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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Língua de Trapo - Capítulo 15 - Imprensa e Muita Água em Águas Claras - Por Luiz Domingues

Infelizmente, nessa época eu cometi o desleixo de não anotar as datas e o nome dos programas de rádio, TV, e as principais entrevistas para jornais e revistas pelas quais o Língua de Trapo participou. Portanto, vou comentar algumas ocorrências, somente e um tanto quanto descompromissado com a cronologia que procuro manter no relato de todos os capítulos. Por exemplo, acredito que foi nessa época, fevereiro de 1984, que concedemos uma longa entrevista ao Jornal da Tarde de São Paulo. 

Lembro-me que o Jornal da Tarde estava a publicar entrevistas com diversas bandas paulistanas, algumas da cena da "Vanguarda Paulista" e outras da cena do "BR Rock 80's". Entre as da Vanguarda, Itamar Assunção & Isca de Polícia, Grupo Rumo, e o Língua de Trapo. E sobre o pessoal do Rock, lembro-me claramente da presença d'Os Titãs. Contudo, apesar da repórter do Jornal da Tarde ter sido bastante simpática no convívio, as suas perguntas apontavam para uma pauta que passava ao largo do trabalho em si, de nossa banda. Com o tempo, acostumei-me com esse tipo de abordagem quase desdenhosa da parte da mídia, que tende a enfocar artistas do patamar underground, não pela sua obra, mas pelo exotismo de insistir em trabalhar, mesmo sem o reconhecimento mainstream, e as melhores condições de trabalho e sobrevivência. 
A clássica pergunta, sempre feita nesse tipo de raciocínio, veio à tona, sem nenhuma cerimônia: -"vocês vivem só de música?" Nunca conformei-me com esse tipo de questionamento, embora tenha sido obrigado a resignar-me com esse fato. Não exatamente nesse dia, mas muitos anos depois, ao ser indagado por um outro repórter sobre essa questão, respondi-lhe: -"e você, trabalha só com jornalismo?"

No caso dessa matéria do Jornal da Tarde, infelizmente a obra do Língua de Trapo ficou em segundo plano, pois o mote da reportagem fora: "artistas emergentes que sonham em viver de música". Observações tolas sobre possuir carro próprio, ou usar transporte público, e também, morar sozinho, ou na casa dos pais, foram mais importantes pela pauta proposta, que a obra de cada artista entrevistado, infelizmente...

Foi mas foi mais ou menos nessa mesma época, também, que fizemos muitos programas de TV, ao aproveitarmos a pequena brecha na agenda, antes de entrarmos em uma fase sob temporada em teatro, de quarta a domingo. Em um desses programas, lembro-me bem que se tratara de uma atração vespertina de cunho feminino, muito famoso na época, mas apenas em São Paulo, por ser da TV Gazeta, que era uma emissora de caráter regional (hoje em dia, atinge diversos estados, mas naquela época, não cobria nem o estado de São Paulo, inteiro). 
Chamava-se: "Mulheres em Desfile", e se apresentava como um típico programa feminino do período da tarde, com entrevistas sobre culinária, moda, saúde e cosméticos, predominantemente, e intercalados com números musicais, e atores de teatro a divulgar as suas peças. 
 
As apresentações musicais seguiam o padrão da TV daquela época, ou seja, com os artistas a dublar os seus números musicais, e inevitavelmente fingir a cantar e tocar instrumentos, "desplugados", e sem amplificadores, ficticiamente. Para os bateristas, era ainda mais constrangedor, pois eles ficavam em pé, a fingir tocar com apenas duas peças do Kit de uma bateria: a caixa e um prato. 
 
