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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Língua de Trapo - Capítulo 17 - Um Disco, enfim, e as Noites Cariocas - Por Luiz Domingues

Jerome Vonk, nosso empresário ultra dinâmico do Língua de Trapo, durante a minha segunda passagem pela banda, em foto bem mais atual

Ao seguir em frente, o Jerome havia tido uma ideia, e com o apoio integral do Selo Lira Paulistana, ela foi posta em prática nos shows dos dias 17 e 18 de março de 1984. Uma unidade móvel foi alugada, e os dois shows foram gravados, com o objetivo de se lançar um compacto simples, ao vivo.
Esse compacto seria distribuído gratuitamente a cada pessoa que comprasse o ingresso nos shows que faríamos entre 19 e 29 de abril, ali mesmo no Lira Paulistana, após a temporada do Rio de Janeiro. Portanto, falo agora sobre essa produção que transformar-se-ia no único registro fonográfico oficial do Língua de Trapo, com a minha presença na formação. 

Lembro-me que a unidade móvel contratada para gravar o show, estacionou uma Kombi no beco que dava acesso à saída de emergência do teatro, e no seu interior, trazia todo o equipamento, com mesa, paramétricos, e onde ficava a máquina de gravação (acho que era uma "Tascam", mas sinceramente não recordo-me com total certeza). O multicabo teve que ser emendado, pois não conseguia atingir o palco, adequadamente. O fato, é que a parte traseira do Teatro Lira Paulistana, continha uma escadaria que dava acesso à uma rua, que na verdade era um beco ermo.
Então, a Kombi parou lá atrás, e o multicabo mal conseguia chegar ao palco do Lira, pela distância grande. Uma ginástica teve de ser feita pelo técnico de som, Douglas Martins (auxiliado por Chico Pardal e Roque Correia), que teve uma paciência enorme, ainda bem. Com tudo devidamente microfonado, fizemos alguns testes durante o soundcheck e no shows, combinamos entre nós da banda, prestar muita atenção, contudo não esquecermo-nos que o público pagaria para assistir, e não tinha nada a ver com a nossa preocupação em não errar por conta da gravação.
Eu, particularmente, fiz os dois shows normalmente, a realizar minha mise-en-scène normal, sem preocupar-me com a gravação, mesmo porque, se tocasse preocupado, acredito que seria pior, pelo aspecto psicológico e a indução ao erro, tornar-se-ia inevitável. 
 
Lembro-me que na primeira noite gravada, nós ficarmos nas dependências do teatro, até bem depois do público dispersar, pois queríamos ouvir a gravação. Uma reação absolutamente normal, pois todo músico adora ouvir o que gravou, imediatamente. E nós gostamos da performance e da captura inicial, ao dar-nos um bom ânimo para cumprir o show do dia seguinte e consequente segunda gravação.

Alguns dias depois, fomos ouvir o material, e participar da mixagem. Para não tumultuar, nem todos foram ao estúdio (Violão & Cia., de Santo André-SP, com a assistência técnica de Claudio Lucci). Eu fui um dos escolhidos para compor essa comissão a representar a banda. Em um dia de semana a noite, após voltarmos do Rio de Janeiro (pois emendamos temporada de duas semanas por lá), enfrentamos essa tarefa.
Claro, não houve muito o que opinar, pois foi uma captura rápida, e a mixagem também foi feita a toque de caixa, em virtude das poucas possibilidades sonoras no tocante à equalização, e muito mais pelo fator da pressa pelo resultado final, pois o Jerome queria prensar o disco enquanto estivéssemos no Rio, e assim quando retomássemos a temporada no Lira Paulistana, já usaríamos o álbum como um novo fator promocional. A seguir, volto à cronologia e foco na partida para o Rio de Janeiro.

Mais uma semana de shows no teatro Lira Paulistana aguardara-nos. A semana começou boa, com noventa pessoas a assistir-nos no show da quarta-feira, dia 28 de março de 1984. No dia 29, cento e vinte pessoas passaram pela bilheteria. E na sexta, dia 30, foram duzentas e cinquenta pessoas. No sábado, dia 31 de março, o Jerome marcou uma "sessão maldita". 
Eu nunca houvera apresentado-me em uma sessão maldita, antes, e apenas mantinha comigo a lembrança por ter assistido a várias de muitos artistas, nos anos setenta. 
 
