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segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Língua de Trapo - Capítulo 12 - O Dia da Estreia, ou Melhor... Reestreia! - Por Luiz Domingues

Essa foi a filipeta que foi usada como plataforma de divulgação do show de estreia, da nova turnê do Língua de Trapo, em 1983 

E chegou o grande dia da estreia! Antes de falar sobre isso, detalhadamente, preciso relatar fatos paralelos. Primeiro, alguns dias antes, eu tive que administrar o primeiro conflito Língua de Trapo x A Chave do Sol. 
Ocorreu que para a sorte d'A Chave do Sol (que ascendia a olhos vistos, graças às performances vitoriosas em duas edições do programa:"A Fábrica do Som", da TV Cultura), tal banda recebeu o convite para participar de uma edição especial do referido programa, onde supostamente os artistas mais pedidos pela audiência, tocariam em uma edição especial, a ser realizada na grande festa organizada pela TV Cultura, e a ter como um set de filmagem diferente, o Circo Anhembi, no pátio do pavilhão de exposições do Parque Anhembi. O que eu não esperava, foi a data marcada para a gravação desse programa especial: 15 de novembro, dia da estreia do novo show do Língua de Trapo, no TUCA. 

Já tornara-se embaraçoso ter que explicar aos demais que eu tocaria no mesmo dia, e pior ainda, ao saber que mesmo a esforçar-me para tocar com A Chave do Sol, e correr para o Tuca, evidentemente estaria sujeito a atrasos, visto que não haveria nenhuma garantia de que tudo funcionasse a contento durante a gravação da TV Cultura.
E mesmo que tudo ocorresse dessa forma sincronizada, o Circo Anhembi ficava montado no pátio do Anhembi, na zona norte, e o deslocamento até o Tuca, localizado no bairro das Perdizes, na zona oeste, seria temerário pela questão do trânsito etc. e tal. Os amigos do Língua de Trapo aceitaram, pois sabiam que seria importante para A Chave do Sol, e não queriam contrariar-me logo de início, mas ficaram apreensivos.
E eles tiveram toda a razão, pois não seria um show comum (e mesmo que o fosse...), mas sim a estreia de um show inteiramente novo, e onde haveria um grande público, com a presença de importantes jornalistas para cobrir o novo trabalho do Língua de Trapo. Isso sem contar a imprudência em não estar tranquilo, pelo menos por duas horas antes do espetáculo se iniciar, a estar no camarim, a saber que a parte técnica estaria sob controle com o meu amplificador, o meu baixo afinado etc. Eles tiveram toda a razão em preocupar-se, mas por outro lado, eu não poderia recusar o convite, pois A Chave do Sol estava a crescer, e assim, eu não poderia perder mais essa chance na TV, com uma audiência daquelas...
O segundo aspecto em relação a este show, foi o próprio teatro em si. O Tuca, era (é) o Teatro da Universidade Católica, anexo ao campus da Pontifícia Universidade Católica. Foi um teatro histórico para São Paulo, por muitos anos, com uma infinidade de peças teatrais importantes ali encenadas, shows musicais de grandes artistas da MPB, Rock, e outras vertentes musicais (o famoso show "Divino e Maravilhoso" dos Tropicalistas em 1968, só para citar um), além de uma série imensa de palestras, congressos e eventos em geral. 

Mas aí veio a ditadura, e as manifestações estudantis no campus da PUC, começaram a ser reprimidas. Em 1977, em um dos mais truculentos episódios dessa fase, o campus foi invadido pela tropa de choque da polícia militar, e o "cassetete cantou", com dezenas de feridos, inclusive alguns a apresentar muita gravidade (eu conheci uma garota que sofreu queimaduras terríveis nesse dia). 
Tempos depois, o teatro pegou fogo, "misteriosamente". Ficou anos fechado, e sob um esforço muito grande, finalmente (mesmo que ainda não estivesse concluída a sua reforma completa), foi liberado para abrir as suas portas novamente. 

E qual artista teria essa honra de estar no primeiro espetáculo, após esse hiato? Sim, foi o Língua de Trapo, com esse show de 15 de novembro de 1983. E como agravante, ainda estávamos na ditadura, e o Língua de Trapo era obviamente um grupo que se posicionava de uma forma progressista. 

Nesse contexto, boatos alarmistas diziam que havia uma movimentação da parte de pessoas descontentes com a reabertura do teatro... 
Não aconteceu nada, ainda bem, mas mesmo enfraquecida e quase por acabar, a ditadura sempre foi ameaçadora no tocante ao exercício da livre expressão artística. Então, foi esse o ambiente para o show, com toda a apreensão do Língua de Trapo pela estreia, esse temor velado por causa do Tuca ser reaberto para o descontentamento de alguns entusiastas da ditadura vigente, e o desconforto a mais que eu causei, ao assumir um compromisso com uma outra banda, no mesmo dia da minha estreia oficial na banda. Houve, portanto, tensão no ar!

Consegui chegar em cima da hora ao Tuca, após apresentar-me com A Chave do Sol, no programa da TV Cultura, "A Fábrica do Som". Essa parte, sob o ponto de vista d'A Chave do Sol, eu conto lá no capítulo conveniente dessa outra banda, logicamente. 
Esbaforido, e com a adrenalina adquirida pelo show cumprido para duas mil pessoas, que eu acabara de participar, tive que acalmar-me e entrar no espírito do show do Língua de Trapo, e a relembrar com todas aquelas marcações teatrais, trocas de figurino, vinhetas etc. 

Começou o show, e a casa estava lotada. Não lembro-me do borderô oficial, mas os mil lugares liberados pelos bombeiros (a casa continha mil e oitocentos lugares, mas por motivo de segurança, os bombeiros só liberaram mil lugares, por conta da obra da reforma, ainda inacabada), foram totalmente preenchidos.
Havia uma certa tensão no camarim, pela estreia, algumas indisposições com os empresários (naquela época, se tratava de um triunvirato formado por dois rapazes e uma moça, cujo escritório chamava-se "D.D.M.", provavelmente a inicial do nome de cada um dos envolvidos). E claro que não apreciaram ver-me a chegar em cima da hora, esbaforido e indevidamente sob a adrenalina gerada pelo outro show que eu fizera. 