Por outro lado, desde a viagem que eu fizera para Curitiba, ao reintegrar-me à banda em 1983, já sabia (pelas aparições nas TV's paranaenses que tivemos), que a ordem entre nós era para avacalhar nessas aparições com dublagem. E não deu outra, neste caso, ocorreu também... todos trocaram de instrumentos, e eu fui tocar "bateria", a deixar o baixo para o nosso baterista, Naminha.
Entretanto, o mais engraçado veio a seguir, com o término da "performance". Um pouco antes da nossa apresentação, uma das apresentadoras (Yone Borges), falava sobre uma marca de bombons que estava a patrocinar o programa, e ao se mostrar bem gentil, veio oferecer-nos, ao final do nosso número musical, os tais doces. O Pituco e o Laert improvisaram rapidamente, e todos entraram na mesma ação, ou seja, avançamos como gafanhotos sobre a cesta de bombons, para assustar a apresentadora, em princípio! Para tentar sair do constrangimento sob estupefação, ela falou algo como: -"nossa, como eles são irreverentes"... enquanto isso, todos comiam vorazmente, a lambuzar-se como se fôssemos meninos de três anos de idade! Em suma: ao vivo, para aquela audiência formada majoritariamente por donas-de-casa, aposentados etc... o que será que pensaram? Hilário!

Em um outro programa que fizemos nessa mesma época, foi ainda pior. Tratou-se de um programa mega boçal que era exibido também pela TV Gazeta, cujo apresentador chamava-se, Reynaldo. Esqueci-me de seu sobrenome infelizmente, e o nome do programa era o nome do sujeito, algo do tipo: Reynaldo "Beltrano" Show, ou coisa que o valha.
Fora uma imitação ainda pior do horrendo: "Clube dos Artistas", um super Kitsch show noturno povoado por cantores popularescos, e boçalidades em geral, exibido pela extinta Rede Tupi, no início dos anos setenta.
 
Com aquela estrutura típica de boite cafona, os artistas apresentavam-se a dublar suas músicas, e a circular pelas mesas, onde casais formados por figurantes, fingiam estar em uma noitada romântica em meio a um glamoroso Night Club. Então, imagine ser a imitação barata de algo terrivelmente cafona como houvera sido o Clube dos Artistas.
 
Pois é, neste caso, foi um verdadeiro show de horrores, com cantores popularescos e completamente obscuros em sua predominância como a configurar as atrações agendadas, para desfilar o seu repertório composto por boleros cafonas e mal gravados, lançados por gravadoras de baixo nível do mercado. 
Para ter-se uma ideia, eu não consigo nem lembrar-me quais foram as outras atrações no dia em que o Língua de Trapo apresentou-se, tamanha a irrelevância artística desses elementos.
 
O apresentador seria um misto de Ayrton Rodrigues com Dárcio Campos, e de quebra, lembrava também por sua indumentária e corte de cabelo, esses cantores de boleros cafonas, ao estilo de Lindomar Castilho, Waldick Soriano, Manolo Otero, e demais similares.
A usar um terno de corte barato, o sujeito ainda tinha o seu maneirismo a la Silvio Santos, ao usar o indefectível microfone,  preso na gola da sua camisa social por um suporte estrambótico, mais a parecer-se com um símbolo fálico, digno de explicações intelectualizadas da parte de antropólogos.
 
As pessoas que ficavam na figuração pelas mesas, pareciam ser voluntários não remunerados, pois foi possível sentir que apreciavam aquela cafonália toda. As mulheres, exageradamente maquiadas, e vestidas como se estivessem no ambiente de um baile de debutantes, e os homens a se acharem elegantes no uso de ternos vagabundos, bem mal cortados.
Tal como o "Clube dos Artistas", e o seu irmão, o "Almoço com as Estrelas", as mesas continham bebidas e porções, a simular o ambiente de uma boite. E claro, com os refletores acesos, todas as bebidas ficavam mornas, e os salgadinhos azedavam rapidamente...
 
Isso sem contar a maquiagem das moças, a escorrer por suas faces e o suor dos rapazes, a denunciar-se pelas manchas na manga de seus respectivos paletós, algo inevitável em tais circunstâncias. Mas o melhor estava por vir!
 
Como de praxe, o Língua de Trapo "avacalhava" nesses programas, e esse, com toda essa breguice, tornou-se um prato cheio para a nossa galhofa total. Já estávamos a ter crises de gargalhadas no camarim, só por vermos aquela movimentação no ambiente, e lógico, as piadas sarcásticas foram imediatas e epidêmicas.
Na hora em que entramos, o clima de deboche foi proposital pois dublaríamos: "Concheta", um hino à cafonice, mas o ambiente em que estávamos era tão autenticamente cafona, que a nossa pilhéria em cima desse tema, tornou-se ainda mais hilariante pelo fato das pessoas não perceberem que debochávamos daquela atmosfera, e eles simplesmente apreciarem-nos por não entenderem a ironia.
 