Claro que o Língua de Trapo não era uma banda de Rock, mas foi muito estimulante ter passado por essa experiência de fazer um show a meia-noite em ponto. Então, a primeira sessão movimentou trezentas e sessenta pessoas no teatro e a segunda, contou com duzentas pessoas na plateia. 
 
E para fechar a semana, tivemos mais duas sessões no domingo, dia 1° de abril de 1984. Na sessão das 18:00 horas, com duzentas e quarenta pessoas e trezentas e cinquenta na segunda, através do horário habitual das 21:00 horas. 
 
Estávamos com as malas prontas no domingo a noite, pois na segunda-feira, embarcaríamos para o Rio de Janeiro, onde faríamos uma temporada na Sala Sydney Miller, sala pertencente à Funarte. Tenho histórias para contar dessa temporada no Rio, a começar pela viagem que ocorreu na segunda-feira, dia 2 de abril de 1984.
Viajamos durante toda a madrugada, para chegar cedo ao Rio. Estávamos exaustos, pois fora uma semana dura, permeada por sete shows seguidos, e sem tempo para descansar, saímos do segundo show de domingo, direto para a rodoviária.


Chegamos no Rio, e fomos imediatamente à Sala Sydney Miller, localizada no prédio da Funarte, bem na Cinelândia, centro da cidade. Exaustos, sem ainda ter à nossa disposição o apartamento que Jerome alugara-nos para ficarmos alojados nas duas semanas de temporada que faríamos (o contrato firmado de locação, previu a tomada de posse após as 12:00 horas), descansamos em uma sala do museu, sobre os carpetes felpudos, e sob os olhares dos personagens históricos, retratados através das pinturas ali exibidas por uma exposição do acervo.

Lembro-me que eu desmaiei de cansaço, e só fui despertar por volta das 11:00 horas da manhã. Os seguranças do museu da Funarte devem ter nos considerado um bando de hippies desocupados, mas o cansaço fora realmente total. Recompostos, fomos então para o bairro de Copacabana, onde o Jerome havia alugado um apartamento por duas semanas.
Este ficava localizado na Rua Barata Ribeiro, logo no seu início, após o cruzamento com a Av. Prado Jr, ou seja, na virada que todo o fluxo de veículos faz, ao vir do Aterro do Flamengo, via avenida Princesa Isabel, no Leme, em direção aos bairros da orla da zona sul. Logo que chegamos, o Jerome organizou comissões. Uma equipe ficou a limpar e arrumar o apartamento, e outra, da qual voluntariei-me, foi ao supermercado para fazer compras. Lembro-me em ter ido com o Paulinho Elias, Jerome, e João Lucas, ao supermercado "Casas da Banha", na Av. Nossa Senhora de Copacabana.

Foi a primeira vez que eu fui ao Rio, por incrível que pareça, mas adaptei-me, e familiarizei-me instantaneamente. E mal sabia eu, que naquele bairro, eu voltaria inúmeras vezes em um futuro próximo, e assim a conhecer todo o seu circuito de cinemas; livrarias, sebos, lojas de discos e outros tantos estabelecimentos, a chegar em um estágio de cumprimentar lojistas pelo nome...

Ainda na segunda-feira tivemos uma missão de divulgação. Fomos à redação do Jornal do Brasil, para uma visita de cortesia, e de fato, tivemos um bom apoio com cobertura para o show. A temporada no entanto iniciar-se-ia na terça-feira, e o restante dessa segunda-feira foi usada para ajustes na adaptação ao apartamento, e repouso para entrar com energia na temporada carioca.

Na terça-feira, dia 3 de abril de 1984, estreamos no auditório Sidney Miller, da Funarte, no Rio de Janeiro. Antes de iniciarmos, contudo, durante o soundcheck, passamos pela experiência de submetermo-nos à apreciação de um diretor de cena. 

Ocorre que era uma norma da Funarte, que mesmo sendo um show musical, seria obrigatória a assinatura de um profissional de teatro para abalizar o espetáculo, e dessa forma, o Jerome contratou um diretor, no Rio. Como o nosso show era todo teatralizado, e já estava montado, o rapaz limitou-se a nos dar algumas pequenas dicas sobre marcações, que mais serviram para auxiliar o iluminador, que também era um profissional fixo do teatro, e não conhecia-nos. A única dica valiosa que somou, foi durante a gag de uma música nova.

