob uma primeira leitura parecia ser muito complexa, quiçá inatingível. Então, confiante e perfeitamente adaptado, eu comecei a ter condições de criar, improvisar, exatamente na medida em que senti-me mais seguro.
O Laert e o Pituco perceberam a minha desenvoltura cênica a expandir-se, mas gostaram, pois enfim, eu estava adaptado, ou melhor a dizer, readaptado à banda. Fizemos muitos programas de rádio e TV, mas como tive o despropósito em não anotar nada em relação a isso, vou comentar logo mais sobre alguns apenas, e de forma imprecisa, sem as suas respectivas datas corretas. 
 
E para seguir a cronologia da narrativa, o próximo passo foi uma micro temporada a ser feita no Teatro Lira Paulistana.
Foi a minha primeira experiência com esse teatro, que era muito famoso em São Paulo, por abrir espaço para artistas independentes. 
Naturalmente, o Língua de Trapo era considerado uma "prata da casa" para os donos do Lira Paulistana, pois o primeiro LP da banda fora gravado pelo selo pertencente ao teatro, e o espaço em si, foi um dos agentes responsáveis pelo catapultar da banda a uma condição de sucesso massivo.
O Língua de Trapo era membro do seleto grupo formado por artistas que dentro do Teatro Lira Paulistana, criou uma cena artística que a imprensa batizou como: "Vanguarda Paulista". Além do Língua de Trapo, faziam parte dessa turma, artista de alto quilate tais como: Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Grupo Rumo, Tiago Araripe, Premeditando o Breque, Grupo Paranga, Tetê Spíndola, e outros. Portanto, o Língua de Trapo continha uma história já bem escrita dentro daquele espaço minúsculo sob o ponto de vista físico, porém gigantesco para a cultura paulista/paulistana & brasileira, naquele período entre 1979 e 1986, enquanto existiu.
O Lira Paulistana ficava localizado na Rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Tratava-se de uma porta tímida existente no quarteirão, em frente à Praça Benedito Calixto. Perto de uma agência bancária, uma padaria, um hotelzinho com má fama, de quinta categoria, e vários estabelecimentos comerciais que às 18:00 horas fechavam as portas.
Mas a sua fama era tanta, que conferia vida noturna ao quarteirão. As filas costumavam dobrar a esquina da Rua Teodoro Sampaio com a Avenida Henrique Schaumann. E o teatro apresentava shows praticamente de segunda a segunda. Logo no primeiro dia, o guitarrista, Lizoel Costa, disse-me de uma forma enfática e também poética: -"agora você vai conhecer as paredes que suam"...
Nota na Folha de SP, com direito a uma foto clicada no próprio Teatro Lira Paulistana, clicada durante a mesma temporada que cumpríamos, em dezembro de 1983. Na imagem acima, eu estou indicado por uma seta feita com caneta esferográfica, a tocar entre o Naminha e Lizoel Costa, e com a presença do vocalista, Pituco Freitas, à minha frente. Acervo e cortesia de Julio Revoredo

Ele teve razão, e não exagerou, pois o vapor gerado pela respiração coletiva, fazia as paredes pingarem, literalmente. Nessa primeira micro temporada, tocamos em quatro dias. 
 
Os shows aconteceram nos dias 27, 28, 29 e 30 de dezembro de 1983. O público foi excepcional, ao considerar-se que o Lira Paulistana era um teatro "pocket", com capacidade mínima. Portanto, respectivamente, movimentamos trezentas pessoas no dia 27, trezentas e vinte para o dia 28, trezentas e quarenta no dia 29 e finalmente, trezentas e oitenta no dia 30.
     Uma maquete a mostrar como era o Teatro Lira Paulistana

O Lira era um porão, literalmente. A pequena porta instalada na rua Teodoro Sampaio não demonstrava a quem não sabia, que ali dentro, arte & cultura borbulhavam todas as noites. O espaço para o público era constituído por três arquibancada e o palco ficava muito próximo das pessoas. Portanto, com tal dimensão não havia como disfarçar nada, pois o público via tudo, literalmente.
Nota da Folha de SP, desta feita a usar uma foto promocional. Não tenha o serviço escrito. Sou o primeiro, da esquerda para a direita. Acervo e cortesia de Julio Revoredo

Artistas que sofriam com "stage fright" ("medo do palco"), não suportariam apresentar-se ali. Pois era muito invasiva a presença do espectador. 
 
Foi uma experiência muito gratificante ter esse primeiro contato com o mítico teatro, e alguns meses depois, ele tornar-se-ia quase um espaço permanente para a nossa banda em minha segunda passagem por ela, de fato, pela quantidade de vezes que nós tocamos naquele espaço, e no futuro, seria também muito importante para a minha outra banda, A Chave do Sol.
Como se não bastasse a quantidade enorme de shows que fizemos em pouco mais de quarenta dias, o nosso empresário, Jerome, nos encaixou em um show ao ar livre, inserido no festejo pela passagem do Reveillon. Chamado como: "Reveillon no Bexiga", tratou-se de um show de choque que fizemos em um palco armado na Rua Rui Barbosa, no bairro do Bexiga, em frente à tradicional cantina, "C Que Sabe". 
 
Segundo estimativa da polícia militar que cobria o evento, havia cerca de três mil pessoas no local. Claro, foi uma produção da Secretaria Municipal de Cultura. Tocamos por volta das 22:00 horas do dia 31 de dezembro, e além do Língua de Trapo, apresentou-se também o "Premeditando o Breque", e o Grupo "Paranga", para que no final, como festa de Reveillon, tocasse um trio elétrico pelo resto da noite a comandar um baile popular.

Mas certamente não foi um artista conhecido, pois nesse caso, eu recordar-me-ia e citariam certamente. Foi um show animado de nossa parte, apesar de que em shows de choque, e sem entender o contexto do trabalho do Língua de Trapo, o público não avisado sobre a nossa proposta, tendia a não compreender de pronto a questão satírica. Ainda mais através de um show gratuito de rua, e em meio a dispersão natural de um Reveillon. 
 
Mesmo assim, lembro-me que foi bem positivo, ao dar-nos a sensação do dever cumprido, e para reforçar a minha epifania, o foguetório da virada de ano, pareceu comemorar o ótimo final de ano que a banda teve, com o novo show a transcorrer muito bem, e a prenunciar que o ano de 1984, reservar-nos-ia muitas surpresas boas.
Continua...

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