Foi então que o Pituco improvisou, e começou a interagir com as pessoas nas mesas. Em um dado instante, ocorreu uma das cenas mais engraçadas que eu já vi na TV, quando ele apanhou o pé de uma mulher, e começou a cantar, a usá-lo como um microfone imaginário. A mulher ficou constrangida, os técnicos da TV entreolharam-se, mas a cena surreal teve que prosseguir com a música em curso... e para agravar, ele levantou-se e sob um ato tresloucado, suspendeu a perna da mulher para continuar com essa brincadeira, ao levantar-lhe o vestido, e deixá-la sob uma constrangedora posição, com a sua coxa inteiramente de fora.
Por sorte, o homem que a acompanhava na mesa, não era marido ou namorado de fato, e não teve reação, ao ficar apenas constrangido também, por ser o foco das atenções com a câmera em cima.
 
Quando acabou a música, a reação mecânica das pessoas da figuração em aplaudirem e sorrirem foi hilária, por deixar-nos em situação difícil, pois estávamos a explodir em gargalhadas e tivemos que conter esse ímpeto, por que a seguir, o tal Reynaldo iria fazer uma micro entrevista, muito provavelmente com o próprio, Pituco, ao seguir o raciocínio padrão de que o cantor é sempre o líder da banda.
 
E foi o que aconteceu, com uma entrevista com perguntas triviais e todo mundo na plateia a pensar que éramos mais um artista brega que executara um bolero cafona, como qualquer outro. Foi hilário, certamente e a minha lembrança foi de que esta aparição, foi uma das mais engraçadas das quais eu participei em programas de TV. E haveriam outras engraçadas, ainda com o Língua de Trapo, conforme relatarei logo mais...
O próximo passo da nossa banda, foi participar de um festival de grande porte. Estávamos escalados para tocar no badalado: IV Festival de Águas Claras, um enorme evento à época, com nomes famosos da MPB e do Rock em sua escalação.
O Festival de Águas Claras foi uma espécie de reencarnação do lendário Festival de Iacanga, realizado em 1975, e que chegou a reunir quinze mil pessoas sob um clima "Woodstockeano" total, e desta feita, só com bandas de Rock em sua programação, nessa primeira edição.

No caso de Águas Claras, a verdade foi que o festival houvera sofisticado-se em relação aos improvisos cometidos em Iacanga, nos anos setenta. Já nos anos 1980, as versões I, II e III, haviam contido mais essa característica de MPB em sua programação, além de apresentar muitas melhorias na infraestrutura generalizada, notadamente na questão do equipamento, e no caso da edição de 1981, até a conter transmissão televisiva. 
Nesse em que participaríamos, lembro-me que fomos assinar o contrato algum tempo antes, acompanhados de nosso empresário, Jerome Vonk, no escritório montado pela produção, dentro dos estúdios de ensaio da banda, "Placa Luminosa", em um casarão da Av. Rebouças, no bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Foi uma temeridade, contudo, a data marcada para o evento, a iniciar-se no sábado de Carnaval, de 1984.
A justificativa do produtor, um rapaz conhecido como "Leivinha" (nada a ver com o jogador de futebol, famoso nos anos setenta), foi que o público compareceria em peso pelo elenco de renome anunciado (um tremendo elenco, isso foi verdade), e certamente seria um público avesso ao evento do carnaval. Mas, será? Seria assim tão fácil a configurar uma dedução lógica? 
 
Estávamos escalados para o sábado, e lembro-me bem que na noite de sexta-feira, eu tive a oportunidade de visitar o meu amigo, o poeta Julio Revoredo, e em meio a uma caminhada que fizemos pelas ruas do bairro do Brooklin (na zona sul de São Paulo), conversamos sobre o festival, e ele mostrou-se estupefato pelo evento ter sido marcado em pleno carnaval, ao temer assim, por um fracasso de público. De fato, foi um risco muito grande que o produtor, Leivinha, estava a correr. 
E lá fomos nós, dentro de um ônibus da produção que saiu da sede do grupo Placa Luminosa, na manhã desse sábado de carnaval, 3 de março de 1984. 
 