Tratou-se de um fado português ("Fado da Falência"), e nessa performance, o Laert entrava vestido com roupas folclóricas lusitanas. E para reforçar a piada, eu, Luiz, Serginho Gama, Lizoel Costa, João Lucas, e Naminha Casseb que participavam do mesmo número, levávamos cadeiras para tocar bem próximo dele, Laert, a simular músicos portugueses de fado, que geralmente tocam sentados e perfilados, próximos ao cantor.

E enquanto ele entrava em cena, fazia parte da encenação que nós fizéssemos uma tremenda trapalhada com os instrumentos e as cadeiras, a brincar com o estereotipo da suposta falta de inteligência dos lusitanos (eu participava dessa piada sob protesto, claro...), que aliás hoje em dia, tal expediente talvez nem fosse usado, sob ameaça de ser considerada uma piada politicamente incorreta. 

Nessa sketch, o tal diretor achou a confusão excessiva, e aconselhou-nos a coibir exageros. Foi somente essa a orientação do rapaz, e então, a sua atuação foi justificada mais para preencher uma exigência burocrática da parte da Funarte. 
 
Nós fazíamos o show das 21:00 horas, mas às 18:00 horas, havia um outro projeto de shows, chamado: "Projeto Pixinguinha". Nas duas semanas em que usamos o teatro, dividimos o espaço com a famosa cantora da MPB, Nana Caymmi.

Então, após o show da Nana, que assistimos pela coxia, fizemos o nosso primeiro show dessa temporada, e o primeiro da minha carreira, no Rio de Janeiro. Foi em uma terça-feira e apenas quarenta e cinco pessoas passaram pela bilheteria, o que representou pouco para os padrões do Língua de Trapo em seus shows realizados em São Paulo, porém tratou-se do primeiro dia, e naturalmente que esperávamos uma melhora significativa no decorrer da temporada. E foi o que aconteceu, a animar-nos.


No dia seguinte, começamos a acostumarmo-nos com a rotina dessa temporada. Acordávamos por volta das 10:00 horas da manhã, e tínhamos tempo livre. Rapidamente eu rastreei o bairro, ao menos nos quarteirões mais próximos, até o cruzamento das ruas Barata Ribeiro com a Siqueira Campos. E diante dessa prerrogativa, eu fazia caminhadas, e descobri agência do correio, uma doceira (onde passei a frequentar todo dia para comprar brigadeiros, e a prossegui a visitá-la posteriormente por anos, até o início dos anos noventa), bancas de jornais, sebos & livrarias, e as salas de cinemas, próximas.
Depois do almoço, se não tivéssemos nenhuma tarefa de divulgação, podíamos descansar até pelo menos as 16:00 horas, quando seguíamos com ônibus urbanos normais até a Cinelândia, para chegarmos ao teatro, antes do show da Nana Caymmi iniciar-se, e se possível, antes mesmo da abertura da sala para o público. 
 
Uma pessoa que auxiliou-nos de forma muito contundente nessa temporada, foi o cartunista, Chico Caruso, que era o chargista oficial do jornal: "O Globo".
O genial cartunista, Chico Caruso, muito amigo do Língua de Trapo 

Muito amigo dos membros do Língua de Trapo, desde muito tempo, o Chico Caruso fazia de tudo para abrir frentes de divulgação em nosso favor, e o seu poder de influência era forte. Um grande amigo, e também por ser um artista ligado ao humor, em 100%, ele gostava muito do trabalho do Língua de Trapo.
Essa amizade foi tão profícua, que ainda em 1984, ele ajudar-me-ia pessoalmente, em uma ocasião na qual fui ao Rio para tratar de assuntos sobre a produção de minha outra banda, A Chave do Sol, mas claro, conto esse episódio no capítulo adequado. 
 
Nessas andanças pelo Rio, nas horas de folga, era possível sentir -se no ar o clima de euforia em torno do BR-Rock oitentista, em seu auge. Parecia que essa vibração havia tornado-se um fenômeno popular, pois no comércio, nos rádios dos carros, bares e restaurantes, ouvia-se o som daquelas bandas que estavam estouradas no mainstream.
Fora o fato de se observar o tempo todo a presença desses artistas estampadas nas bancas de jornais, através das capas de revistas. Claro que eu não gostava dessa estética, mas essa vibração tinha um lado positivo, que eu reconhecia ser interessante, e mesmo com padrões artísticos muito diferentes daquele modismo calcado na estética do Pós-Punk e que tais, eu considerava essa euforia benéfica, por talvez dar-me esperanças de que seria possível abrir portas para outras vertentes, como se representasse uma fonte iniciadora para se pleitear uma chance no patamar mainstream. 
 