Eis que o momento chegou, então. Tocou o terceiro sinal emitido para a plateia: a luz apagou e começou a vinheta de Super-8 que abria o show. 
Da coxia, ainda a esperar a hora para entrar no palco, já ouvíamos as primeiras risadas. No filme, havia uma colagem com cenas absurdas, protagonizadas pelos membros do próprio, Língua de Trapo, e vários agregados da banda, que foram utilizados como atores improváveis, também. 

Como eu já contei há algum tempo atrás, não houve cenas comigo para essa peça audiovisual, pois esse processo estava a ser feita há meses, e obviamente que os companheiros não contavam com a saída do baixista, Luiz Lucas, da banda. O que fizeram de improviso, foi uma nova edição, onde o Louis Chilson cortou as cenas em que o Luiz Lucas aparecia, mas sem chance para se produzir novas imagens com a minha pessoa a estar inserida.

Esse começo do show era bem estratégico, pois o público já estava a rir muito por conta do hilário preâmbulo, a quebrar qualquer tensão. Quando entrávamos no palco, o público já havia rido muito, mas a verdade é que iria rir muito mais...
E antes que eu prossiga, é preciso salientar que eu nem tive tempo para dimensionar o que eu sentia ao estar a trabalhar no palco com o meu velho amigo, Laert, novamente, pois a adrenalina daquele dia foi enorme, por todos os motivos que já expus. 

O que mostrara-se notória, foi a mudança, da água para o vinho como se diz popularmente, que o Língua de Trapo havia obtido. Quando eu saí no início de 1981, a banda fazia pequenas apresentações sem estrutura, ou no máximo, a participar como concorrente em festivais universitários de MPB. Agora, nessa outra fase, estava a se apresentar em um teatro da tradição do Tuca, inteiramente lotado, repleto com fãs do trabalho, jornalistas etc. 

Houve bastante repercussão na mídia sobre o show etc. Portanto, foi uma diferença brutal, e algo ocorrida em um curto espaço de tempo.
Em relação à apreensão gerada, sim, claro que houve a tensão. Fora uma situação que suscitou melindres por todos os lados, e tudo a girar em torno de minha pessoa, infelizmente. Eu precisava estar a atuar nas duas bandas simultaneamente naquela época, e é claro que isso provocara indisposições entre todos. Fora isso, realmente, houve boatos de que o governo de então não estava contente com a reinauguração do TUCA. E o Língua de Trapo não despertava nenhuma simpatia desse pessoal que detinha o poder, logicamente.
Quando eu cheguei ao camarim do Tuca, estava atrasado, e logo na estreia... claro que não nenhum companheiro brigou diretamente comigo, mas foi possível sentir no ar a desaprovação geral. E nesse caso, eles tiveram razão, assim como os companheiros d'A Chave do Sol, que também incomodaram-se com os transtornos que causei-lhes, ao ter que pedir à direção do programa, "A Fábrica do Som ", para que A Chave do Sol apresentasse-se antes, e a obrigar-me a sair a correr de uma forma desenfreada.

Quanto ao trajeto, até que foi tranquilo, por que tratou-se do feriado de 15 de novembro. A cidade estava vazia, e essa foi a minha sorte.
Sinceramente não lembro-me de quanto tempo demoramos para chegar. Acredito que foi menos de meia hora, e o grande problema foi mesmo ter saído atrasado do Circo Anhembi.
O set list da estreia foi formado pelas seguintes músicas:
 

1) Pensamento Positivo
2) Je Suis Brésilien

3) Amor à Vista

4) Deve ser Bom

5) Benzinho

6) Samba do Inferno

7) Country os Brancos

8) Toada da Subcultura

9) Na Minha Boca (puro resgate, pois era do repertório do Boca do Céu, em 1977!)

10) Crocodilo

11) Conspurcália

12) Samba Enredo da TFP

13) Jogo Sujo

 

Além dessas canções, músicas como "Concheta", "Xingu Disco", "Vampiro S/A", "Régui Espiritual", "O que é Isso Companheiro?", e "Prazer", entre outras, temas bem conhecidos do público, e que faziam parte do primeiro LP, ficaram na expectativa, como opções para o eventual pedido de "bis", em um primeiro instante, mas a partir do momento que a turnê avançou, voltaram a fazer parte do set list do show, pois realmente não seria prudente que tais peças ficassem de fora.
Montar um show apenas com canções inéditas não foi confortável para o público, que tendeu a apenas gostar das músicas já absorvidas e decoradas na memória afetiva de cada pessoa, naturalmente. E também algumas músicas novas que funcionaram melhor, foram incorporadas a posteriori, como: "Fado da Falência", por exemplo, onde a mise-en-scène era sempre hilariante, e eu relatarei certamente no momento oportuno, pois essa música apenas entrou algum tempo depois, para o set list. 

Além das vinhetas de áudio, disparadas, houve um elemento a mais na trupe, que foi o Marcelo Moraes (Lopes). Ele entrava em diversos momentos estratégicos, com intervenções sensacionais, e que levavam o público ao delírio.
Também mais para a frente, falarei sobre o papel do Marcelo, visto que tornou-se um elemento importantíssimo para que ganhássemos mais dinheiro, e sob uma forma inusitada. Quando eu for narrar as histórias acumuladas sobre a temporada realizada no Teatro Lira Paulistana, será o momento oportuno para abordar tal particularidade. 
Na foto promocional acima, eu (Luiz) sou o segundo, da esquerda para a direita, entre o percussionista, Fernando Marconi e o baterista, Nahame Casseb. Acervo e cortesia de Julio Revoredo

De volta ao relato do show de estreia no Tuca, digo que todos erramos em algumas marcações, por conta de ser um show totalmente novo, mas eu em específico, errei mais, pela inexperiência para lidar com esse formato de espetáculo teatralizado, onde apenas tocar e/ou cantar não bastava, mas fora preciso adquirir uma noção "extra", como ator, para poder atuar condizentemente.
O show começava com o Marcelo Moraes a fazer locuções, ainda com o público a entrar e acomodar-se nos assentos do teatro.
Com humor e a proferir brincadeiras de improviso, já arrancava as primeiras risadas. Quando as luzes apagavam-se, iniciava-se a exibição do filme em formato, Super-8, comandado pelo cineasta, Louis Chilson.
     O cineasta e colaborador do Língua de Trapo, Louis Chilson

As pessoas já riam muito com as cenas sob forte teor nonsense, nele contidos, mediante cena a conter intervenções com os membros da banda, menos eu (já expliquei o por que da minha ausência), e alguns atores convidados. 