O festival realizava-se nessa localidade, dentro de uma fazenda. Ficava próximo a cidade de Bauru-SP, cerca de trezentos e cinquenta Km de São Paulo. Ficaríamos hospedados em um satisfatório hotel em Bauru, que é uma excelente cidade, com infraestrutura de cidade grande a conter bons restaurantes, comércio abundante e a produção levou-nos após o almoço, até o local do show, que ficava distante cerca de trinta Km de Bauru, aproximadamente. Em nosso dia, estiveram escalados também os seguintes artistas: Gota Suspensa, Raul Seixas, Hermeto Paschoal e João Gilberto.Tirante o "Gota Suspensa" que era ainda desconhecido como banda de Rock (mas já estava encaminhada para se tornar muito famosa), os demais, todos a se mostrar como gigantes da MPB, portanto, quanta honra para nós
O Gota Suspensa foi uma banda de Rock bem oitentista, com os elementos muito bem produzidos, no quesito visual e equipados pelos instrumentos e equipamentos que usavam. Eram rapazes de origem francesa, naturalmente egressos de famílias abonadas. Foi, segundo fiquei a saber, o primeiro show da nova vocalista, uma menina também de origem francófana e esguia, jovem e muito bonita, chamada: Virginie.
 
O fato, foi que o Gota Suspensa estava a mudar de nome, e chamar-se-ia: "Metrô", dali em diante, já com contrato firmado com gravadora grande assegurado, e esquema com empresário, bem alinhavado. De fato, alguns meses depois, o mega sucesso: "Beat Acelerado" explodiria nas FM's, e o Metrô estouraria no bojo do movimento "BR-Rock 80's", a aparecer em toda a mídia mainstream, com muito destaque.
 
O interessante nessa história, foi que eu conhecia, ainda que superficialmente pelas circunstâncias, o baterista da banda, Daniel, pois ele era amigo do fotógrafo, Carlos Muniz Ventura, este, meu amigo desde o início das atividades da minha outra banda, em paralelo, a referir-me sobre A Chave do Sol.
Quando viu-me nos bastidores, o Daniel veio em minha direção, eufórico a cumprimentar-me. Foi extremamente gentil e humilde, sem afetações, algo raro para quem estava a entrar em um esquema de carreira mainstream, e principalmente por estar dentro de típica banda de dândis oitentistas, invariavelmente a adotar a postura blasè.

Por outro lado, talvez muitas pessoas surpreendam-se, mas o Gota Suspensa já existia desde 1979, aproximadamente, e pasmem, fora uma banda influenciada pelo Rock Progressivo setentista em sua origem! Os rapazes cultuavam bandas como o Yes, ELP, Genesis, King Crimson e até o Rush. 
 
Com o desenvolver dos anos oitenta, propuseram-se a adequar-se aos ventos modernos e completamente antagônicos, e assim, já teriam mudado radicalmente o som e o visual, ao modernizar-se e assim seguir os passos de bandas internacionais tais como o Talking Heads, Blondie, The Carrs, B52's etc. E pretendiam radicalizar ainda mais, ao partir para o Techno-Pop oitentista e robótico de artistas como o Eurythmics, misturado ao Pop insosso do Culture Club, Depeche Mode, A Flock of Seagulls, Tears for Fears, Style Council, e tantos outros exemplos dessa vertente formada por dândis do pós-New Wave. 
Ele falou-me em tom de lamento sobre a mudança da sonoridade e visual, mas eu o incentivei a resignar-se, e observar o lado bom desse sacrifício, pois eles entrariam em um esquema de trabalho muito forte, com exposição na mídia, sucesso, agenda cheia, e consequentemente, muito dinheiro. Eu encontrar-me-ia com o Daniel novamente, ainda em 1984, nos bastidores de um show ocorrido no Circo Voador, no Rio de Janeiro, e no capítulo sobre A Chave do Sol, eu narro essa história, que também é muito boa.
 