E o segundo show na Sala Sidney Miller, foi muito bom (artisticamente a analisar), apesar do público ter sido fraco, pior que o dia anterior. Foi o dia 4 de abril de 1984 no Rio de Janeiro, e quarenta e cinco pessoas viram-nos a encenar o show: "Sem Indiretas".

Ainda nessa primeira semana no Rio, lembro-me que foi agendada uma visita à Rádio Fluminense. Fomos nessa investida, eu, Luiz, Laert e se não falha-me a memória, João Lucas, Lizoel Costa e Serginho Gama. O Sergio, por ser carioca, apesar de radicado em São Paulo desde a adolescência, foi o guia natural nessas andanças pelo Rio, apesar do Laert também conhecer a cidade, razoavelmente.
E assim fomos a bordo de um ônibus comum, de Copacabana à estação das barcas, na Praça XV. De barca, fomos à Niterói, até a sede da Rádio Fluminense, localizada perto da rodoviária dessa cidade, com uma espetacular vista da Baía de Guanabara, do alto do edifício, onde localizavam-se os estúdios da emissora.
Ao chegarmos lá, fomos apresentados ao diretor, Luiz Antonio Mello, uma pessoa muito gentil, e que dava muita força aos artistas independentes, e que no futuro bem próximo, ajudaria demais "A Chave do Sol", com execução maciça nessa Rádio.
Fomos conhecer a equipe toda da Rádio Rock carioca, e eu lembro-me de uma menina bem jovem e muito bonita, que ficaria famosa tempos depois na TV, chamada, Mylena Ciribelli, que aliás era muito simpática e gentil. Foi uma super proveitosa visita à tal estação de rádio.

E naquela noite no teatro, 5 de abril de 1984, oitenta pessoas pagaram ingressos, e pareceu dessa forma que o público carioca estava gradativamente a empolgar-se com o show.
A Sala Sidney Miller, onde fizemos essa temporada com duas semanas no Rio de Janeiro, em abril de 1984

No dia seguinte, sexta-feira, 6 de abril de 1984, fomos enfim brindados com um público mais significativo. Foram cento e oitenta pessoas para assistir-nos naquela noite. Aproveito agora para comentar alguns eventos análogos, que guardo na memória, mas não estão anotados com datas exatas.
Ticket de um dos shows realizados na sala Sidney Miller. Acervo e cortesia de Paulo Presley, um fã da banda que esteve presente

Tenho somente a lembrança dos fatos, mas sem precisão. Portanto, arrolarei sem essa preocupação mais rígida. 

1) Logo nos primeiros shows, o Pituco conheceu uma bela e jovem atriz/cantora que foi nos ver. Que você não execre-me, amigo leitor, mas apesar dessa moça haver ficado razoavelmente famosa por interpretar personagens em novelas da Rede Globo, e lançar discos na época, não consigo recordar-me de seu nome.
Contudo, lembro-me que ela foi visitar-nos no camarim, no pós-show, e eles se aproximaram, digamos assim. Como resultado prático desse mútuo interesse, ele passou uma micro temporada na casa dela, a deixar o apartamento QG do Língua, em Copacabana por alguns dias.
2) Algumas presenças ilustres das quais me lembro, estiveram em certos shows, mas não necessariamente na mesma noite: Eduardo Dusek, Cristiane Torloni e Angela Ro-Ro, que aliás estava acompanhada de uma bela namorada, e esborrachou-se de rir durante o show inteiro.

3) Sempre víamos o show da Nana Caymmi pela coxia, conforme eu já mencionei.
Em uma dessas noites, ela ficou possessa com um erro do iluminador, e pelo interfone do camarim, soltou o verbo, a xingá-lo com aspereza, na metade de seu show. Incrível o seu autocontrole, pois mesmo muito nervosa, voltou ao palco para dar continuidade ao show, e o público não percebeu nada.
 
4) Eu tinha um temor pessoal e tolo sobre aquela minha performance cênica durante o número da Escola de Samba, em que satirizava-se uma determinada organização ultradireitista e religiosa. O meu receio foi que os cariocas rejeitassem a minha singela participação no número, por ironizar a instituição "Escola de Samba", algo sagrado para eles, tanto quanto a pizza, é para nós, paulistanos. 
Mas creio que subestimei a inteligência do público, pois toda noite, eu percebia pessoas a apontar em minha direção e às gargalhadas. 
Cheguei a notar pessoas a imitar-me, ao tocar uma ridícula caixa de fósforos, sinal de que haviam apreciado a minha galhofa. Um sujeito chegou a dizer-me no camarim do pós-show em uma noite dessas, que era diretor de teatro, e achava que eu tinha potencial como ator... (menos... menos)... 
 