Enquanto estava na metade da exibição do audiovisual, já entrávamos no palco e posicionávamo-nos, pois assim que terminava a peça, tocávamos a primeira música do show. O Laert e o Pituco nem começavam a cantar e as pessoas já estavam às gargalhadas, pois nós entrávamos a usar um ridículo uniforme, devidamente revelado ao público, assim que a iluminação nos revelava, assim vestidos no palco.
O boneco, "Brasilino", garoto propaganda de uma loja de móveis populares que fazia bastante propaganda na TV em São Paulo, nos anos setenta, a divulgar a "Fábrica de Móveis Brasil"

Com terno a usar das cores verde e amarelo, parecíamos "Brasilinos". E a primeira canção era: "Pensamento Positivo", uma sátira à literatura de autoajuda. E notem que em 1983, essa literatura nem continha essa denominação e com direito a conter prateleiras exclusivas nas livrarias. Portanto, é citada a revista: "Acendedor", uma publicação norteada por pensamentos edificantes e positivos, que era/é difundida pela seita oriental, "Seicho-no-iê". 
Após o término dessa canção, uma nova inserção do filme em formato Super-8 permitia-nos sairmos de cena, quando nos livrávamos do ridículo terno e voltávamos todos a usar o figurino branco, a nos fazer parecer como verdadeiros religiosos afro-brasileiros ou profissionais da saúde. 

Com esse figurino neutro, passávamos o restante do show com a possibilidade de empreender pequenas trocas menos radicais, para facilitar o entra-e-sai do palco. Tocávamos então: "Je suis Brésilien". Nessa canção que tinha típica sonoridade de música francesa, a letra era absurda, a satirizar a vida de um brasileiro que vivia em Paris, a trabalhar como um travesti pelas ruas.
Essa foto acima, é um "still" de uma apresentação do Língua de Trapo na TV, onde o vocalista, Pituco Freitas, interpretava o Travesti brésilien, a circular pelas ruas de Paris... 

O João Lucas que tocava acordeom bem, o pilotava a extrair uma sonoridade bem francesa, e a usar adereços como boina e colete, ficava mesmo com a aparência estereotipada de um músico parisiense. Os demais permaneciam com o mesmo traje todo branco, e o Naminha, baterista, também colocava uma boina e usava uma piteira enorme para brincar com o estigma.
A morbidez absurda da letra da canção "Pensamento Positivo", aliada ao sarcasmo, remete às melhores gags da "Família Adams", ou dos "Monstros", de Herman, Lily, Vovô & Cia!
 
"Pensamento Positivo"(Carlos Melo / Perfídias Fraudis):

Minha namorada
Eu vim te confessar
Que eu tenho câncer
No duodeno e no pulmão
Isso não é nada
Vamos comemorar
Eu tenho 15 dias de vida, coração
Olhe, minha amada
Pensamento positivo
Porque da vida já retirei o que preciso
Eu aprendi
A dar valor ao essencial
Como à uma flor
E a um bom disco do Simonal
Por isso eu peço a você
Leia o "Acendedor" da Seicho-no-iê
É melhor que CVV...

"Je Suis Brésilien"(Carlos Melo)

Je suis brésilien
Je suis brésilien
Mais j'habite a Paris
Et je travaile
Et je travaile
Como travesti

Rodo bolsinha na tour Eifell
Meu codinome é Madame Margot
Chega o freguês, levo pro hotel
15% pro gigolô
Lá no Brasil eu só bebia
Vinho Chateau du Valier
Aujord'hui bebo champagne
Como aumentou o meu michê

La politique et la prostitute
Sont tout la même chose
Vejam o exemplo do Miterrand
É socialiste mas só faz pose... 
 
A seguir, enquanto terminávamos a canção francesa, o Laert já estava preparado para voltar em cena. Ele voltava vestido como um Rocker dos anos sessenta, e nós tocávamos um blues, chamado: "Amor à Vista". 
Nessa canção, ele colocava todos os seus gritos hippies para fora, a evocar as suas raízes contraculturais pessoais, e eu gostava demais de tocar essa música, por várias razões:

1) Primeiro, porque se trata de um Blues lindíssimo, muito bem composto, e como o arranjo se mostrara bem dramático, evocava o tipo de interpretação visceral da parte de cantores sessentistas influenciados pelo Blues, tais como Janis Joplin e Joe Cocker, sobretudo.


2) Era também um momento raro, onde alheio à sátira que permeava o trabalho todo do Língua de Trapo, a música era (é) tão bonita, e tão cheia de vibrações dos anos sessenta, que eu adorava aquela epifania até a última gota, por evidentemente ter tudo a ver com as minhas predileções sessentistas.


3) Apesar de tudo isso o que eu já citei, enquanto piada, funcionava muito bem, pois se trata de uma letra brilhante criada pelo Laert, a satirizar a mentalidade elitista, e os seus preconceitos contra as camadas mais carentes da sociedade, através da história de um cafetão que seria "politizado". O desfecho da música, com o Laert dramaticamente a imitar o Joe Cocker (e a Janis Joplin, por extensão), era o momento onde as pessoas finalmente entendiam o significado da letra, e riam muito da proposta a evocar as contradições da sociedade, hipocrisia etc.


4) E também por ser um elo remoto e bem implícito entre eu, Luiz e o Laert, como egressos do velho Boca do Céu, de 1976.

Nós nunca falamos abertamente sobre isso, mas pairava sempre pelo ar de uma forma subliminar, uma certa cumplicidade nossa ao entreolharmo-nos nos shows, nesse momento, e um dizer para o outro, embora sempre veladamente: conseguimos! Pois o que fora um sonho utópico acalentado em 1976, estava concretizado, enfim, naqueles tantos shows de 1983 & 1984, pois nesse novo instante, nós estávamos a lotar teatros importantes, a tocar e cantar bem. 

E o melhor de tudo, a agradar o público, que saía toda noite, extasiado. Claro, mera epifania e não explicitamente ligada ao Língua de Trapo, eu sei, mas a ter relação sim, com o nosso querido grupo de Rock, Boca do Céu. Mas estou a antecipar-me demais, ao falar da turnê toda. Por ora, o assunto é o show de estreia, que estou a destrinchar, através da narrativa. 