Assisti o show do Gota Suspensa, na coxia improvisada do palco. Realmente o repertório não agradava-me nem um pouco, com aquela estética oitentista. Para piorar, os rapazes apresentavam coreografias ensaiadas, e em vários momentos se portavam como androides ao estilo "replicantes" observado no filme: Blade Runner, o grande e óbvio sucesso da época...
Certamente espelhavam-se nas performances do Kraftwerk e artistas que os seguiram. Eu entendia a angústia do Daniel com aquela estética toda, sendo que internamente gostasse mesmo do som do Yes, algo diametralmente oposto. Mas por outro lado, fiquei feliz, pois ele era um rapaz que eu conhecia a entrar no esquema forte do Show Business do mainstream, o que convenhamos, fora uma oportunidade rara, para poucos naquela década. 
 
A seguir, subiria ao palco, o Língua de Trapo...
Chegou enfim a nossa vez. A nossa participação não teve como ser a regular, realizada em palcos de teatros, e por se configurar como um show a deter apenas uma hora de duração, também não poderia ser um show de choque, simplesmente. Então, mantivemos a característica normal do padrão "choque", porém, com um repertório mais elástico. 
 
E houve como questionamento subliminar o velho dilema sobre o público não habituado à dinâmica mais intimista da banda, não entender a proposta de sátira e humor do trabalho. Em festivais desse porte, com público muito numeroso, a tendência seria pelo frisson, mas apenas se o artista fosse muito conhecido, a gerar tal estímulo natural.
Por outro lado, eu não senti nenhuma preocupação de meus companheiros com tal possibilidade. Os demais estavam seguros e dessa forma, eu também relevei essa preocupação pueril. 
 
Quando entramos no palco, havia um público presente com aproximadamente dez mil pessoas, segundo estimativas dos organizadores. Foi bastante gente, é claro, mas a expectativa inicial, mais otimista, esperava reunir cinquenta mil, portanto, deu para ver no semblante dos produtores, um misto de aflição e frustração. Foi óbvio que a produção esteve a amargurar um prejuízo mastodôntico, mas não foi por falta de aviso de muita gente, que o advento do carnaval não combina com festivais, por mais que existam pessoas que detestem o carnaval, rol do qual incluo-me.
Então, o palco estava montado de frente para uma colina pouco acentuada, onde naturalmente as pessoas acomodaram-se como se fosse um anfiteatro. Começamos a tocar e o som estava bom no palco, no tocante aos monitores. Pituco e Laert faziam as suas performances normais como se fosse show regular em teatro, e a banda tocava com tranquilidade, a cumprir a performance, também. O público reagiu bem. Claro que as dez mil pessoas não estavam a vibrar loucamente como em um show de Rock, mas até onde a minha vista alcançou, eu notei pessoas a dançar e rir das sátiras, aliás, a reação normal esperada em qualquer show do Língua de Trapo.
O show avançou, e deu para notar que o céu estava a ficar muito escuro. Um típico vento de chuva começou, e por ser uma fazenda no interior, o odor a prenunciar a tal precipitação ficara ainda mais característico. Quando estávamos a tocar a canção: "Xingu Disco", a última música do Set List, o vento intensificou-se, e deu para sentir a agitação dos técnicos, ao correr para cobrir com lonas, o equipamento do PA, e o backline do palco.
Foi quando subitamente, eu percebi que o piano elétrico do João Lucas parou. Mas eu estava empolgado, a tocar bem na ponta do palco e a fazer poses, ao sentir-me um "Rock Star", e nem preocupei-me em olhar o que estava a acontecer, pois imaginei ter sido uma pane rápida que um roadie solucionaria prontamente, coisa do tipo: um cabo a falhar, ou problemas no Direct Box. Continuei a tocar, e logo a seguir, sumiu a guitarra do Lizoel, no monitor... 
Flagrantes da apresentação do Língua de Trapo no Festival de Águas Claras, em 3 de março de 1984. Clicks; acervo e cortesia : Jorge Rosenberg. Resgate do material: Thiago Mattar

Cáspite, naquela fração de segundos percebi enfim que algo mais grave estava a acontecer. Quando eu olhei para trás, avistei o Naminha a levantar-se bruscamente da bateria, e nesse instante, o Pituco e o Laert gritavam comigo, para eu sair rápido do palco! A ventania estava a ficar muito forte, e um spot de luz caiu muito perto de minha cabeça, ao espatifar-se no palco!
Por alguns centímetros eu não fora atingido e se acertasse, poderia ter ferido-me gravemente, ou mesmo produzido o óbito, pois se tratava de uma peça maciça e muito pesada, ou seja, a depender de onde atingisse-me na cabeça, eu simplesmente não estaria aqui a escrever esta história.
 