5) O rapaz que alugou o equipamento de palco para os nossos shows, era um hippie veterano. 
Esse rapaz era um freak com o cabelo loiro pela cintura, parecido com o Greg Allman. Era figura muito solicitada no Rio, e conhecido de todo o meio musical carioca, por alugar amplificadores para todo mundo. Usamos cabeçotes e caixas Fender, tudo muito bom, é claro. 
Não lembro-me do nome dele, mas vi um documentário sobre o BR-Rock oitentista, há pouco tempo (2012), e ele aparece em diversos tapes de muitas bandas, sempre pela coxia, a vigiar os seus amplificadores...
Nesta altura, estávamos muito bem ambientados no Rio. 
O espetáculo entrara em seu ritmo normal, com o qual estávamos acostumados em São Paulo, e as reações da plateia eram iguais, sem nenhuma chance de haver algo diferente, por algum fator regional. O Rio de Janeiro recebera-nos de braços abertos, tal qual o Cristo Redentor. O show do sábado, 7 de abril de 1984, foi muito bom. Duzentas e sessenta pessoas compareceram à sala Sidney Miller, para assistir uma performance boa da banda e assim, a reagir com entusiasmo.
Naquela noite, fomos todos juntos à Gávea para jantar no famoso restaurante Sagres, que era tradicionalmente frequentado por atores da TV Globo, por ficar perto da antiga sede dessa emissora, no Jardim Botânico. O Sagres ficava em frente ao hipódromo da Gávea, e tinha tradicionalmente uma cozinha boa, e um ambiente acolhedor, ao parecer-se de certa maneira com restaurantes do Bexiga, em São Paulo. 
Nessa noite, vários amigos estiveram juntos conosco, incluso Chico Caruso, o grande cartunista, e um entusiasta do trabalho do Língua de Trapo. 
 
Os dois dias posteriores foram de folga. Não haveriam shows para o domingo e segunda-feira, tampouco compromissos com a imprensa, portanto, alguns membros da nossa comitiva aproveitaram para voltar à São Paulo. Eu preferi ficar no Rio, pois não teria compromissos com A Chave do Sol, e apesar de ser jovem naquela época, confesso que fiquei com preguiça de enfrentar oitocentos e quarenta Km, sob um "bate e volta" à São Paulo. 
Então, no domingo, eu vi fortuitamente no jornal que haveria um show do grupo de Rock oitentista, "Herva Doce", marcado para acontecer em um salão longínquo, localizado no bairro do Recreio dos Bandeirantes. Apesar de ser um debutante em termos de Rio, fiquei com vontade de ir ver, e convidei os que quiseram aventurar-se juntos. Após o almoço, eu, Luiz, Paulo Elias e Naminha, entramos em um ônibus na Rua Barata Ribeiro, e fomos ver um show de Rock em plena efervescência do BR-Rock oitentista. No entanto, o Herva Doce foi uma banda de Rock com feição setentista, em essência. Com ex-membros d'A Bolha, Veludo e Mutantes na sua formação, o seu trabalho não tinha nada a ver com o hegemônico Pós-Punk/New Wave em voga, portanto, seria agradável ver tal banda em ação, embora o som que produzia, fosse nitidamente centrado no Pop para tocar nas FM's, ainda que a soar como os Rolling Stones então "modernos", de sua fase oitentista pós-LP "Some Girls".

