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domingo, 1 de março de 2015

Trabalhos Avulsos - Capítulo 11 - Lily Alcalay: a MPB Sofisticada de uma Batalhadora - Por Luiz Domingues

Mais ou menos em março de 1982, paralelo ao final das atividades o Terra no Asfalto, o meu amigo, Cido Trindade, convidou-me para mais um trabalho. Ele conhecera uma compositora, chamada, Lily Alcalay, que detinha um repertório recheado por composições próprias, com forte acento MPB, e com bastante sofisticação jazzística.
Ela tocava bem o seu violão, e tinha uma boa voz, o suficiente para conduzir o trabalho com bastante desenvoltura, sem que isso significasse algum malabarismo vocal extra de sua parte. Era comedida, na realidade, mas capaz o suficiente para a sua proposta artística. Começamos a ensaiar na casa do Cido, meu vizinho de bairro à época, no Tatuapé, zona leste de São Paulo.

A Lily era uma pessoa centrada, com uma boa visão do que desejava na vida, e bastante realista em relação aos passos que deveria executar na sua carreira. Tinha o sonho de possuir um suporte de gravadora e empresário, é claro, mas sabia que precisava trabalhar muito para chegar nesse patamar, sem maiores ilusões. 

Então começamos a ensaiar focados nas oportunidades que ela arrumaria, e sabíamos que não seriam nada glamorosas em princípio. Talvez apresentações intimistas em casas noturnas de pequeno porte, e participar como concorrente de festivais de MPB, em um primeiro instante. Fizemos o primeiro show em um auditório bom, a superar as expectativas iniciais, contudo. Foi no auditório da Faculdade Fiam, no campus do Morumbi, zona sul de São Paulo, em 1° de setembro de 1982. Eu já estava envolvido com "A Chave do Sol" em seus momentos iniciais, e às vésperas da estreia oficial dessa banda, em 25 de setembro de 1982.

O auditório citado da Faculdade Fiam, mas claro, através de uma foto a esmo, extraída da Internet, e não do show que descrevo, certamente 

O show foi bom, correto e simples na sua proposta intimista. Eu e Cido Trindade atuamos bem comedidos, e a realizarmos dinâmicas muito acentuadas para não atrapalhar a delicadeza harmônica do violão e da sua voz. 

Infelizmente, foram poucas pessoas ao auditório para assistir. Em um Teatro com capacidade para cerca de trezentos lugares, apenas vinte e cinco pessoas ocuparam as poltronas desse auditório. Foram parentes e amigos da Lily, basicamente, como seria de se esperar para uma artista iniciante.

No entanto, existe um componente exótico nessa história da Lily. Na verdade, houve um terceiro músico envolvido nessa banda de apoio que ela arregimentou. Ele estava a ensaiar conosco desde abril de 1982, mais ou menos, mas não participou do show, por um motivo triste, que acomete muitos músicos, e do qual, eu comentarei a seguir.


Então, vou identificar esse músico apenas pela inicial, pois internet é pública, e não pretendo constrangê-lo, ainda que os fatos que conto, sejam verdadeiros e ao ir além, na prática, não tenha contato direto e nem mesmo indireto com ele, desde então.  

Esse músico, chamado: "J", era um guitarrista dotado de uma sólida formação jazzística. Como ele era filho de um casal de professores de música, e proprietários de um conservatório musical tradicional, localizado na zona oeste de São Paulo, "J" estudou com afinco desde a infância, e em 1982, a estar na faixa de vinte anos de idade, tocava guitarra com um técnica muito grande, e conhecimento teórico/harmônico para dar e vender.

Com ele, o som crescera muito, pois esse guitarrista inseria acordes complementares, a enriquecer ainda mais a já sofisticada harmonização apresentada por Lily Alcalay, fora os seus adendos em termos de solos & contra-solos, desenhos rítmicos bem embasados etc. Ele tocava com uma bela guitarra, Gibson ES-335, bem adequada para esse espectro de intervenções jazzísticas.