Corremos para o camarim, que foi na verdade um espaço improvisado como picadeiro de circo, armado com uma gigantesca lona. O show estava no fim, e não ficamos frustrados inteiramente por tal abreviação, mas o final foi bem desagradável para tirar um pouco o nosso brilho, é claro.
 
O público não teve onde abrigar-se em meio àquele campo aberto e então, ficou ali a suportar a chuva da maneira que pode.
Por um lado, o clima de "Woodstock" estava a ser imprimido pelo batismo de chuva e barro, a honrar a sua tradição, mas vou contar-lhe, amigo leitor: a lama que formou-se decorrente dessa tempestade, não teve nada de glamorosa, e o público ficou à mercê de uma sujeira incrível, fora a umidade, o completo desconforto e uma série de outros incômodos.
 
E como a estrada vicinal que levar-nos-ia da fazenda, até o hotel em Bauru, também ficara intransitável, fomos aconselhados a esperar na tenda dos artistas, ou dentro do ônibus da produção. Portanto, foram longas horas de espera e ... calma que vem mais histórias por aí, dessa aventura em Águas Claras!
 
Enquanto o temporal caia com todo o seu ímpeto, a lona da tenda dos artistas ameaçou voar algumas vezes, literalmente, pela ação impetuosa do vento. Goteiras que eram verdadeiras cachoeiras formaram-se em vários pontos, a tornar o espaço seco, mais exíguo.
 
E as conversas que ouvíamos deram conta que seriam cancelados os shows posteriores com Raul Seixas, Hermeto Paschoal e João Gilberto. Produtores e técnicos corriam para lá e para cá, sob um clima de nervosismo, e ouvíamos também reclamações da parte de alguns produtores dos artistas que ainda iriam tocar, a se revelarem bem nervosos e os boatos correram.
 
Foram inevitáveis os questionamentos sobre os cachês, ou melhor, a perspectiva nefasta de não serem pagos por conta de todo aquele imbróglio a envolver pouco público pagante presente e incidência de uma tempestade. Nesse ínterim, a chuva diminuiu o seu ímpeto violento, e a boataria deu conta de que os shows recomeçariam.
 
Foi quando a movimentação de técnicos alvoroçou-se, para tentar diminuir o tempo perdido. A tempestade no entanto, já havia provocado um atraso de duas horas entre o nosso show, e o início do show do Raul Seixas.
Então, um produtor do Raul Seixas abordou-nos em nossa mesa, e perguntou se um de nossos guitarristas poderia fazer a gentileza de emprestar uma guitarra para ele, Raul. O fato é que ele havia chegado ao local do show, sem guitarra, e dessa forma, mesmo não sendo imprescindível para o show, visto existir um guitarrista na banda, ele insistia que desejava iniciar o show a tocar junto com a banda. Bem, o Sergio Gama, um de nossos guitarristas, animou-se de pronto. Seria uma honra ter a sua guitarra na mão do Raul, quiçá fotografada e filmada com o grande mestre da metamorfose ambulante.
 
O nosso outro guitarrista, Lizoel Costa, aconselhou o Sergio a não fazer isso, pois poderia arrepender-se. Não lembro-me exatamente quem mais, porém outras pessoas também aconselharam-no a não emprestar. Tratava-se de uma guitarra Giannini, tudo bem pelo aspecto de seu valor mais modesto do que se fosse uma Gibson, mas mesmo não sendo uma guitarra importada e cara, assim mesmo seria temerário o empréstimo.
Então, o Sergio nem quis saber e emprestou sua "SG" vermelha. O produtor levou-a ao Raul, e nós ficamos na coxia a observar a movimentação para o início do show do grande mestre que nascera há dez mil anos atrás. Mesmo com o palco cheio de vestígios da lamaceira causada pela chuva torrencial e a faltar vários spots de luz que foram perdidos, o show estava pronto para começar e o público delirava com a perspectiva do Raul aparecer, ao se esquecer completamente que a lama deixara-os em petição de miséria.
 