Chegamos ao local que era um salão bem grande e localizado em um lugar inóspito, quase deserto. Não havia um grande público presente, talvez pelo fato de ser mesmo longe da zona sul, e aí ser difícil para  chegar ali, sem carro. Enfim, em um salão que caberia mil pessoas, ou até um pouco mais, devia ter cerca de duzentas, no máximo. 
Eu, Luiz, Paulo Elias e Naminha examinamos bem o local, e resolvemos assistir mais de longe, perto da mesa do PA, onde teoricamente ouviríamos a melhor mixagem, ao nível da percepção do próprio técnico de som. Quando as luzes se apagaram e a turma de Renato Ladeira deu o primeiro acorde, uma explosão pirotécnica ocorreu, a causar um impacto, certamente, mas imprudentemente, quem estava muito perto do palco e com os braços colocados sobre ele, feriu-se! 
Imediatamente pessoas socorreram alguns vitimados, e o Paulo Elias saiu a correr para unir-se a essa corrente solidária. De longe, o vi a conduzir uma menina com o braço em sangramento, até o socorro médico de emergência, que fazia plantão por ali. Mas no tumulto, mesmo assim, a banda continuou a tocar, ao parecer-nos que os artistas não perceberam a gravidade do ocorrido. E não foi culpa deles, diretamente, mas certamente de sua produção. 
 
O show foi bom, quase ao não denotar tratar-se de uma banda oitentista, e de fato, destoava de seus pares à época. Um fato curioso, como ficamos perto da mesa de som, eu vi algo estarrecedor!

O "level master" (volume geral) da mesa de mixagem estava quase no máximo. Os botões estavam "socados", como diz-se no bordão musical, e o volume mostrou-se ensurdecedor. Foi um dos shows mais altos dos quais eu me lembro de ter visto/ouvido. 
 
Na saída, foi um tanto quanto desolador esperar por um demorado ônibus que levasse-nos à Copacabana novamente, mas um fato curioso chamou-me a atenção: haviam freaks com visual setentista, no local, embora muito jovens, e detinham o comportamento que eu tanto acostumara-me a ver naquela década passada. Foi um autêntico Dejá Vu, ver aqueles hippies anacrônicos ali, a portar-se como se estivessem na porta de um show dos Mutantes em 1972. Um deles comemorava o fato de haver apoderado-se de um par de baquetas do baterista do Herva Doce, e essa cena lúdica fez-me lembrar dos anos setenta, com certeza.
De volta dessa aventura Rocker vivida no longínquo Recreio dos Bandeirantes, chegamos ao apartamento da Rua Barata Ribeiro, com os ouvidos a zumbir, sob a influência do efeito sonoro do "tinitus!"
O Herva Doce realmente tocou muito alto naquela noite. 
 
Na segunda-feira posterior, tivemos o dia livre novamente, um descanso de turnê, o que foi uma delícia, certamente. Ocupei o meu dia, a visitar livrarias e sebos pelas redondezas, e Copacabana tem vários estabelecimentos dessas características, muito interessantes. 
De volta ao apartamento que habitávamos temporariamente, o Pituco Freitas veio contar-me que no cinema da Av. Prado Júnior, a um quarteirão de distância, estava a ser exibido o novo filme do ator, Steve Martin, e que era sensacional, por que homenageava o cinema "noir" dos anos 1940. Não precisou falar duas vezes, e eu, cinéfilo inveterado, fiquei bastante interessado em assistir. 
 
Então, assistimos a sessão das 17:00 horas, eu, Luiz, Pituco Freitas e Paulo Elias. Senti-me sob uma "dolce vitta felliniana" por estar em plena segunda-feira, dentro de uma sala de cinema, despreocupadamente em um horário desses, mas esses dois dias livres vieram a calhar, pois desde outubro, eu vinha sob um ritmo frenético dentro do Língua de Trapo, e a usar as raras brechas que surgiam, para trabalhar com A Chave do Sol. Então, dar um descanso de dois dias no Rio de Janeiro, foi providencial. 
O filme foi demais. "Dead Men Don't Wear Paid" ou "Cliente Morto Não Paga", é uma comédia com uma riqueza de detalhes rara, no trabalho quase sempre pastelão/popularesco do Martin.
A emendar trechos de filmes clássicos do estilo "noir" quarentista, o personagem de Martin interage com tais personagens em situações de tais trechos, através de um brilhante trabalho de roteiro e sobretudo, da edição. 

E no período da noite, os demais membros que haviam viajado à São Paulo para passar os dois dias de folga, já estavam de volta ao apartamento/QG do Língua de Trapo em Copacabana. A lembrança dessa noite foi a de ficarmos a assistir a cerimônia do Oscar de 1984, na TV antiquada que havia disponível no apartamento, e a fazer as nossas apostas sobre os possíveis vencedores, pois praticamente todos gostavam de cinema em nossa comitiva. 
 