O arranjo era bem bonito, ainda a falar sobre a música, "Amor à Vista". Com duas guitarras, piano elétrico, baixo e bateria, nós fazíamos um blues intenso e muito dramático. Lembro-me que o Naminha tocava com uma garra incrível. Era como se fosse o John Bonham a incorporar nele, nessa hora, tamanho o peso que ele imprimia, além do fato de que ele sempre emocionava-se e isso se refletia fortemente com a sua interpretação.

A letra de "Amor à vista":

Amor à vista (Laert Sarrumor)

Oh! Baby, venho lhe dizer:
Você tem ganho pouco e a situação está cada vez mais difícil
Os tempos são de crise e você tem que se desdobrar (uou, uou)

Você tem que garantir nosso sustento e o de nossos filhos
Tente sair com mais encanto, com mais graça e mais brilho (uou, uou)

O desespero é geral, a fome é internacional
E nos consome pouco a pouco
Enquanto você trabalha , eu leio o jornal
E sinto pena desse mundo louco

Nas esquinas, o que mais lhe preocupa é o presente
Mas o futuro não está nada promissor
Por isso você tem que insistir
Tente calar a voz que vem do seu interior

Baby, você me ama e eu sei disso muito bem
E sei até que você sabe que eu te amo muito, também
Mas baby, você tem que faturar
Nunca esqueça, amor: que eu sou seu homem, seu cafetão, seu rufião
Ah... eu sou seu o seu gigolô!

Oh! Baby, procure enxergar
Nós moramos em São Paulo e aqui a oposição está no poder
Mas o colapso econômico, isso ninguém pode resolver (uou, uou)

Oh! Baby, eu votei no PT
Que é que tem? Gente baixa também pode ter consciência
Eu acho até que todas vocês tem mais é que se unir pra evitar
nossa falência

E tem o lado social, fortalecer o movimento
E até sindicalizar
Pagar INPS e ter horário certo para o trotoar
Eu sei que o amor não se vende mas essa é a mais antiga profissão

Por isso, você tem que nos garantir
Você deve oferecer, ah ! você tem que insistir
Tente calar a voz que vem do seu interior
Baby, você me ama e eu sei disso muito bem
E sei até que você sabe que eu te amo muito também

Mas baby, você tem que faturar...
Nunca esqueça, amor : que eu sou seu homem, seu cafetão, seu rufião Ah! eu sou o seu gigolô! 

Após essa catarse em tom de blues e sessentista ao extremo em sua essência, o clima voltava ao presente (anos 1980, é claro), através de uma música composta pelo tecladista, João Lucas. Tratava-se de um Rock oitentista, bem ao sabor "New Wave", de certa forma pela roupagem que adquiriu em sua sonoridade e cujo tema da letra era uma crítica aberta aos políticos e a sua sanha pelo poder.

Nessa música, o Pituco Freitas retomava o vocal, enquanto o Laert voltava aos bastidores para livrar-se do visual de Joe Cocker. A letra da música: "Deve ser Bom" era explícita, sem sutilezas e até hoje, não sei como foi aprovada pela censura à época.
Talvez por estarmos nos estertores da ditadura, pois se fosse um pouco antes, certamente que a "Dona Solange" teria passado a sua famosa tesoura, ou simplesmente, vetá-la. E o som, era bem embasado harmonicamente, mas com o arranjo a satirizar a New Wave do início dos anos oitenta. Eu costumava tocar como o baixista do "Duran Duran", ao exagerar na mise-en-scène ao estilo "New Wave", para satirizar aquela "onda" toda.
A seguir, a letra de "Deve ser Bom":

Deve ser Bom (João Lucas)

O meu sonho maior é ser político, bem famoso
E desfrutar de tudo o que vier
Do modo que o Brasil ainda raquítico, comatoso,
A ordem é um salve-se quem puder

No ato, eu emprego toda a família e os amigos
Garanto o futuro dessa gente
Isso sem sonhar c'a maravilha, não consigo,
Que é um dia ser o presidente

Tudo isso sem falar em outras mordomias e salários,
Que não menciono agora por prudência
Trabalhar, dar duro mesmo, nem um só dia, é pra otário
E ainda ser chamado de excelência

Deve ser bom processar jornalista
E se fingir caluniado
Deve ser bom taxar de comunista
Quem não for mesmo um aliado

Deve ser bom um carro oficial

Levando a gente passear
Deve ser bom a foto n
o jornal
Com "um porção" de militar


A seguir, uma vinheta de áudio, mediante três piadas curtas narradas, dava-nos o tempo para sair do palco e trocar a vestimenta. Na verdade era estratégico apenas para acrescentar um ridículo paletó, com um corte "futurista" e cor de abóbora... voltávamos ao palco para a música seguinte que levava-nos direto à Jovem Guarda dos anos sessenta...
A próxima música era: "Benzinho". Tratava-se de uma canção que levava-nos para a Jovem Guarda, com o Laert a se portar como um cantor bastante popular a se apresentar com os típicos trejeitos em sua mise-en-scène e na interpretação, sobretudo. 

Como eu já falei, entrávamos com um ridículo paletó cor de abóbora, e que tinha um corte supostamente "futurista" que aliás, suscitou dúvidas da costureira que os confeccionou, pois sempre perguntava-nos nas provas que fazíamos: -"tem certeza de que querem assim mesmo?" Pois era propositalmente medonho, a se descrever. A letra, lógico, era absurda, e ironizava a sexualidade, com analogias explícitas à política econômica da época. Eis a letra:

Benzinho (Carlos Melo/Laert Sarrumor)

Benzinho, minha sexualidade
De fato é bem pior que a do Marquês de Sade
Me dá a tua mão, que eu quero amputar
Põe aqui o teu pescoço, que eu vou guilhotinar

As formas ortodoxas de conseguir prazer
Estão mais ultrapassadas do que motor de DKW
Por isso mete bronca, não banque a demodeé

Benzinho, que louca perversão
Não posso ver Lolita, me dá logo emoção
Se sou incestuoso, mamãe é que é culpada
Quando fiz 5 anos, passou-me uma cantada

Antigamente, eu era um libertino matusquela
Minha vida mudou ao ler o fórum da Ele & Ela
Hoje pedofilia, pra mim é uma balela

Benzinho, não me julgue um palerma
Só quero te afogar num mar de sangue e esperma
Arranca a minha unha, provoca um hematoma
Como nos 120 dias de Sodoma

Em termos de sacanagem
Eu só conheço a teoria
Pois quem domina o assunto,
Principalmente a sodomia

Não sou eu nem tu, benzinho
São os ministros da economia...


