Os Kurandeiros de Kim Kehl mostravam-se ecléticos já há algum tempo, quando de suas fileiras, saiu a base da banda de apoio de Ciro Pessoa, "Nu Descendo a Escada".
Isso houvera se reforçado quando em abril de 2014, o baterista d'Os Kurandeiros, Carlinhos Machado, também passou a fazer parte dos "Nudes", a convite de Ciro Pessoa. Mas antes até, em janeiro, Os Kurandeiros também haviam assumido um segundo desdobramento, ao juntarem-se com o tecladista, Alexandre Rioli, e daí se formar a Magnólia Blues Band, um combo de Blues pronto a acompanhar grandes personalidades da cena do Blues brasileiro, em um evento fixo e denominado: "Quarta Blues", realizado na casa de espetáculos, Magnólia Villa Bar, de São Paulo.
Mas como loucura é bobagem, como diziam os Mutantes, um terceiro e muito inusitado desdobramento poderia ocorrer a qualquer momento, e no meio do ano de 2014, tal oportunidade apareceu.
Através do tecladista, gaitista e vocalista, Claudio "Cazão" Veiga, duas datas para cobrir duas festas, surgiram, e nesse caso, o objetivo fora reunir um combo sem nenhum comprometimento artístico, que prontificasse-se a tocar um repertório baseado no material dos Rolling Stones, e do Creedence Clearwater Revival, predominantemente, sem escrúpulos, simples assim.
Mediante consulta prévia, o Kim lançou essa proposta para que eu e Carlinhos Machado a avaliássemos. Fazia anos que eu não participava de algo tão fora do propósito artístico que permeou a minha carreira inteira, portanto, remeteu-me aos tempos primordiais do "Terra no Asfalto", a única banda cover em que atuei na minha vida, porém, lá nos longínquos anos de 1979 a 1982, ou seja, época em que iniciava a minha trajetória, e fora válido aventurar-se a participar desse tipo de banda com tal propósito não autoral. Ao ponderar por outro lado, seriam datas a serem cumpridas em festas obscuras, que nada poderiam ferir minha imagem ou autoestima (e claro que a estender o mesmo raciocínio, também ao mencionar as personas de Kim e Carlinhos).
Outros pontos a serem relatados: seriam realizados em datas onde não teríamos compromissos com os outros trabalhos, e o cachê oferecido, fora bom, portanto, se tratado como algo avulso, e que nada teria a ver com as atividades d'Os Kurandeiros, Nudes, Pedra ou Magnólia Blues Band, "que mal haveria?"
Dessa forma, computado como um combo secreto, recebeu o nome de: "Koveiros", uma invenção maluca do Kim Kehl, a denotar o caráter nada nobre, mas necessário em se tocar "covers'... fora o fato de que a letra K, ao invés do C, deu uma maliciosa conotação com o "KK & K"...
Já o tecladista, Claudio "Cazão" Veiga, era um músico bem comprometido com esse circuito obscuro até para o padrão do underground, e acostumado a lidar com contratantes desse patamar, portanto, com bastante opções em mãos.
Claro, é preciso ter muito estômago para encarar tal circuito. Ao considerar-se que não é o nosso métier, não é fácil enfrentar, mas para quem está acostumado, e não tem preocupação em forjar carreira autoral séria, não molesta em nada a dignidade de ninguém.
No caso dessa atuação dos "Koveiros", em 2014, foram duas oportunidades que o Claudio aventou, em junho desse ano e portanto, a coincidir com o andamento da Copa do Mundo.
No primeiro caso, foi uma aventura tresloucada, ocorrida em uma festa particular, em uma residência localizada em Embu das Artes, município da Grande São Paulo. Cidade relativamente distante da capital, ainda que unida pela grande mancha metropolitana da capital e suas trinta e nove cidades "coladas" em volta, lá fomos nós.
E o endereço a ser encontrado não foi exatamente dentro dessa cidade citada, mas em um bairro de periferia de tal município e localizada dentro de um condomínio fechado e fora do seu perímetro urbano.
Tratou-se de uma reunião marcada para assistir a abertura da Copa do Mundo e consequentemente, o jogo Brasil x Croácia, inaugural do torneio. O rapaz havia contratado um surpreendente equipamento de PA, e um trio tipicamente nordestino para tocar forró antes de nós. Quando chegamos, o bom trio estava a tocar e a entreter as pessoas que dançavam e divertiam-se.