Na terça-feira, voltaríamos ao trabalho, a retomar a turnê no Rio.
Antes de falar sobre o show que abriu a segunda semana da turnê, não posso deixar de contar uma molecagem que uma banda formada por homens maduros, de vinte e poucos anos, e alguns até a avançar além dos trinta, aprontaram naquele apartamento da Rua Barata Ribeiro. Para quem conhece bem o Rio, e o bairro de Copacabana em particular, sabe que quase não existem casas no bairro. As ruas de uma maneira geral, são tomadas por prédios.
Sendo assim, não demorou nada para percebermos que no prédio em frente (lado direito da calçada, ao considerarmos a mão única da rua), um apartamento vivia sempre com as suas janelas escancaradas, e o casal que o habitava, não se preocupava em se resguardar quando decidia exercer a sua intimidade.
Então, de nossa parte, a aglomeração promovida na janela do apartamento, lembrou a postura de meninos da 6ª série, e claro que foi hilário. Paulo Elias e Naminha chegaram a cogitar comprar um par de binóculos para melhorar a vista. Um bando de homens a habitar um apartamento, realmente só poderia dar nisso. Mas surpreendentemente, até que mantivemos o apartamento limpo, principalmente nos cômodos mais críticos, cozinha e banheiro, que tinham a tendência a ficarem caóticos, já a partir do segundo dia...

Na terça-feira, dia 10 de abril de 1984, voltamos ao palco da sala Sidney Miller, e atraímos um bom público com setenta pessoas. Ao se considerar ser uma terça-feira, às 21:00 horas, foi mesmo um bom público, sem dúvida. Mas houve outro fator extraordinário, que poderia ter minado o show dessa noite. Não lembro-me de nenhuma ocorrência extra no show em si, a não ser os comentários políticos de bastidores sobre o assunto do dia no Rio de Janeiro, e no Brasil inteiro. 
Cerca de um milhão de pessoas havia reunido-se na Candelária para um histórico comício pró-eleições diretas para presidente da República. Lembro-me que o Laert foi nesse comício, com certeza. Não lembro-me, mas creio que o ator Paulo Elias, Pituco Freitas, Lizoel Costa e João Lucas também foram, e depois eles nos encontraram diretamente no Teatro, pois da Candelária à Cinelândia, são apenas alguns quarteirões para se caminhar na Av. Rio Branco. Fora o fato de ter sido um dia histórico, o Laert sempre falava alguma coisa nos shows, pois além de tudo, o nome da turnê fora criado como um trocadilho com essa reivindicação popular.

No dia seguinte, não falava-se em outra coisa no Rio de Janeiro, e em todo o Brasil, naturalmente, mas estávamos ali em turnê e não podíamos dispersar, a perder o foco. 
 
O show do dia seguinte, 11 de abril de 1984, foi bom, com cento e cinquenta pessoas presentes na plateia. Além da noite anterior ter sido uma terça-feira, certamente o tumulto no Rio pela realização do comício das "Diretas Já", deixou o trânsito da cidade, um caos. E no dia seguinte, tivemos mais um bom show, no dia 12 de abril de 1984, com duzentos pagantes na plateia. 
Não lembro-me ao certo qual teria sido o dia dessa segunda semana do Rio, mas houve uma confraternização da banda com o cartunista Chico Caruso, e alguns outros amigos cujos nomes não recordo-me (mas lembro-me que eram em sua maioria, jornalistas), no famoso bar Amarelinho, que ficava (fica) na Cinelândia, em frente ao Teatro Municipal do Rio, e também da Funarte, onde apresentávamo-nos. Fora outros jantares no Sagres da Gávea, onde sempre foi agradável comer e conversar. 
Capa oficial do Compacto simples que gravamos ao vivo, durante a temporada no Teatro Lira Paulistana, em março/abril de 1984

         Contracapa do Compacto Simples, lançado em 1984

"Deve Ser Bom" (João Lucas) - Compacto Sem Indiretas - 1984 - Selo Lira Paulistana

Eis o Link para escutar no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=vyjjJS5oWk0
Amor à Vista (Laert Sarrumor) - Compacto sem Indiretas - 1984 - Selo Lira Paulistana

Eis o Link para escutar no YouTube:
https://www.youtube.com/watch?v=pTN35fXzmxc 

Nessa altura, já estávamos contentes com a turnê do Rio, independente dos últimos shows que restavam para fazermos. E além do mais, tivemos a notícia de que o compacto simples que havíamos gravado ao vivo, semanas antes, já estava com a prensagem a caminho, e que logo que voltássemos à São Paulo, o teríamos em mãos para a continuação da nossa temporada, encenada no Teatro Lira Paulistana. 
Multi talentoso, o cineasta Louis Chilson também era (é) um grande ilustrador & desenhista 