Então, o Raul entrou no palco e ao dirigir-se a cambalear ao microfone central com a Giannini SG, do Sergio Gama, pendurada no ombro, mal começou a tocar com a banda, e caiu de frente, a espatifar-se com a guitarra no chão. Rapidamente, roadies entraram e o retiraram, para levá-lo ao camarim improvisado para um rápido atendimento. O produtor que havia pedido a guitarra emprestada veio devolvê-la, e pediu mil desculpas, entregou-a com um tremendo arranhão produzido pelo impacto no chão. Ficou aquele clima de "eu avisei", mas o Sergio, apesar de chateado, resignou-se com o prejuízo. 
Pois é... após duas horas de atraso, o Raul não cantou nem uma música, e a sua apresentação já começara dessa forma inusitada. Por sorte, ao anunciarem que ele fora levado para um atendimento rápido, não houve tumulto. O público permaneceu resignado, mesmo por que, todo mundo viu a queda assustadora, e ficou preocupado com ele. O show prosseguiu a posteriori e ainda bem, sem maiores sustos.

Mais um grande atraso ocorreu e muita discussão foi escutada nos bastidores por conta de cachê, quando Hermeto Paschoal enfim entrou, e alegrou a noite com seu Free-Jazz, cheio de experimentalismos e brasilidades.
A seguir, João Gilberto apaziguou todo o nervosismo anterior, com a sua Bossa-Nova intimista, e quase cantada aos sussurros.
O céu abriu, e embora o público estivesse encharcado e enlameado, houve um apaziguamento do ânimo, pois João Gilberto encantou a plateia que demonstrou gostar dos seus sussurros sob acordes jazzísticos sofisticados, a minimizar as agruras de um sábado tumultuado. 
E ainda há mais um pouco de história sobre o Língua de Trapo em Águas Claras '1984...
 
Como eu já disse, o show do Hermeto Paschoal culminou em acontecer, apesar do atraso e a julgar pela discussão entre o seu empresário, e os organizadores do festival, deve ter aparecido um dinheiro vivo, pois um reles cheque para se compensar na quarta-feira de cinzas, não acalmaria o empresário furioso. E claro, entre o susto com Raul Seixas e a entrada de Hermeto Paschoal, aconteceu mais um atraso razoável.
 
O sábado foi cansativo para todos, principalmente para o público que enlameou-se, viu shows truncados e aguentou uma longa e entediante espera. Devido a chuva, o acesso de terra que dava acesso à estrada vicinal, ficara intransitável. Dessa forma, tivemos que esperar por horas, e só quando já estava por amanhecer, pudemos ir ao hotel em Bauru.
 
Nesse ínterim, lembro-me de uma cena bizarra dentro do ônibus, na volta ao hotel. Eis que o grande, Jards Macalé (ele tocaria no domingo, mas fora à fazenda para assistir os shows do sábado), ao ver-me exausto, emitiu uma pilhéria, ao dizer-me : -"e aí, bicho? Está de volta ao mundo material, do telefone, carro, avião?" 
Foi o sinal de que eu parecia um zumbi ali dentro do ônibus. Para encerrar esta história, no hotel em Bauru, um produtor do festival anunciou que um ônibus da produção iria para São Paulo naquele preciso instante, para buscar outros artistas, e levar equipamentos avariados pela tempestade, para o conserto em alguma oficina da capital. 
Todos preferiram dormir, e voltar no outro ônibus programado pela produção para partir depois do almoço, o que seria o correto pelas circunstâncias do cansaço generalizado, mas eu queria estar em São Paulo o mais rápido possível para tentar realizar um ensaio com A Chave do Sol, e assim, eu voltei sozinho, e a sentir-me dentro de um navio cargueiro, com tantos equipamentos amontoados sobre os bancos do ônibus.
 
E a respeito dos maus presságios financeiros do festival, claro que o empresário do Hermeto Paschoal estava certo em sua avaliação pessimista. O Jerome, nosso empresário, voltou com um cheque para ser depositado na quarta-feira de cinzas, mas... esqueceram de dizer-nos em que ano o dinheiro seria compensado, pois até hoje não vimos a cor do dinheiro. Ficamos apenas com as cinzas, pode-se afirmar, pois um tremendo prejuízo levamos de Águas Claras...
Continua...    

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