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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Língua de Trapo - Capítulo 21 - Os Meus Últimos Shows com o Língua de Trapo - Por Luiz Domingues

Amenizou essa melancolia que eu estava a sentir pela proximidade de minha despedida, o fato de que do outro lado, a euforia dentro d'A Chave do Sol foi grande, por tudo o que estávamos a viver naquela fase. O paralelo dessa mesma época, está devidamente relatado nos capítulos daquela banda, portanto, não repetirei aqui, evidentemente. De volta ao Língua de Trapo, teríamos três dias no Centro Cultural São Paulo.
A Sala Adoniran Barbosa, teatro de arena e todo envidraçado no qual ocorriam os shows musicais, estava nessa altura, já sedimentada como um espaço de shows na cidade, com espetáculos de quarta a domingo, a todo vapor, e a dar espaço para artistas de diversos gêneros musicais. E longe de ser um espaço destinado somente para artistas do mundo underground ou emergentes, costumava ter em cartaz, também artistas do mainstream da música. 

Nota publicada na Folha de São Paulo sobre a mini temporada do Língua de Trapo no CCSP (Centro Cultural São Paulo), julho de 1984. Acervo e cortesia de Julio Revoredo 

Enfim, não poderia ter sido um melhor palco para a minha despedida, com a possibilidade de uma mini temporada, ao invés de um show avulso, pois nessa minha segunda passagem pela banda, o que mais marcou, sem dúvida, foi a capacidade do Língua de Trapo, para estar em cartaz em meio a temporadas, sempre a arregimentar um grande público. Sonho de consumo para qualquer artista, estar em temporada, além do prazer imenso que proporciona, é também um óbvio fator de segurança na carreira. 

E falo isso, não apenas pelo aspecto financeiro, mas também pelo aspecto da segurança emocional, e pelo prazer artístico que tal existência de uma agenda cheia, proporciona. O primeiro show dessa mini temporada, ocorreu na sexta-feira, dia 6 de julho de 1984.

Para quem conhece esse teatro, sabe bem que trata-se de uma arena quadrada, parecida com um ringue de boxe. Portanto, o público acomoda-se pelos quatro cantos, e o artista se apresenta com gente a mirá-lo frontalmente, mas também pelos lados e pelas costas. 

Dessa forma, uma opção para artistas que incomodavam-se com o público às costas, seria tocar de costas para a escada (além disso, ao pensar igualmente pelo ponto de vista do espectador que se coloca nessa incômoda posição para assistir, é desagradável pagar o ingresso no mesmo valor de quem assiste de frente, não acha?).

Dessa forma, minimizava-se esse problema, ao fazer com que só o público do andar superior fosse um pouco prejudicado, visto que no andar inferior, não havia assentos nesse lado, pela existência da escada. Mas essa logística vinha terra abaixo, quando o teatro lotava, pois as pessoas acomodavam-se pelas escadas e amontoavam-se em pé, atrás dela, e pelos seus lados. E foi o que aconteceu nos três dias de shows do Língua de Trapo.

Optamos por essa estratégia da escada, mas a nossa motivação não foi apenas traçada por ser desagradável montar o palco de outra forma, mas pelo fato da escada ser a mais amena possibilidade para a exibição das vinhetas de cinema, com o uso do telão. 

Só ali naquele ponto seria plausível colocar a tela de projeção, a objetivar diminuir ao máximo, o número de pessoas prejudicadas com o "ponto cego". E foi assim que colocamo-nos no palco, para os três shows dessa mini temporada. Foi um show energético, pelo fato de estar super lotado. 

As risadas geradas pelas piadas, reverberavam de uma forma absurda. Em uma época onde as normas de segurança não eram muito rigorosas, teatros como o CCSP, superlotavam costumeiramente. Isso acontecia praticamente em todos os lugares, vide o que acontecia no próprio, teatro Lira Paulistana, cujas paredes "suavam", literalmente, por conta da superlotação e falta de ventilação. Sendo assim, foi com cerca de oitocentas pessoas, o contingente nesse primeiro dia (6 de julho de 1984).

Nota publicada na Folha de São Paulo na edição do domingo, dia do meu último show com o Língua de Trapo, no CCSP, em 8 de julho de 1984

No segundo show, o coração apertou bastante. Em alguns momentos, a emoção do show misturou-se com a minha, pessoal pela situação de despedida, e eu tive que me controlar, para não desestabilizar a minha atuação. Foi no sábado, 7 de julho de 1984, e o público foi ainda maior. 