A capa, foi composta por uma ilustração concebida pelo cineasta, Louis Chilson, que também tinha (tem) talento como desenhista. O esboço original de tal ilustração, foi a caricatura de cada membro da banda, a evocar um personagem famoso. No meu caso, o Chilson usou uma foto minha ao vivo com A Chave do Sol, a tocar no Victoria Pub, em 1983, para criar a minha caricatura.
Como naquele momento de 1984, o filme: "Danton", com Gerard Depardieu, fazia grande sucesso nas salas de cinema, ele tratou de associar a minha imagem com cabelos compridos, ao do personagem histórico da Revolução Francesa, e daí, ele criou a minha caricatura com as vestimentas e expressão facial do personagem, baseado no cartaz oficial do filme. Na mesma ilustração, o Laert parece um zumbi nerd. Pituco Freitas foi caracterizado como uma dançarina de Aloha havaiana. João Lucas como um bebê a usar fraldas. Serginho Gama foi como Hippie sessentista. Naminha Casseb como troglodita das cavernas. Lizoel Costa foi retratado como o Superman, e o ator, Paulo Elias, não entrou na caracterização, embora fosse considerado um membro da banda, logicamente. Na contracapa, informações técnicas, as letras das duas músicas e ao invés da indefectível inscrição obrigatória: "Disco é Cultura", o Laert criou: "Disco é Caro"...

A mixagem foi creditada ao técnico, Douglas Martins, com participação de Claudio Lucci, dono do estúdio Violão & Cia. onde a mixagem foi realizada, em Santo André, na grande São Paulo. A arte final ficou a cargo de Ribamar de Castro, um dos mentores do Selo/Teatro Lira Paulistana. 
 
O áudio, como eu já salientei, não ficou nenhuma maravilha. Acredito que esse disco tenha o nível técnico de um Bootleg ao vivo, mais caprichado do que a praxe desse tipo de registro, é bem verdade. Todavia, como também já disse, é o único registro fonográfico da banda com a minha presença na formação. Pelas circunstâncias atípicas de minha participação nessa banda, com idas e vindas, lamento muito ter apenas esse registro com tal trabalho, mas por outro lado, orgulho-me de ao menos ter esse compacto a constar de minha discografia. 
 
Ironia do destino, por uma questão de poucas semanas, ele tornou-se o primeiro disco oficial de minha carreira, pois o compacto d'A Chave do Sol atrasara em seu lançamento e o do Língua de Trapo culminou em ser lançado algumas semanas antes. Portanto, a ironia positiva nesse caso, foi que mesmo de uma forma sutil e despercebida por todos, o meu primeiro disco oficial foi mesmo com o Língua de Trapo, para honrar de certa forma a minha cronologia natural de carreira, com o Língua de Trapo a representar o meu elo primordial com o longínquo, Boca do Céu...

Ainda a falar sobre a temporada no Rio de Janeiro, os últimos três shows foram muito bons, mas sem nenhuma novidade extraordinária que eu me lembre. No dia 13 de abril de 1984, duzentas e sessenta pessoas compareceram e para encerrar a temporada, no dia 14 de abril de 1984, trezentas e trinta pessoas compareceram. 
 
Dois meses depois, voltaríamos ao Rio de Janeiro para mais uma temporada de shows, todavia em um outro espaço, e eu contarei na cronologia, certamente. De volta a São Paulo, estávamos contentes com o resultado dessa etapa carioca da turnê. 
Eu, por minha vez, ambientei-me bem na cidade, e daí em diante, tornei-me um habitue, ao conhecer muita gente e fazer contatos, para A Chave do Sol, principalmente. 
 
Descansamos por uns dias, após meses de extenuante agenda de compromissos. No meu caso, não, pois todas as brechas que apareciam serviam-me para que eu pudesse trabalhar com A Chave do Sol. 
 
O nosso próximo compromisso seria o reinício de uma nova temporada de shows no Teatro Lira Paulistana e com o adendo do novo disco a sair do forno, o Compacto Simples gravado no próprio Lira. Eu, particularmente, que não participei do primeiro LP, e sentia-me frustrado, pois fora um componente da formação original, e mesmo assim não participei de sua gravação, portanto, estive ansioso por esse lançamento.
Continua...

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