O final levava o público ao delírio, pois o Laert fazia gestos para reforçar o conceito do que a política econômica fazia com a "poupança" do povo, digamos assim. 


Foi inacreditável, também que a censura a tenha liberado à época, não só pelas citações a conter tabus morais, mas principalmente pela explícita provocação à equipe econômica do então vigente, governo Figueiredo. Era sempre um grande momento no show, no entanto, pelo enfoque da provocação hilariante.
A seguir, acontecia um samba-de-breque, daqueles bem tradicionais, no estilo do Moreira da Silva, velha guarda carioca etc. Chamava-se: "Samba do Inferno" e brincava com a "Divina Comédia" de Dante Alighieri, a fazer piadas políticas daquele momento de 1983-1984. 

Claro, quem faz música satírica, sabe (pergunte ao Juca Chaves), que a data de validade das músicas é limitadíssima. Rapidamente se torna anacrônica e tempos depois, perde o imediatismo da situação. Quando é necessário explicar a piada no contexto do seu tempo, perdeu mesmo a graça, e fica apenas como objeto de estudiosos, musicólogos e/ou preservadores/resgatadores de matéria cultural. 

Mas claro, compositores inspirados como Laert Sarrumor, Carlos Melo (Castelo) e Guca Domenico, entre os principais que alimentavam o Língua de Trapo com o seu material, sabiam disso muito bem, e certamente não preocupavam-se com a vida curta das piadas, ao produzir sempre novidades frescas ao sabor das atualidades, principalmente no espectro do mundo sociopolítico. 

Dentro dessa premissa, a  interpretação desse "Samba do Inferno" era aquém das anteriores no quesito da "performance", figurino ou efeitos especiais. Mas a letra da música detinha os seus bons momentos, com tiradas políticas pertinentes à sua época.

"Samba do Inferno" (Carlos Melo - Lizoel Costa)

Um belo dia, depois do expediente
Quando eu botava no cabide o meu terno
Tive um mau súbito, morri de-repente
Indo parar nas profundezas do inferno

Passei no céu, mas resolveram me barrar
Burocracia lá no céu é o que é que há
É que eu morri sem preencher regulamento
Que dá direito a residir no firmamento

Levei cartão, ganhei status de banido
Pois me levaram direto pro purgatório

Um anjo disse: "Faça um último pedido"
Lhe perguntei onde é que fica o purgatório

Fui sem escalas lá pros quintos dos infernos
Onde Satã me fez assinar um caderno
E disse: "Nego, tudo aqui é organizado"
Teve um rebu, agora tudo é estatizado

Lá no Inferno, todo mundo come alcatra
Só dá ministro, e presidente de nação
Tá entupido de fãs do Frank Sinatra
E de apresentadores de televisão...

Tem ruas largas onde até um jato pousa
A maior delas chama Anastácio Somoza
E adivinhe quem por lá comanda a plebe
É o Adolfinho com o Xá Reza Pahlevi

Lá no inferno, as mulheres andam nuas
Mostrando tudo, até o fruto proibido
Mas seu Satã ferra com a gente, senta a pua
É que no inferno nem um homem tem libido

Ontem eu fugi pro paraíso com um sujeito
Que fez o mapa do inferno pelo jeito
Diz que é poeta e cheio dos guéri-guéri
Seu nome acho que é Dante Alighieri...
A seguir, saíamos do palco sob a deixa de mais uma vinheta de áudio e enquanto o público continuava a desopilar o fígado, tirávamos aquele paletó cor de abóbora, medonho, e voltávamos ao palco no uso de chapéus de cowboy norte-americano. Tratava-se de um chapéu vermelho, bem espalhafatoso e claro, já arrancava risadas mesmo antes de começarmos a próxima música. 

Era o momento para executarmos a canção: "Country os Brancos", um "country" propriamente dito, a satirizar o preconceito contra os índios e claro, ao final, com uma provocação à Funai, que também não sei como a censura da ditadura deixou passar. A música é de autoria do Carlos Melo e do Lizoel Costa. O Laert a cantava junto com o Pituco e ambos entravam com revólveres de brinquedo e coldre.

"Country os Brancos" (Carlos Melo e Lizoel Costa)

Meu sonho era ir para o Velho Oeste
Dar uns tiros de pistola e de canhão
Fazer tudo que John Wayne fazia
Co'as filha dos cacique valentão

Meu sonho era ser um texano
Dos bem bacano, o xerife mais temido
Daquele que chega em casa e beija o cavalo
E na mulher, finca um tapão no pé do ouvido

Me lembro dos meus tempo de pixote
Nóis ia no cinema de domingo
Pra ver aqueles filme engajado
Dólar furado, Bat-Masterson e Ringo

O Rin-Tin-Tin era um big dum artista
Era racista, só mordia as indiarada
Porque nos filme Bang-Bang que se preza
Pele vermelha sempre vira carne assada

Tirei passaporte pro Arizona
Meu sonho era inda ser cowboy
Quando cheguei nos Estados Unidos
Fui recebido com as honras de um herói
Xerife me deu um revólver de prata

E disse :"Mata quantos índios o senhor quiser"
Porque aqui o cabra que matar mais indio
Tem por troféu a mais formosa das muié

Fui dando tiro a torto e direito
Matei uns déis indígena medonho
Casei com um muierão de sete parmo
Depois mais carmo vi que tudo era um sonho

Eu nunca fui cowboy no Arizona
Tô no Amazonas tem uns quatro mês ou mais
Num devo nada pros cowboy que tem no Texas
Pois ando armado a serviço da Funai


Os erros gramaticais/ortográficos são todos propositais, ao estilo de Adoniran Barbosa...
A seguir, todos saiam do palco, e só ficavam em cena, o Lizoel Costa e o João Lucas. Ambos estavam acostumados a satirizar duplas sertanejas, não esses artistas popularescos surgidos na Era pós-governo Collor, mas sim, as duplas de raiz, como Tonico & Tinoco, e similares. 

Então, eles contavam algumas piadas a carregar no sotaque interiorano, com o Lizoel ao violão e o João Lucas no acordeom, tocavam a música: "Toada da Subcultura". O grande impacto era  obtido ao se potencializar o contraste entre toda aquela estética caipira, que usada para falar de política engajada, e tornava-se hilário abordar o tema sob esse caráter prosaico. 
Um truque usado toda noite e que funcionava muito bem, era protagonizado pelo ator, Paulo Elias. Ele saía do camarim pelo jeito que fosse possível em cada local que atuávamos, para não ser visto pela plateia, e a usar roupas comuns do cotidiano, infiltrava-se na plateia, como se fosse um espectador que chegara atrasado ao auditório. 