Nos ensaios, ele desempenhava com extrema desenvoltura todos os arranjos que criou, mas houve um componente de ordem psicológica, com o qual não contávamos: ele sofria de "Stage Fright", ou seja, tinha medo de subir ao palco, e apresentar-se ao vivo, perante público. 

Não sabíamos dessa particularidade em princípio, é claro. Nem a Lily, que formulara o convite para ele adentrar a sua banda de apoio. Porém, na medida em que a data da apresentação aproximou-se, vimos que o seu comportamento pôs-se a mudar.

Pois quando chegou a semana do show, ele estava apavorado, praticamente, e a fornecer muitas desculpas esfarrapadas, queria adiar a apresentação a todo custo, o que obviamente, a Lily recusou-se a fazer. Então, às vésperas, e sem a possibilidade de arrumarmos substituto em tempo hábil, decidimos tocar em trio mesmo, a empobrecer bastante o trabalho dela.

Um novo show estava marcado para alguns dias depois, e a ser realizado em um teatro maior. A Lily intimou-o a participar, sob o risco de ser retirado da banda. 

Para amenizar, ele trouxe um quarto componente para somar, um saxofonista chamado: Anselmo, que era altíssimo (falo de estatura física mesmo), e não por acaso, jogava basquete no clube Sírio-Libanês.


Dessa forma, chegou a data desse segundo show, e o guitarrista "J", tocou, mas não sei dizer se foi pior o conserto (neste caso, com "S", mesmo), que o soneto...
Sem escapatória, o guitarrista "J" teve que apresentar-se nesse segundo show.
                      Renato Consorte Filho, em foto bem mais atual

Mas ao verificar a sua situação efêmera dentro da banda, a Lily já havia aceitado a ideia do Cido, sobre ter uma segunda opção preparada, que seria o guitarrista, Renato Consorte Filho, com o qual havíamos (eu, Luiz e Cido Trindade), tocado no projeto natimorto, "Jungô", que tivemos em 1980, e do qual eu já mencionei anteriormente. Assim, o Renato Consorte Filho foi convidado a comparecer ao show, e ficou até de prontidão para entrar emergencialmente, caso a situação degringolasse.

O show ocorreu, e foi exatamente dois dias antes da estreia oficial d'A Chave do Sol, anoto essa data como uma curiosidade ao leitor. Nessa altura, eu também já havia avisado a Lily sobre a minha prioridade que seria o trabalho com "A Chave do Sol", e ela, mesmo chateada, teve que conformar-se com o fato, mesmo por que, não teve cacife para manter-me em sua banda, pois a sua agenda parava por aí, e só haveria a perspectiva de um festival, sem remuneração, a seguir.
Então, tal espetáculo foi realizado no dia 23 de setembro de 1982, uma quinta-feira, no Teatro "Tuquinha", um auditório anexo ao Tuca, da PUC. Era apelidado como "Tuquinha" por ser menor em dimensão, evidentemente. Com um público bem maior que o do show anterior (cem pessoas), mas ainda não conseguindo lotar o teatro, o show foi tenso, infelizmente, e só não foi um desastre total, por que eu, Cido e o saxofonista, Anselmo, não deixamos arruinar-se por completo, a desestabilizar a performance da Lily. 

E o que ocorreu? Bem, o guitarrista "J" teve um ataque de pânico.  Minutos antes de entrar em cena, ele teve uma crise de nervosismo, por que não soube ligar o seu amplificador, e desesperado, saiu a esmo para a rua. Alguém foi buscá-lo, e o achou a beber em um boteco, nas proximidades do teatro. Mais encorajado pela falsa segurança ofertada pela bebida, acatou o pedido para voltar e tocar.