Fico a pensar nos padrões da segurança de hoje em dia, e como fora possível colocar mil e cem pessoas, em um teatro cuja capacidade oficial era demarcada na casa de quatrocentas e poucas pessoas? Pois foi o que aconteceu, por que mil e cem pessoas acotovelavam-se por todos os cantos. 

Foi óbvio que a escada lotasse e assim aquele improvável espaço veio a tornar-se uma mini arquibancada, e pelo chão, as pessoas sentaram-se e ali, não houve um mínimo espaço para mexer-se. Se alguém precisasse ir ao banheiro, teria que segurar a sua necessidade fisiológica com bastante veemência. 

Dois fatos curiosos ocorreram nessa noite. O primeiro, foi que dois jogadores do Corinthians foram assistir o show. Solito, goleiro, e o lateral esquerdo, Wladimir.

 

Mesmo a estarem discretos ali, e com a intenção clara de assistir o show, foi lógico que despertaram a atenção do público, e os inevitáveis gritos futebolísticos, pró e contra o Corinthians, foram ouvidos, mas sem se perder a estribeira, a atrapalhar o nosso show. Lembro-me particularmente do Solito, goleiro, a arrebentar-se de tanto rir, acompanhado de sua esposa ou namorada, não sei dizer ao certo.

E o segundo evento dessa noite, foi que o Laert, em algum momento do show, fez uma piada de improviso sobre estarmos ali para ganhar dinheiro, e sermos "mercenários" abertamente etc. Tratou-se de uma mera galhofa, um "caco" como se diz no jargão do Teatro.

Mas alguém da parte superior do mezanino, levou a brincadeira a sério, ou quis amplificá-la, ao nos jogar uma moeda. Então, como se diz no ditado, basta atirar a primeira pedra e daí... pois eis que uma inacreditável chuva de moedas passou a ocorrer, a contaminar também a plateia da parte inferior. Sob um improviso viral, todos os membros da banda começaram a apanhar as moedas e as colocar nos seus respectivos bolsos, a tornar a brincadeira, uma enorme pilhéria.

Mas a quantidade de moedas foi tão grande, que no camarim, depois do final do show, todos contabilizaram um "lucro extra", que vitaminou o cachê, que certamente fora robusto, com aquelas duas bilheterias super lotadas que tivéramos até ali. E de fato, o dia seguinte teve a proeza de bater o recorde, com ainda mais gente na plateia.

Bem, piadas improvisadas a parte, aproximava-se a hora...o meu último show como membro do Língua de Trapo...

Domingo, 8 de julho de 1984...
Eu estava convicto de que o que decidira fora o melhor para a minha carreira, sem dúvida. Todavia, por tudo o que já exprimi amplamente nessa narrativa, nas últimas semanas de junho, e início de julho de 1984, eu estava com o coração apertado por essa despedida. E claro que o último show foi difícil para cumprir, sob todos os aspectos.

O Boca do Céu, a primeira banda de Luiz Domingues & Laert Sarrumor, em foto de 1977 

Todavia, com a decisão tomada e sob caráter irreversível, eu precisava enfrentar a melancolia da despedida, fora os olhares pouco confortáveis dos companheiros, e o que mais se mostrara doloroso foi o do Laert, sem dúvida, pelos anos de amizade que cultivávamos, mas sobretudo por termos caminhado juntos na primeira banda de nossas respectivas carreiras, o Boca do Céu, desde o longínquo ano de 1976. Enfim, foi uma tarefa nada fácil para cumprir...

Para piorar o meu estado de ânimo, na noite do sábado, após ter feito o meu penúltimo show, quando eu fui levar a minha então namorada para a sua casa, fui surpreendido com sua decisão súbita de sua parte, pelo rompimento da relação. Ora, como assim?  Pois é, "Dona" Débora não havia dado nenhum sinal de descontentamento com o namoro, mas justo naquela noite melancólica, amplificou-se o meu azar, pois ela veio com essa... a alegar a famosa incompatibilidade de gênios, etc. e tal. Não era um relacionamento longo e nem desestabilizou-me pelo rompimento em si, mas, justo naquela noite?
Resultado: fui para a minha casa, e essa súbita notícia potencializou a minha melancolia pelo último show que faria com o Língua de Trapo, no dia seguinte.