No meio de uma piada contada pelos "caipiras", Lizoel e João, o Paulinho soltava um berro: -"essa piada é velha!" Imediatamente o João Lucas retrucava ao microfone: -"a sua mãe também é velha, mas não é todo mundo que conhece!" Então o teatro vinha abaixo, sob uma reação esperada por todos nós, e assim se dava a deixa para a música começar. 

Quanto ao Paulinho, ele nem esperava pela resposta do João Lucas, pois a sua função na sketch estava cumprida. Dessa forma, ele voltava imediatamente ao camarim, onde preparava-se para novos números. 
O número cumprido pelos dois era muito bom, e arrancava muitas risadas do público. E também era estratégico para dar um respiro para o restante da banda. A música era de autoria do Carlos Melo e do Lizoel Costa. Essa era uma das raras músicas antigas que foram executadas no show de estreia, realizado no TUCA, em 15 de novembro de 1983.
"Toada da Sub-Cultura" (Lizoel Costa/Carlos Melo)

Nós já pensemo em assartá um banco
Pra levantar dinheiro pra comprar um carro
Nós já cansemo de andar a tranco e barranco
De andar a pé e ficar amassando barro

Nóis quer trocar nossas charrete ultrapassada
Mas nem que seje pra berganhar por um barco
Porque as muié só qué andar motorizada
Na base do automovi movido a arco

Juro por Deus, se nóis ganha na loteria
No mesmo dia nóis torra 100%
Comprando uma romisetinha bem robusta
Pra ir pra Augusta arrumar um casamento

Por Deus do céu, acho que nóis daria um braço
Pra ter uma caranga envenenada
Com tala larga e os párachoque de aço
Pra todos sábados arrumar namorada

Farol de milha e os escapamento aberto
Um toca-fitas americano bem possante
Tocando sempre aquelas musca do Roberto
De preferência "Lady Laura"e "Amada Amante"

Eu sei que iam chamar nóis de preibóizinho
De burguesinho e até de matusquela
Porque o cotovelo do invejoso dói
Ao ver preibói, ao ver um astro de novela 


Erros ortográficos propositais, naturalmente foram concebidos para reforçar o conceito "Lobateano" do Jeca Tatu.
Então, chegava o momento para executar-se: "Na Minha Boca". 
Tratava-se de um samba tenso, com um andamento lento e que acompanhava a agonia do cantor em transmitir a mensagem, sob uma interpretação brilhante do Laert, que simulava a persona de um preso político ao tentar expressar-se após uma sessão de tortura. 

Ele entrava com uma camisa-de-força, maquiado como se tivesse acabado de sair do eletrochoque e cantava em meio a movimentos para livrar-se da camisa. E a entrada era também chocante (com o perdão pelo trocadilho), com o personagem a ser conduzido ao palco pelo ator, Paulo Elias e pelo Pituco Freitas, vestidos como policiais supostamente à paisana, ou seja, aquele "disfarce" que mais parecia uniforme, de tão ostensivo que se mostrava. 

E para o meu orgulho e do Laert, essa música era do repertório do antigo, "Boca do Céu", o nosso grupo de Rock nos anos setenta, e naturalmente a se configurar como um autêntico tesouro de nossos primórdios na música.

"Na Minha Boca" (Laert Sarrumor)

Eu tenho tanta coisa pra dizer
Mas as palavras não brotam na minha boca
Eu acho que tô com medo de falar
Falar é muito difícil, que coisa louca


Eu tenho tanto medo pra falar
Mas as palavras não dizem que coisa louca
Eu acho que eu tô com muita coisa pra brotar
Brotar é muito difícil, na minha boca

Fulano falou e não se deu bem
Sicrano calou e tudo bem
Na sala, todo mundo mudo
Com medo da bala que vem à baila
E ninguém fala...

Nos primeiros versos, ele gaguejava, e soltava-se da camisa-de-força. Com o semblante a denotar medo e confusão mental, e tudo isso acentuado pela maquiagem, eis que na metade para o final da execução, ele cantava mais desenvolto, e a banda acompanhava-o gradualmente a aumentar o andamento da canção. 


Em princípio, a tocar com o ritmo fragmentado para acentuar a questão da tortura e entrar enfim no balanço normal para a parte final. Mas a verdade foi: acredito que mesmo com uma mensagem praticamente explícita, não foi todo o espectador que percebia o seu teor e nesse caso, devia considerar ser apenas uma música que falasse sobre manicômios, talvez uma crítica ao sistema de saúde. 

Eram poucos mesmo os que percebiam que tratava-se da história de um torturado político pela repressão da ditadura, a tentar denunciar tal abuso. Essa canção foi, pelo teor forte, uma das prediletas de todos os os membros do Língua de Trapo, mas não arrancava risadas fáceis da parte do público, a destoar um pouco da praxe do show.
Então tocávamos um Rock. A ideia neste caso, foi fazer um Rock simples, ao estilo dos Rolling Stones, sem firulas e de certa forma atemporal, ao não firmar a piada em cima da caricatura musical em si. Chamava-se: "Crocodilo" e foi uma composição do Laert Sarrumor.  

O objetivo foi satirizar os exploradores da fauna e da flora, portanto tem um certo caráter ecológico, mas a real intenção subliminar, foi mesmo alfinetar os políticos conservadores, invariavelmente contrários à reforma agrária e geralmente envolvidos com uma série de crimes ambientais. 

Independente do tema e da piada, eu gostava muito de tocar essa canção, pois era um momento em que mais a nossa banda aproximava-me do Rock, embora esse não fosse o objetivo do trabalho do Língua de Trapo. O Laert a cantava e fazia uma performance a la Mick Jagger que o público apreciava e entrava no embalo. Se por um lado era um momento de interação musical, por outro, essa pequena euforia, tirava um pouco o foco da letra, e o seu objetivo que era fazer rir, porém, a refletir sobre o tema. 

Conforme comentarei mais para a frente, essa música foi ao ar no programa: "A Fábrica do Som", em 1984, e trata-se de um dos poucos vídeos que existem no YouTube, com a minha presença na banda.