A sua performance foi um desastre, no entanto. Bêbado e nervoso, errou miseravelmente acordes que se estivesse sóbrio e equilibrado, jamais erraria e deixou de fazer vários solos importantes com os quais contávamos no arranjo das canções. Se não fosse o Anselmo a improvisar no saxofone, teria sido ainda pior para disfarçar os seus erros. Isso sem contar que minutos antes de entrar em cena, ele vomitara no camarim, ou seja, o nervosismo, e a falta de costume com o álcool, só fez piorar o seu pânico...
Nem é preciso dizer que a Lily ficou furiosa, e dispensou o guitarrista "J" no camarim, após o show. O Renato Consorte Filho absteve-se de comentar sobre o "J", elegantemente, e limitou-se a aceitar o convite, e assim, veio a tornar-se o novo guitarrista da banda de apoio dela, doravante. Esse show ocorreu no dia 23 de setembro de 1982, uma quinta-feira.
Nunca mais eu tive notícias do guitarrista "J". Mas lembrei-me dele diversas vezes, pois esse caso foi citado muitas vezes na minha sala de aulas, nos anos noventa. 
 
Sempre que eu quis enfatizar a importância de tocar-se ao vivo, em um equilíbrio com os estudos, eu citei o "J" como exemplo. Deixava claro aos meus alunos, que só estudar, não bastava. Músico "virtuose de quartinho", que não sobe no palco, fica prejudicado no seu desenvolvimento artístico. Toca e conhece muita teoria e técnica ao instrumento, mas no momento decisivo, falha miseravelmente, como um principiante.
E quanto ao trabalho da Lily Alcalay, eu ainda pude cumprir uma última apresentação com ela, pois não haveria tempo para que ela arrumasse um substituto. 
 
Tratou-se na verdade um Festival de MPB universitário, ocorrido da PUC. A Lily defendeu uma música em uma eliminatória, que foi realizada no teatro Tuquinha, coincidentemente. Isso ocorreu no dia 19 de outubro de 1982. Nesse dia, acompanharam-na eu (Luiz Domingues), Cido Trindade e Renato Consorte Filho. O saxofonista, Anselmo, não esteve presente.  
 
A música defendida chamava-se: "Cadamanhã" (assim mesmo, grafado tudo junto, propositalmente), que aliás, foi o nome do show que realizamos por duas vezes, anteriormente. Foi uma boa performance, e a música classificou-se. Mas eu não participei da final, a seguir. 
Para encerrar, eu soube que o Renato Consorte Filho tornou-se doravante, o fiel escudeiro dela, a relacionar-se bem com ela, e assim a permanecer no projeto, por mais tempo. O Cido Trindade evadiu-se a seguir, também. 

Alguns anos depois, ouvi uma notícia mal contada, a dar conta de que a Lily houvera falecido, no entanto, não fora uma notícia oficial, mas sim um boato.
Era interessante o som dela. Para o leitor situar-se, eu diria que lembrava o trabalho de cantoras como: Joyce, Jane Duboc e Olivia Byington, mediante uma roupagem a conter harmonizações jazzísticas a la Djavan, um compositor que foi a última moda da MPB, no início dos anos oitenta, aliás, e uma certa dose de contundência nas letras, ao estilo do trabalho do Gonzaguinha. 

E assim ocorreu esse trabalho meu a fazer parte da banda de Lily Alcalay. Foram apenas três apresentações, mas com histórias para contar. 

Encontrei uma matéria, cujo link está abaixo, e que fala sobre a carreira positiva que ela construiu ao longo desses anos todos, depois desse episódio que envolveu-me à ela. 

Eis o Link:
http://umquetenha.org/uqt/?p=9523

Ela fez bastante shows, gravou um CD em 2002, teve músicas em trilhas de espetáculos de dança, e venceu vários festivais de MPB. Radicou-se em Fortaleza, onde angariou muitas simpatias. Pelo que li, foi uma artista respeitada na cena musical do Ceará. Infelizmente, ela deixou-nos em fevereiro de 2003, vencida pelo câncer, a confirmar a notícia que eu recebera, mas da qual não tinha a certeza até então.
O próximo trabalho avulso que eu fiz, foi ainda em 1982, um pouco antes do início das atividades d'A Chave do Sol. Foi uma noite marcada por improvisos, onde até bateria eu toquei ao vivo, na companhia de dois freaks argentinos...

Continua...

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