Veio o domingo e lá fui eu para o CCSP, com a minha mochila a conter o figurino a ser usado no show, que eu vestiria pela derradeira oportunidade. Eu estava bastante sensível naquele dia, e sabia que precisava ter autocontrole para não emocionar-me no palco, pois previa o embaraço emocional, e o calafrio estomacal, inevitável.

Para superar as bilheterias de sexta e sábado, nesse domingo, batemos de novo o recorde. Nunca esqueci-me do número, que o ator, Paulo Elias, citou com euforia no camarim: mil trezentos e vinte e quatro pagantes!

Impressionante! O triplo da capacidade oficial daquele teatro, ou seja, havia gente espremida por todos os cantos. Nunca, em todos os shows que ali fiz, e considere, caro leitor, que ali naquele teatro, eu toquei com todas as bandas de carreira onde atuei (exceto com Os Kurandeiros, até 2016, mas a qualquer momento isso poderá ocorrer), ao considerar as que gravaram discos oficiais. Sendo assim, jamais toquei para um público tão grande. 

Quando o show começou, a cada música que encerrava-se, vinha na minha mente o disparo melancólico de que seria a última vez que eu tocaria aquela canção etc.

Em "Amor à Vista", que era uma de minhas músicas prediletas, eu tive que controlar-me, pois os olhos marejaram. E quando o show encerrou-se, muito dessa minha melancolia, foi camuflada pela euforia do público, e um inevitável assédio muito forte, no camarim.

A despedida foi discreta ali, pois ainda encontrar-me-ia com a banda, no escritório do empresário, Jerome Vonk, para o meu último acerto de contas. E de fato, no dia seguinte, isso aconteceu.
Recebi um robusto cachê pela última semana de trabalho com a banda, vitaminada por bilheterias tão cheias, e despedi-me de todos, a encerrar a minha participação no Língua de Trapo. 

Já na semana subsequente, eles teriam um show na cidade de Mococa, no interior de São Paulo, mas para amenizar, no mesmo final de semana, eu estaria com A Chave do Sol, em uma badalada danceteria da moda em São Paulo, recém-inaugurada pelo Barão Vermelho, de Cazuza, Frejat & Cia., mas essa história é contada nos capítulos d'A Chave do Sol (aliás, essa história é muito interessante, principalmente pelo seu desfecho financeiro, inusitado). 

O Jerome lamentou mais uma vez a minha saída, ao falar-me que estava por fechar uma série de shows avulsos pelo interior, e que o valor do cachê estava a elevar o seu valor com a valorização artística em ascensão da nossa banda.

O João Lucas, lamentou a minha decisão mais uma vez, pois realmente tornamo-nos muito bons amigos, durante esses dez meses de convivência. Tínhamos raízes musicais e cinematográficas, muito fortes.
O guitarrista, Lizoel Costa também lamentou, pois achou que eu estava a dar um mau passo na carreira, visto que o Língua de Trapo estava a ser cortejado por gravadoras multinacionais, enquanto A Chave do Sol era só uma aposta. Muito observador do mercado, ele enfatizou-me que seria uma aposta de risco, por que não éramos uma banda do espectro do BR-Rock 80's, que estava em voga. E ele teve razão por esse aspecto.
Outro que manifestou-se, foi o Pituco Freitas, que também lastimou, ao verificar que eu, apesar de ser um Rocker inveterado, eu precisaria pensar mais friamente sobre o futuro, e que não havia comparação entre o Língua de Trapo e A Chave do Sol, naquele momento, pelo aspecto da projeção adquirida, apesar do crescimento enorme que A Chave do Sol estava por apresentar (e ainda cresceria mais em um futuro bem próximo).
 
 
Serginho Gama, Naminha e Paulo Elias também chatearam-se, mas apoiaram-me, ao analisarem que o meu negócio sempre foi o Rock e de fato, eu estava empolgado com os rumos d'A Chave do Sol.

O Laert estava bem chateado comigo e eu entendi perfeitamente que estivesse assim. Não vou repetir o que já falei exaustivamente na narrativa e dessa forma, considero tal sentimento e sobretudo as suas motivações, bem explicado e esmiuçado. 

Portanto, em 8 de julho de 1984, eu fiz o meu último show com o Língua de Trapo, e no dia 9, feriado estadual paulista, participei da última tradicional reunião das segundas, com a banda e o empresário, Jerome Vonk. Todavia, houveram fatos arrolados após a minha saída, que mantiveram-me ligado à banda, ainda que indiretamente, e que valem a pena serem contados.

Continua...

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