"Crocodilo"(Laert Sarrumor)

Sou do Centro-oeste, tenho muito estilo
Carango importado, bolsa crocodilo
Sou o novo rico de Goiás
Já garanti meu dia de amanhã
Comprei fazenda em Ponta Porã
Eu tiro o couro, arranco a pele, extermino, assino e dou fé

Todo mundo sabe, já deu no jornal
No Globo Repórter deu especial "Matança no Pantanal"
Mas todos tem é que cruzar os braços
Pois para o dólar, não há embaraços
Eu tiro o couro, arranco a pele, extermino e dou fé
Eu mato jacaré, eu mato jacaré...
A seguir, tocávamos um frevo, chamado: "Conspurcália", de autoria do Laert Sarrumor. Nessa animada canção com ares carnavalescos, o Laert escreveu uma letra para satirizar a indústria alimentícia, e a quantidade absurda de autênticas porcarias que tal indústria nos obriga a ingerir, ao colocar elementos químicos abomináveis como componente embutido na comida industrializada, sem o menor pudor. 

Hoje em dia é tema na moda, com a onda ecológica que vivemos, mas em 1983, soava como algo exótico ou mesmo como uma preocupação deslocada, coisa de "hippies desfasados". Claro, por tratar-se de Língua de Trapo, o tratamento sarcástico estava garantido. 

Lembro-me do guitarrista, Serginho Gama, ao realizar um pequeno ritual para provocar o público. Isso foi fruto da improvisação dele, e não aconteceu no show de estreia. Tal ideia foi sendo desenvolvida ao longo das apresentações, e só consolidou-se durante a temporada no Teatro Lira Paulistana, meses depois. Após uma vinheta rápida, ele costumava voltar ao palco, a vestir uma camiseta do time do Botafogo (seu time, pois ele é carioca).  

Então, Serginho entrava em cena a forçar os trejeitos bem de "malandro carioca", e a tomar um refrigerante, geralmente "Fanta Laranja', em lata. Muitas vezes, ele oferecia às pessoas da plateia. Só por entrar com a camiseta do Botafogo, já causava reações. Geralmente vaias e pequenas provocações, principalmente aqui em São Paulo, onde os times do Rio, são rivais históricos dos nossos. Mas mesmo com esse clima não coadunado com o espírito da piada, e apesar da latinha de refrigerante a denotar o efeito paradoxal da não malandragem, aliás, uma sutileza que só percebiam ao final da música, o fato é que gerava um efeito interessante. 

A música em si, empolgava também. Lembro-me do Naminha, a iniciá-la na caixa e bumbo da bateria, e imediatamente contagiar o teatro. E aí, entrávamos com o instrumental todo, e o Laert a cantava em duo com o Pituco. Gostava de tocá-la, pois lembrava-me os frevos do Moraes Moreira. Uma canção bem composta, bem arranjada, empolgante, e claro, com a sua letra a se mostrar tão corrosiva quanto a química colocada na comida industrializada e portanto, com forte apelo satírico, no clima do trabalho todo. 

"Conspurcália"  (Laert Sarrumor) 
Há dias em que eu chego em casa
Preparo algo para comer, um lagarto me sorri, sarcástico e ferino
Um ácido corrói parte do intestino
Congelada, a carne me convida
E a salada é só inseticida
Esta comida, menina, tem anilina

Engorda o porco e faz morrer
Corantes, acidulantes
Gases, aromatizantes
Mamãe prepara a merenda com muito carinho
E assim ela encomenda a gastrite do filhinho
Que beleza, a cirrose está posta
E a sobremesa, lá-lá-lá-lá-lá
Esta comida, menina, tem toxina
Engorda o porco e faz morrer
É esse maldito regime, é esse maldito regime macrobiótico
É esse maldito regime, é esse maldito regime macrobiótico   

Nem preciso dizer que os versos finais detinham dupla conotação. 
"maldito regime", tinha esse poder como duplo sentido, ao cutucar a ditadura. Não fora uma novidade, pois lembro-me bem do humorista, Jô Soares, que nos anos setenta, protagonizara um espetáculo denominado: "Viva o Gordo, Abaixo o Regime", com essa clara intenção para provocar a dubiedade. Mesmo sem ser original, a ideia para essa música era muito boa, e rendia sempre muitas risadas nos shows.

E era a chegada a hora de satirizar o universo das Escolas de Samba, os seus Sambas-Enredo com temas históricos e histriônicos por conseguinte, e outros maneirismos típicos desse mundo. Laert e Carlos Melo não economizaram nessa sátira, pois foram mexer em  um vespeiro muito perigoso, pois o personagem a ser homenageado nesse "samba-enredo" fora um ícone da extrema-direita brasileira, fundador de uma organização ultra católica, e ligada aos valores mais reacionários possíveis. 

Em tempos ainda de ditadura, embora abrandada, e a caminhar para o seu final, não era de bom tom fazer uma sátira desse porte ao lidar com uma organização ainda muito ativa naquela ocasião, e famosa pela sua militância forte pelas ruas. Mas a letra passou na censura (inacreditável que tenha passado!), e nós passamos a executá-la nos shows. Mais para a frente, relatarei os problemas que tivemos por conta disso. E a música é hilária, não posso deixar de anotar!

Laert interpretava o "puxador do samba", ao cantá-la com todos os clichês típicos dos desfiles do carnaval, a arrancar gargalhadas histéricas da plateia. O Pituco atuava como uma "cabrocha", a dançar, ou melhor, sambar/rebolar, com aqueles trejeitos todos, e reforçava o vocal no refrão. O Lizoel fazia o cavaquinho, e a ideia inicial fora que todos os demais tocassem instrumentos de percussão para reforçar a batucada, ao dispensar o uso de baixo, guitarras e teclados.

O João Lucas atuava como a "porta-bandeira" da Escola de Samba, com o ator Paulo Elias, a fazer o papel de "mestre-de-cerimônias". Mas aí entrava o detalhe picante, pois a bandeira da escola era um estandarte da tal organização criticada, igual ao que os seus membros usavam verdadeiramente nas manifestações de rua que promoviam desde os anos 1960, muito comum, pelo menos aqui em São Paulo. O João entrava no uso de de terno e gravata, o que aumentava a ironia e o Paulo Elias usava uma roupa de carnaval, mesmo, para garantir o contraste. 