Havia uma mesa fartíssima, na qual fomos convidados a servirmo-nos, com comida e bebida a vontade, portanto, o lado bom da hospitalidade fraternal, também sinalizou-nos o lado mau que estava a caminho, com a bebedeira inevitável e conflitos inerentes entre os convidados, principalmente se o time do Brasil perdesse o jogo. Fomos orientados a assistir a partida, e a nossa atuação seria no pós-jogo, durante a reta final da festa.
Contudo, o dono da casa surpreendeu-nos em um instante antes do jogo começar, quando convocou-nos a perfilarmo-nos diante do imenso telão onde o jogo seria exibido para que seus convidados nos vissem e então, ele fez um discurso inflamado sobre estar orgulhoso por ter contratado duas bandas de alto gabarito para abrilhantar a sua festa, e que éramos "artistas de verdade" etc. Foi o tal negócio: o rapaz não era do meio, não fazia a menor ideia sobre quem éramos no espectro artístico, ou a respeito do currículo pessoal de cada músico ali presente, mas o seu respeito foi absoluto.
Carlinhos Machado & Luiz Domingues no dia do evento, na imensa área livre de uma residência particular. Acervo e cortesia: Kim Kehl. Click: Lara Pap
Mesmo sendo um leigo total nesse mundo, contratou um equipamento muito digno (e surpreendente, até), pagou-nos régia e antecipadamente com dinheiro vivo, tratou-nos com o máximo de simpatia, ao abrir sua casa e ofertar-nos sua mesa farta, a vontade. Em contrapartida, essa manifestação dele remeteu-me ao contraponto, ou seja, quantos pilantras do meio musical que não agem assim com artistas, e nesse caso, a resposta é óbvia : falta-lhes a hombridade. Homem simples, mediante raciocínio prosaico, mas com um caráter a toda prova, fez-me refletir em torno de suas atitudes, o quanto surpreendemo-nos na vida, pois se aquilo fora uma atuação secreta para nós, portanto sem relevância artística, para ele tratou-se de um acontecimento, e de sua parte, todo o esforço para fazer dar certo, foi notável, sem contar a lisura em dar-nos todo o suporte e cumprir sua palavra, ipsis litteris.
Ora, o contraste com o glamour da música de outros patamares mais elevados, e sua quantidade de pilantras e sanguessugas inerentes, tornou-se uma comparação inevitável.
Na primeira foto, o vergonhoso "pênalti" marcado a favor do Brasil. Na foto abaixo, os Koveiros a tocarem na festa, com Kim Kehl à esquerda, Carlinhos Machado à bateria, Claudio "Cazão" Veiga, com seu costumeiro teclado portátil e eu (Luiz Domingues, encoberto), atrás. Evento realizado em festa particular em uma residência situada em Embu das Artes-SP, no dia 14 de junho de 2014. Acervo e cortesia: Kim Kehl. Click:Lara Pap
Bem, o Brasil venceu o jogo, com uma boa ajuda do árbitro, nós tocamos e divertimo-nos como se estivéssemos a brincar em um ensaio, e as pessoas ficaram muito bêbadas, muito mesmo, com direito a alguns vexames para causar-nos vergonha alheia, mas c'est la vie... a raça humana é etílica em predominância, infelizmente.
Saímos da residência do rapaz, por volta das dez da noite e após um pouco de confusão para achar o caminho para o centro de Embu das Artes, finalmente encontramos o caminho e retornamos à Pauliceia.
Alguns dias depois, uma outra data para os Koveiros, avistou-se.
Coincidiu com uma nova partida do Brasil na Copa do Mundo, desta feita, nas oitavas de final do torneio, contra a seleção do Chile. Portanto, deslocar-se em dia de jogo não seria a estratégia mais adequada a fazer-se e a depender do resultado, uma tarefa até perigosa, enfim. Quando partimos, o jogo estava na prorrogação e ao aproximamo-nos da cidade de São Bernardo do Campo, pelas reações das pessoas nas ruas e pela explosão pirotécnica, deduzimos que o Brasil havia triunfado na disputa em pênaltis.