Ao longo dos shows, eu tive uma ideia cênica, que apresentei ao grupo e foi aceita. Inclusive essa performance que eu fazia, tornou-se tão engraçada que realmente acrescentou muito ao número, e já a antecipar, uma vez em um show realizado no Rio de Janeiro, eu recebi elogios de um diretor de teatro, que pensou que eu fosse ator. Não sou, claro, mas nessa performance eu acho que convencia. Foi o seguinte: como nos primeiros shows eu tocava burocraticamente um "agogô", que pouco acrescentava à batucada, tive a ideia de evoluir pelo palco, a simular tocar uma ridícula caixa de fósforos, o que foi uma imensa ironia em meio à bateria ensurdecedora de uma escola de samba. 

Eu circulava como se estivesse a evoluir na avenida, fazia performance de mise-en-scène com a "cabrocha" Pituco, e às vezes imitava aqueles organizadores de desfile, que ficam a gritar como se fossem treinadores de futebol, para que os integrantes não dispersem. Eu fazia essa encenação toda e via as pessoas da plateia a cutucar-se umas às outras, para mostrar a minha evolução com uma ridícula caixa de fósforos, e a rir de forma compulsiva. Era um grande momento do show e claro, a cutucada no pensamento mais retrógrado era apreciada demais pelo público predominantemente universitário e simpatizante de uma pauta mais progressista. 

O Língua de Trapo teve tantos problemas por mexer com isso tudo, que após a minha saída definitiva da banda, só foi gravá-la em 1985, com mudanças radicais na letra, sob ameaça de processos pesados. Para não ofender ninguém, e não é a minha intenção, mas apenas relatar essa parte da minha carreira com o Língua de Trapo, vou reproduzir a letra a suprimir as partes que possam ser interpretadas como ofensivas àquela tal organização. 

"Samba-Enredo da... "xxx" (Carlos Melo / Laert Sarrumor) 

"XXX" pede passagem, pra mostrar sua bateria 
E seu passado de coragem, defendendo a Monarquia 
Salve "YYY", precursor da linha-dura 
Grande baluarte da ditadura 
Legislador da Inquisição, implacável justiceiro 
Homem de grande erudição, lia Mein Kampf no banheiro 
No tribunal de Nuremberg, defendeu o Mussolini 
Sob os auspícios do Lindenberg 
E hoje ele se preocupa com a infiltração comunista 
No Clero progressista  (e o Lefebvre) 
Levebvre, fiel companheiro, incomparável amigo, irrepreensível mentor  
Exerce completo fascínio e vai incluindo no "XXX", o gênio conservador 
Digno de um poema de Ezra Pound, quer que o Brasil se transforme 
Num imenso playground 
No carnaval, a escola comemora o nascimento de "YYY" 
E a defesa da tradição, cantando esse refrão : 
Anauê, anauê, Anauê, "XXX" acabou de chegar (repete) 
E hoje sou fascista na avenida, minha escola é a mais querida 
Dos "reaça" nacional (repete) 
Plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim, plim 
Era assim que a vovó o seu "YYY" chamava...  

Bem, o "Anauê", era a saudação ritualística do partido integralista, nos anos 1930, semelhante à saudação nazista. Para os mais antenados em história, a piada era irresistível, ainda mais realçada pelos trejeitos do Laert a fazer a saudação integralista com o braço. E aqui no relato, eu omiti as partes possivelmente ofensivas a pessoas e organizações, ao colocar as onomatopeias em forma de letras, "XXX" e "YYY", no lugar.
A encerrar o show, tocávamos uma composição do Laert, chamada: "Jogo Sujo". Essa canção detinha una estrutura rítmica e harmônica bem quebrada, ao estilo do trabalho do Arrigo Barnabé, e uma letra com um instigante jogo de palavras, a evocar imagens aparentemente díspares. Mas na verdade, tinha seu teor político, como quase todo o trabalho da banda. 

Há de ressaltar-se também, que o Laert, e o ator, Paulo Elias, faziam uma performance corporal para realçar a estranheza da música. Com figurinos de tecido "colant" ao estilo "Polichinelo", faziam uma estranhíssima coreografia que arrancava risadas frenéticas da plateia. 

E deixo claro que todas as músicas que eu comentei e postei as suas respectivas letras, foram tocadas no set list do primeiro show dessa nova turnê, mas essa ordem, logo sofreu mudanças. Algumas músicas antigas do primeiro LP da banda, foram realojadas no set list, pois como já comentei, causa sempre um desconforto tocar apenas músicas novas em um show, e isso vale até para artistas mega conhecidos. Se os Rolling Stones tocam uma música do último CD, o público fica estático, mesmo que ela seja excelente. Contudo, se a banda tocar o seu clássico, "Satisfaction", no primeiro compasso, o estádio em que se apresentam, desaba. É uma reação normal do ser humano, estranhar ter contato com algo novo. Depois da letra de "Jogo Sujo", sigo em frente, a relatar sobre o segundo show da turnê, em diante!  


"Jogo Sujo" (Laert Sarrumor) 

Fi-lo assim porque  
Vilipendiou-me a sua empáfia 
Quis outrossim ater 
O meu argumento a uma falácia 
Vociferante criatura 
Enredaste-me na peripécia 
E em tamanha desventura 
Joguei o teu jogo por inércia, inércia, inércia...
Fi-lo assim porque 
Vilipendiou-me a sua empáfia 
Quis outrossim ater 
O meu argumento a uma falácia 
Usaste de muita malícia 
Usaste de muita lascívia 
Foste um caso de polícia 
Deste um golpe na Bolívia / Bolívia, Bolívia...
 
Terminado o show de estreia no Tuca, recebemos amigos, e muitos fãs no camarim, e apesar de sabermos que o show houvera tido diversas falhas, principalmente no seu chamado "tempo" de teatro, no cômputo geral, foi uma boa estreia, e o público gostou, apesar da enorme quantidade de músicas novas. Acrescento ainda que tocamos duas músicas como bis, "Concheta" e "Xingu Disco", que realmente levantou o público, por serem ambas, conhecidas do LP de 1982, e exaustivamente tocadas nos shows da turnê anterior, "Obscenas Brasileiras". 

Continua...

Um comentário:

  1. Luiz Dominguez, gostei muito desta publicação. Como faço para conseguir uma cópia do hinário do Show Sem Indiretas, fui a muitos shows, no MEC Funarte, SESC Pompéia, Lira etc...e queria muito um exemplar do hinário. Agradeço muito se puder me responder. Abraços

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