À medida que afastamo-nos do centro de São Bernardo, e entramos na sua periferia, vimos cenas estarrecedoras de euforia desmesurada. Adolescentes faziam manobras arriscadíssimas em motos, a demonstrar estado de embriagues absoluta, ou ação química por uso de drogas com alto teor de anfetaminas, ou ambas... pior que isso, rapazes a portar armas de fogo, desferiam tiros a esmo para o céu, com o intuito de extravasar sua "alegria" pela vitória da seleção brasileira...
Em um cruzamento onde paramos no semáforo, vimos algo terrível. Uma mulher usava um telefone público, quando dois adolescentes aproximaram-se e pela movimentação, deu-nos a impressão de que estavam a molestá-la, pois a vimos sair a correr e sob uma fração de segundo, o orelhão explodiu! Naturalmente, ela saíra a correr quando percebeu que os dois marginais haviam colocado uma bomba, com a real intenção de explodir o equipamento telefônico. A questão foi: se ela não tivesse percebido a tempo, teria morrido ou ferido-se com muita gravidade, no mínimo.
Por todos os lados, carros com sistema de som ensurdecedor, a tocar o tal do "Funk", com letras absurdas, marcadas por um baixíssimo teor, a evocar sexo explícito e/ou apologia ao crime. Claro que eu sabia que o Funk que tocava à exaustão na mídia mainstream era "Beethoven", perto do lixo do lixo do underground desse mesmo patamar (se é que existissem divisões inferiores para o subsolo mais profundo da subcultura/anticultura de massa), mas confesso, fiquei muito triste ao constatar que sim, abaixo da mais baixa camada abissal, ainda havia um subsolo mais degradante.
Esse choque de realidade deprimiu-me, é claro. Mas, de nada adiantava ficar a lamuriar, e a vida seguiu.
Chegamos enfim ao local da sede do Moto Clube em questão, e o lado bom foi evidente. Moto Clube, por menor e mais simples que seja, tem uma característica padrão: segue um código de ética interna, que é exemplar. O nível de educação e respeito que tais associações professam como regimento interno para seus associados, é notável. Encravado em um bairro muito simples de periferia, ali, entre seus domínios, pode-se deixar o vidro de seu carro aberto, pois não há a menor possibilidade de nada desaparecer de seu interior.
O tratamento de extrema simpatia que nos foi ofertado, seguiu tal fama dessas agremiações, sem dúvida alguma. O único senão, é que houve uma longa espera pela apresentação, pois o evento atrasou seu início, devido a problemas técnicos com o equipamento.
Haveriam várias bandas cover no programa e o palco estava montado em uma praça pública em forma de um largo natural e sem saída, cercado por montanhas verdejantes. Mesmo com a presença de habitações simples e típicas de periferia, ao atribuir aspecto sombrio da carência social, a proximidade com a vegetação, amenizara tal impressão e o ar tinha o frescor de uma região serrana, e de fato, aquela natureza faz parte da serra do mar, pois São Bernardo fica nesse limite do caminho para o litoral do estado.
Foi desgastante esperar pelas apresentações e entre elas, uma longa de um "Ramones Cover", e que perdoem-me os leitores que apreciam tal banda norte-americana, mas ninguém merece duas horas de música pobre desse nível, nem do artista original, quanto mais um xerox...
Tocamos e nossas interpretações de canções dos Rolling Stones e Creedence Clearwater Revival, que agradaram em cheio aos presentes no evento, em sua maioria, motociclistas que tendem a apreciar Classic Rock, sem firulas. Gente simples, mas hospitaleira, sincera e muito honesta...
Artisticamente nada acrescentou-nos tais apresentações, tanto que o combo dos Koveiros foi uma iniciativa secreta, e com o único objetivo de se ganhar dinheiro, todavia, fiz questão de mencionar as duas ocorrências, e assim abrir um capítulo específico, pois foram lições importantes que computei, ao meu ver. Não aconteceram mais apresentações dos Koveiros doravante, mas a qualquer momento, podem ocorrer, e agora eu sei, sempre existirá a possibilidade de eu surpreender-me em algum aspecto.
A festa na residência particular, ocorreu em 12 de junho de 2014, com aproximadamente oitenta pessoas presentes. Já a apresentação no "Moto Clube Parceiros do Raul", foi em 28 de junho de 2014, com trezentas pessoas mais ou menos na audiência.
Continua...
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